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07 maio 2019

Ensaio sobre a fome

Ninguém, além de mim, poderia escrever estas notas.

Penso por um segundo e me dou conta de que não há nisso mérito algum. Na verdade, o mundo me provou — ao longo de trinta e quatro anos — que o mérito nesta sociedade é uma ficção sórdida.

Stencil fotografado no Grajaú, periferia do extremo sul de São Paulo.

Eu sei sobre a fome; porque já a senti me atravessar as veias — isso que as pessoas daqui aprenderam que tinha o nome de fome. Conheci o buraco vazio que avança, engolindo todas as beiradas de um desejo que não nasce na cabeça e que precisa de comida, tão forte é esse desejo.

Saber sobre a fome é saber também sobre aquilo que as pessoas daqui aprenderam a chamar de desejo.

Todo animal possui instintos de sobrevivência, tão intensa é a ligação da vida com a vida.

Todas as plantas crescem na direção do sol, esticando-se, ao longo da vida, em busca de comida, escalando paredes de apartamentos e montanhas ou descansando, freneticamente, no fundo dos oceanos escuros tentando sintetizar alguma luz, tão intensa é a química, a física e a matemática que se desembrulham nas células do nosso desejo de viver.

Quanto mais a fome grita, com sua boca enorme arreganhada em nossas barrigas, mais o desejo se escancara, buscando alguma claridade luminosa onde possa agarrar suas unhas vermelhas.

Que fome é essa? O homem-calango, que filmava dores ressecadas dos sertanejos, contava que a aparência digna da fome é a violência.

Não acho que seja violência a palavra que nomeie isso. A aparição digna tem a cara do Mapinguarí. Abre sua boca enorme, inscrita no meio da barriga, e vocifera o urro que imita o som do caçador que ele devora; não teme caçador nenhum, só teme a preguiça, indomesticável, descansa a sabedoria de velhos xamãs que se transformaram em floresta e a defende do humano.

A fome é humana.

A fome é uma praga que os homens fabricaram contra outros homens e mulheres e é também o que move a ira do Mapinguarí que deseja viver, que deseja o desejo sem narrativa da natureza, que é viver.

Saber sobre a fome é saber também sobre desejo.

Possuo esse conhecimento, tão popular nas terras baixas, e tão raro nos círculos da Ciência Social, que nos estuda para compreender como é que se comportam outras “raças” diante do caos e diante da esperança, “serão apáticos ou revolucionários?”. Se perguntam os economistas, os cientistas políticos, os literatos e toda faixa iluminista. “Serão integrados ao vertiginoso ritmo das forças produtivas, substituídos por inteligências artificiais, ou reverterão o tempo re-habilitando tecnologias xamânicas?”. Questionam engenheiros e físicos, assim como antropólogos e cosmopolíticos.

Este não é um livro, este é um diário, uma coleção de fatos e pensamentos, uma espécie de descrição etnográfica feita desde a fome, com fome, entorpecendo de desejo tudo que resiste a ela e à sua dor alimentada de vazio e ausência de comida.

Muito difícil pensar com fome. Muito difícil desenvolver-se com fome, cantar com fome, amar com fome, desapegar-se, estando com fome. Tudo aquilo que mora na mais rica experiência da vida, vai sendo arrancado de nós e nossos corpos se atrofiam, como radares embaçados que não captam bem a luz.

Graffiti do artista Mundano.

Imagine que não sei nadar.

Não faz nenhum sentido que uma pessoa de trinta e quatro anos, nascida onde reside a maior reserva de água doce do mundo, avizinhada de uma das maiores costas ladeando um país, não saiba nadar.

Há coisas informadas à minha inteligência, pelo meu território em contato com meu corpo, e eu fui desfigurada ao possuir dispositivos de conhecimento que a fome atrofiou, porque conheci o mar já com alta idade.

