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07 maio 2019

As formas de exploração na indústria digital: o novo protagonismo da exploração dos usuários

Web 2.0

A internet como tecnologia surgiu na década de 60, no entanto, seu acesso amplo a civis só se deu após a queda do muro de Berlim, começando a se massificar em meados dos anos 90, graças ao surgimento dos navegadores e serviços de email gratuitos. Essa massificação levou à entrada das grandes marcas na internet, gerando o início da indústria digital, a chamada Web 1.0.

A grande característica da Web 1.0 era a produção majoritária de conteúdos “estáticos”, ou seja, o conteúdo de um determinado site era produzido e publicado apenas pela empresa/organização/pessoa física dona do site. Os usuários se limitavam a navegar. Graças a esse formato, a relação entre a quantidade de conteúdo que um site oferecia estava diretamente atrelada a quantidade de trabalhadores dedicados a essa função na empresa.

Apesar de inúmeras tentativas de variar o modelo de negócio, a receita na indústria digital sempre se deu majoritariamente pela exposição de anúncios (banners, pop ups, artigos pagos, etc). Isso significa que, quanto mais tempo um usuário passa em um determinado site, maior é a sua exposição a esses anúncios e mais rentável passa a ser o negócio. Para aumentar o tempo despendido pelo usuário, a única solução possível era aumentar a quantidade de conteúdo oferecida pelo site. No entanto, nos moldes da Web 1.0, a velocidade de produção era simplesmente insuficiente para atingir a margem de lucro esperada pelos especuladores da época.

Foi nesse contexto que surgiu a Web 2.0, caracterizada pela acessibilidade na produção e publicação que permitiu o surgimento de conteúdo gerado pelo usuário (user-generated content). Os maiores exemplos da Web 2.0 são as redes sociais (Facebook, Instagram, etc), nas quais a empresa se dedica exclusivamente em dar manutenção à estrutura na qual os usuários trabalham para gerar conteúdo para outros usuários[1]. Dessa forma, é possível ter uma força de trabalho massiva, não paga e nem sequer reconhecida que possibilita o “milagre” das startups: empresas com um quadro de funcionários extremamente enxuto que geram um lucro imenso.

O YouTube é um bom exemplo dessa dinâmica por ser um site de compartilhamento de vídeo, formato cuja produção era pouco acessível para a maior parte da população até recentemente. Por causa disso, nem todos os usuários são produtores de conteúdo nele. Existem dois perfis principais entre usuários do YouTube: os que apenas assistem vídeos e o que assistem e produzem vídeos. Enquanto os usuários que apenas assistem vídeos possuem uma relação com o site que se assemelha à Web 1.0, usuários produtores de conteúdo entram no perfil da Web 2.0: eles fazem o produto que o site oferece. Sem eles, não haveria motivo para acessar. Essa relação trabalhista, no caso do YouTube, é tão evidente que os produtores de conteúdo recebem remuneração do site, apesar de ser um valor tão ínfimo que não é possível constituir uma fonte principal de renda confiável.

As redes sociais possuem uma dinâmica um pouco diferente por ser muito mais simples criar novos conteúdos para elas. Nelas, todos os usuários são produtores de conteúdo e, portanto,a remuneração do site é ainda mais escassa, restrita apenas para os produtores mais acessados. Em ambos os casos, existem produtores de conteúdo que conseguem renda suficiente para viver disso, no entanto, eles não são pagos pela rede em questão e sim por anunciantes externos.

Gerenciamento de usuários

Dentro dessa estrutura, os funcionários da empresa são responsáveis por dar manutenção à tecnologia que viabiliza o site, vender os espaços de propaganda para os clientes, conseguir novos usuários e gerenciá-los.

O gerenciamento de usuários é feito por uma equipe multidisciplinar de designers, programadores, analistas de qualidade, negócios e produto. O ponto de partida, da mesma forma que em uma fábrica, é o estabelecimento de métricas e metas de produtividade. No caso de uma rede social, o objetivo final é garantir que os usuários a acessem o máximo possível de vezes por dia durante um tempo significativo, suficiente para que haja exposição a uma certa quantidade de propagandas. Para isso, é necessário que o usuário produza conteúdo (trabalhador) e interaja com o conteúdo produzido por outros usuários (consumidor). Todos os acessos, interações e postagens são contabilizados para o estabelecimento e acompanhamento dessas métricas, de forma que é muito simples realizar modificações no aplicativo e descobrir quais foram as mais eficientes em produzir o comportamento desejado no usuário.

Todas as mínimas decisões são feitas baseadas nesses números. Usando o Facebook como exemplo, desde os botões no alto do site, feitos para priorizar as ações do usuário, o passo-a-passo de criação de uma nova conta, feito para garantir que o usuário saia do processo com um motivo para voltar novamente[2] (chamado “hook”, anzol, em português[3]), até a definição de novas funções no site, como as inúmeras variedades de likes criadas para incentivar a rápida interação e as caixas coloridas para textos curtos que facilitam a criação de conteúdos com um visual mais interessante.

Além disso, no caso específico dos aplicativos de celular, outros recursos podem ser utilizados para esse gerenciamento como, por exemplo, informações de localização de GPS, atalhos para o compartilhamento de imagens e vídeos e as notificações, que são o recurso mais poderoso para garantir o retorno do usuário ao aplicativo várias vezes por dia.

O caráter massivo e extremamente diverso dos usuários desses sites e aplicativos, faz com que, por um lado, seja muito difícil prever o impacto das mudanças realizadas pelos desenvolvedores nas métricas de produtividade. No entanto, por outro lado, permite que sejam realizados inúmeros testes, validações, análises e segmentações, aumentando o controle e previsibilidade das alterações. Duas ferramentas muito poderosas nesse quesito são os testes A/B e os algoritmos de personalização.

