É preciso que se desfaça de quase tudo que acha ter certeza e, exatamente por isso, é uma decisão que se toma com o sentipensamento, porque pode lhe provocar alguma vertigem.
Ela não é uma vítima frágil que precisa da sua proteção de macho provedor, não é uma oprimida sem voz que precisa de você para falar ao mundo.
Ela é um vulcão de almas negras atravessadas por oceanos inteiros que, no entanto, dia após dia engole as próprias cinzas para não explodir. Ela não pode explodir porque dela depende o equilíbrio torto que permitiu a comunidades inteiras de homens que fossem cuidados e educados – já que seus pais biológicos simplesmente se foram.
E, no entanto, de tanto ser forte em tudo e todo lugar, ela às vezes deseja sim cuidado, proteção. Não como provimento macho-alfa de qualquer coisa, mas como um presente que se encontra em alguém quando se quer muito estar acolhida.
Por isso quase toda medida que foi definida para nossa silhueta é falsa.
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Se desfaça dessas regras turvas, pise com os pés no chão. Sinta a temperatura da terra, entenda o que há onde você pisa, tente não se machucar e não machucar nada.
Uma mulher negra não é a heroína guerreira que poderia solapar as divagações sobre a nossa imensa necessidade de ouvir mais as sabedorias que constituíram nosso povo.
Não é a responsável por tudo e não carrega a importância disso – que é verdade que se precisa ouvir mas tais sabedorias – sozinha.
E no entanto, só vale a pena olhar pra realidade, buscando compreendê-la para atuar nela, pelos olhos dessas mulheres. Mas depois de admitida essa mirada para ver o mundo, não se pode deixá-las sozinhas a carregar os mil demônios.
Para amar uma mulher negra você precisa aprender a nadar.
Precisa mergulhar nas sombras duras que trazemos nas revoltas, nas almas tortas que aporrinham nossos desejos, em ver por dentro gente que é invisível há séculos.
Vai ter de driblar destroços de embarcações viradas e desviar de naufrágios, sem no entanto achar que pode salvá-la.
Aí é possível que você aporte em praias bonitas e quentes, pode ser que você veja as flores que não figuram nos cartões postais, que conheça os cantos da cidade onde a vida vibra e balança com tambores.
Eu não digo essas coisa não é pra te deixar com medo.
Eu digo porque precisamos que se diga, precisamos contar um pouco já que muitas coisas são ditas em nosso nome e não nos expressam nem mesmo a metade de uma carne.
E da invisibilidade a que estamos submetidas nos elevam à cereja do bolo de qualquer banquete democrático de fanfarronices.
E da solidão somos arremessadas ao lugar de companheiras exóticas; negras de esquerda, negras feministas, negras liberadas. Como se fosse possível estarmos libertas enquanto até o feminismo e a esquerda forem assim tão brancos. Como se tivéssemos vencido, nesse lugar solitário que é ser a única negra na universidade, a única negra no mestrado, a única negra no cinema, a única negra dirigente política. Como se isso fosse vencer: estar sozinha outra vez a carregar as almas.
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Para amar uma mulher negra você precisa entender que o mito da fragilidade feminina nunca foi um paradigma pra nós, porque temos sido, desde há muito tempo, tratadas como escravas, como bestas de carga e máquinas para o trabalho tal qual os homens da nossa cor e da nossa classe. Com uma ferroada a mais porque também somos máquinas reprodutoras de outras máquinas e o nosso corpo e nosso sexo também nos foram dominados e alienados de nós, objetificados na sensualidade escrava ou na renúncia religiosamente colonizada.
E no entanto uma mulher negra pode apreciar a gentileza e o cuidado, o auxílio e o afago, porque valora esses gestos que lhe foram secularmente negados na invisibilidade através dos anos.
Saber que se a conexão no sexo foi intensa, não é porque ela é a escrava quente ou a negra liberada, mas porque ela sentiu confiança para se abrir e ser, e porque o corpo dela responde ao seu.
Importante pensar que amor livre é amor acompanhado de uma palavra que significa muito a quem tem passado escravo e liberdade, nas nossas bocas, não é palavra qualquer.
Amor livre não é necessariamente a possibilidade de estar e ter relações com várias pessoas aos mesmo tempo, não é tampouco encerrar-se em qualquer pacto que submeta a própria verdade, negando desejos em nome de uma monogamia ocidental imposta, não é achar que tratar diferentes como iguais seja justo, é saber que a liberdade se constrói junto e ela terá o desenho possível dados os limites e potências de cada um(a).
Para amar uma mulher negra, você deve aprender a amar. Aprender a dar as mãos nesse mergulho e saber que enquanto atravessas as sombras está acompanhado de luzes, de cores, saber que o voo é vertiginoso mas que há mais lugares belos do que nos contaram e atravessar a vertigem é o único caminho para chegar a eles.
Para amar uma mulher negra você precisa estar preparado para andar pela história com outras cores, pra esperar pedaços de horizonte que sua vista antes não alcançava e vai se surpreender muitas vezes com como as cores mudam toda a cidade ao redor de nós.
Por Helena – Ativista favelada e afroindígena, fortaleço as lutas pela libertação de corpos e territórios através da militância com o povo sem-teto, sem-terra, negro e indígena dos quais sou parte. Escritora autoproclamada, estudante de Saúde Pública e educadora clandestina. Marxista por reivindicação, antropóloga por gosto de conhecer diferenças, chorona porque leonina e aprendiz da agroecologia, da astrologia e da cultura dos orixás. Uma das editoras da Revista Amazonas e parte do movimento Luta Popular.
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