Mas o desejo — que se esticava, buscando fotossintetizar-se dentro de mim — foi tão enorme que achou ondas de luz opaca no fundo de uma densa lama e respirou, junto dos caranguejos no mangue. Tornei-me caranguejo antes de conhecer o mar.

Ninguém deveria sobreviver a essa inversão de tempos e ter de empurrar tanta força para germinar nos escombros. É muito custoso.

O olho ocidental, que estigmatizou a preguiça, não sabe sentir o que é manter-se vivo e são, e apostando no dia seguinte, em meio ao tiroteio ensurdecedor da modernidade cheia de outdoors, MEI´s, carros, celulares, sonares e aviões cruzando sobre as nossas cabeças desprotegidas diante de qualquer mínima intempérie do capital, sem teto certo, nomadeando sem terra e sem emprego, com a velhice fracassada de remédios e um salário mínimo, sustentando netos e netas sem destino.

Na verdade, muita gente poderia escrever estas notas. Mas não o faz porque, afinal de contas, não muda em nada o aluguel do mês que vem, e nem aumenta o tempo em que se pode estar embriagado de televisão ou de alcool.

Assim, este livro não se explica nem para quem escreve sobre a fome (e não a sente), como tampouco se faz compreender entre os que — como eu — sentem fome e sabem que de nada adianta mais um livro qualquer, para arremedar o vão que cresce sob a pele que cobre as costelas à vista.

Escreverei.

Me sinto, às vezes, uma lata, tentando reciclar-se, todos os dias, num mundo povoado de embalagens trituradas e refeitas.

Escreverei, mesmo sem saber nadar e — mergulhando num delírio espremido entre prédios e barracos de madeira — atravesso para algum desconhecido idioma e povo.

Arrisco-me a ser aquilo que o outro não entende, par e passo com o fato de que eu também não entendo nada. Mas aqui estamos, comprovando a possibilidade sincrônica de existir integrando o mesmo sistema, sem que se igualem as peças e sem que minha experiência subalternize as vossas no assassinato universalizante da equivalência geral.

Eu aprendi um pouco da língua de quem não sente a fome.

Acho que venho estudando pessoas diferentes desse meu caminho que são outro arranjo de vida, outra sociedade.

Tenho amigos que vivem em outro país, mesmo tendo vivido sempre, e ainda agora, neste mesmo país que eu.

Sua obsessão por entender a fome, sua sincera aposta em desmontar a engrenagem da fome, os leva a defender famintos, mas sem conhecer a ira do Mapinguarí. Os levam a serem marxistas, comunistas, anarquistas, socialistas, autonomistas — alguns mais sérios que outros.

Os levou a elaborar, por muito tempo, sobre a fome alheia, confundindo, na teoria, seu lugar de existência com o nosso lugar de existência. Toda essa elaboração da fome, da qual me alimento também, chega sempre a seu limite quando se acirra, como um poste caído do céu fincando-se no chão, a polarização de classes que impede estar no meio, intermediariamente ocupando um espaço que transita entre dois.

Foi compreendendo isso que tomei notas.

Porque se em meu corpo se desativaram dispositivos milenares de relacionamento e estudo da vida, minha travessia entre os escombros, até aqui, me muniu de dispositivos novos, recalculando rotas na lama de todo o lixo ocidental mercadológico, sem retroceder, expandindo-se e enlouquecendo de fome e de desejo.

Tudo é autoficção e com fome escrevo, mesmo agora.

A fome enlouquece todo santo dia.

Por Helena – Ativista favelada e afroindígena, fortaleço as lutas pela libertação de corpos e territórios através da militância com o povo sem-teto, sem-terra, negro e indígena dos quais sou parte. Escritora autoproclamada, estudante de Saúde Pública e educadora clandestina. Marxista por reivindicação, antropóloga por gosto de conhecer diferenças, chorona porque leonina e aprendiz da agroecologia, da astrologia e da cultura dos orixás. Uma das editoras da Revista Amazonas e parte do movimento Luta Popular.

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