Testes A/B são literalmente experimentos realizados no site ou aplicativo[4]. Eles funcionam da seguinte forma: suponhamos, hipoteticamente, que a equipe do Facebook queira aumentar o número de postagens feitas pelos usuários por dia. Para isso, eles acreditam que mudar a mensagem na caixa onde o usuário escreve a postagem pode trazer impactos positivos. São criadas várias versões diferentes de mensagem além da tradicional “Publique uma atualização de status” como, por exemplo, “No que você está pensando?” ou “Conte algo para seus amigos”.

Após elaborar possíveis mensagens, uma parte da população de usuários é dividida em diferentes grupos que verão diferentes mensagens: o grupo A vai ver uma, o grupo B, outra, o grupo C… etc. Após um tempo rodando o experimento, é feita a análise de qual desses grupos teve um crescimento maior de postagens e a alteração vencedora passa a ser a definitiva até que um próximo teste seja realizado.

Algoritmos de personalização, por sua vez, são formas automatizadas de adaptar o aplicativo ou site aos comportamentos e interesses específicos de um usuário individualmente[5]. Um exemplo bastante discutido desse tipo de algoritmo é o que mede a interação do usuário com os posts na sua linha do tempo e prioriza mostrar os de páginas e pessoas com as quais ele interage mais frequentemente. Dessa forma, depois de um tempo, posts de pessoas ou páginas que o usuário não comenta ou curte frequentemente simplesmente param de ser exibidos.

Existem inúmeros exemplos de como essas práticas são desenvolvidas para aumentar a produtividade do nosso tempo livre, eu apenas pincelei o tema para ilustrar que, do ponto de vista das gigantes digitais, já está clara essa relação trabalhista do usuário. Devido ao altíssimo sucesso financeiro dessas práticas, elas tendem a se espalhar para todas as outras áreas de trabalho e vida. A “revolução” trazida pela mentalidade das startups consiste no questionamento de como é possível transferir o trabalho para fora da empresa utilizando as tecnologias digitais, assim, garantindo um corpo de funcionários mais enxuto para as empresas e uma produtividade jamais vista anteriormente.

Referências (em inglês):

[1] “Principais diferenças entre Web 1.0 e Web 2.0” – https://web.archive.org/web/20121025113431/http://firstmonday.org/htbin/cgiwrap/bin/ojs/index.php/fm/article/view/2125/1972

[2] “O Aha moment do Facebook é mais simples do que você imagina” – Explica o conceito de Aha moment (como descobrir a métrica chave na “retenção” de usuários) – https://mode.com/blog/facebook-aha-moment-simpler-than-you-think

[3] “A psicologia por trás de porque nós não conseguimos parar de mandar mensagens” – Artigo sobre “Hook”, a psicologia pro trás dos habitos viciantes no celular – https://www.nirandfar.com/the-psychology-behind-why-we-cant-stop-messaging/?utm_source=Chameleon&utm_medium=blog

[4] “Porque você deveria imitar o Facebook e fazer teste A/B com tudo” – explicação sobre o funcionamento de testes A/B – https://auth0.com/blog/why-you-should-ab-test-everything/

[5] “Seu feed é tudo que você é: a arte da personalização no Facebook” – O diretor de inteligência artificial do Facebook falando sobre algorítmos de personalização – https://www.vice.com/en_us/article/d7ywxa/facebook-newsfeed-personalization-hussein-mehanna

Por Heloisa Yoshioka – Mulher, imigrante brasileira em Berlim, militante revolucionária, feminista, antirracista, chorona, fazedora de jogos e trabalhadora angustiada da indústria digital. Parte da Revista Amazonas e do Quilombo Invisível.

2 Comentários

  • Leonardo disse:

    > A “revolução” trazida pela mentalidade das startups consiste no questionamento de como é possível transferir o trabalho para fora da empresa utilizando as tecnologias digitais, assim, garantindo um corpo de funcionários mais enxuto para as empresas e uma produtividade jamais vista anteriormente.
    No caso do Uber então, nem se fala.
    Claro que embora seja verdade oq vc disse, no caso das redes sociais pode-se argumentar que o usuário-produtor também tem seus interesses.
    Além disso, pra além e uma perspectiva revolucionária: como poderia ser diferente?

    • Helô disse:

      Oi Leo!
      Sim, concordo que o usuário produtor também tem seus interesses, e é justamente isso que permite que ele não seja pago pela plataforma. O “hook” mencionado no texto consiste exatamente em garantir que o ele tenha uma motivação intrínseca para voltar. No entanto, no dia a dia da administração do usuário, o interesse do usuário não é interesse da empresa contanto que ele continue frequentando o site e a rede social, pois só se analisa sua “retenção”. Portanto, pouco interessa quais são os motivadores da volta do usuário desde que ele continue retornando, sendo preferível, por ser mais barato, apostar na compulsão.
      Em relação a como poderia ser, não tenho uma resposta formal, eu acho que métricas podem ser úteis, mas precisariam ser colocadas em segundo plano em relação a uma participação mais ativa dos próprios usuários nas decisões. Como todas as decisões formais são tomadas com o objetivo de lucrar, acho que praticamente nada da forma como esses aplicativos e sites funcionam seria aproveitado, porém, é possível aproveitar uma grande parte da metodologia de design para descobrir que tipo de valor as redes sociais podem de fato gerar e projetar em torno disso. De resto, precisamos de espaços públicos e melhores oportunidades de interação na vida real. Já ouvi no ambiente de trabalho que “se o usuário decide correr no parque a empresa perde” e é verdade, por isso precisamos de mais parques.
      (Desculpa a demora, eu não estava acostumada com essas coisas ainda)

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