O Partido dos Panteras Negras (Black Panthers Party) é famoso por ter sido uma das mais avançadas experiências organizativas de luta da comunidade negra nos Estados Unidos, tendo construído muito do avanço das condições da população negra e trabalhadora. Em seu programa de dez pontos [1], divulgado em 1966, onde consta o resumo propagandístico das propostas do partido, os Panteras tratam da questão do encarceramento nos pontos 8 e 9 que cito a seguir:
“8. Queremos a liberdade para todos os homens negros encarcerados nas cadeias e prisões federais, estaduais, de condado ou municipais.
Acreditamos que todo o povo negro deve ser liberado das muitas cadeias e prisões porque não receberam um julgamento justo e imparcial.
9. Queremos que todo o povo negro, quando levado a julgamento, seja julgado na corte por um júri de seu próprio grupo de pares ou povo das comunidades negras, como definido pela Constituição dos Estados Unidos.
Acreditamos que as cortes deveriam seguir a Constituição dos Estados Unidos, de maneira que o povo negro receba julgamentos justos. A Décima Quarta Emenda da Constituição dos Estados Unidos dá a um homem o direito de ser julgado por seu próprio grupo de pares. Um par é uma pessoa de condições econômicas, sociais, religiosas, geográficas, ambientais, históricas e raciais similares. Para fazer isso a corte será forçada a selecionar um júri da comunidade negra da qual o réu negro veio. Fomos e somos julgados por júris totalmente brancos que não tem compreensão do “homem racional médio” da comunidade negra.”
Nestes pontos, os panteras denunciam o caráter estruturalmente injusto e racista do sistema penal norte-americano que só serve pra manter as extremas desigualdades sociais necessárias para a manutenção do sistema de exploração capitalista. Nos EUA, como no Brasil, os principais alvos da violência policial e das prisões são, historicamente, os negros, para os panteras, estava claro que todos os julgamentos de negros são injustos por se basearem num sistema judiciário que é, de ponta a ponta, passando por policiais, juízes, promotores e o próprio júri, todo, inegavelmente, racista.
Doze anos depois do lançamento do manifesto dos panteras negras nos EUA, no dia 07 de julho de 1978, no Brasil, em plena ditadura empresarial-militar, foi fundado, em uma manifestação em frente ao teatro municipal de São Paulo, o Movimento Negro Unificado (MNU). Esse protesto, que confrontou a ditadura ao sair pra rua pedindo o fim da violência e da discriminação racial, teve como estopim a morte de Robson Silveira da Luz, um feirante morador da periferia da zona leste de São Paulo. Robson foi acusado de roubar frutas em serviço e levado pela polícia para a delegacia de Guaianazes. Preso, Robson foi torturado até a morte. Sabemos que esse tipo de situação não é nenhuma novidade nas delegacias brasileiras nem naquela época e nem hoje, mas, justamente por isso, a mobilização do MNU em torno do caso é tão emblemática.
Na época, havia na esquerda brasileira um amplo movimento pela libertação, contra a tortura e o assassinato dos chamados presos políticos, que já havia vitimado o jornalista Vladimir Herzog em 1975, além de dezenas de outros estudantes, trabalhadores, militantes políticos e tantos outros perseguidos com base na Lei de Segurança Nacional da ditadura. Acontece que Robson não era considerado um preso político, mas um preso comum.
Aliado ao MNU havia uma organização de encarcerados, o Centro de Lutas Netos de Zumbi, formado por detentos do Carandiru que, em carta lida no ato de fundação do MNU denunciavam as condições desumanas e insalubres em que viviam os presos, a tortura e o assassinato a que também eram submetidos, assim como o racismo estrutural do sistema judiciário e prisional. Com essa análise, eles denunciavam que também os presos comuns eram presos políticos e que, para que a mobilização da esquerda por direitos políticos fosse efetiva, ela tinha que ser também uma luta contra todo esse sistema de justiça.
É importante chamar a atenção para a postura da militância do MNU, que em nenhum momento levantou a falsa questão moralista, querendo julgar se o Robson mereceu ou não ser torturado e morto por ser supostamente um criminoso. A discussão sobre a inocência de Robson não era sequer colocada no debate do MNU. Tendo roubado frutas ou não, Robson não poderia ter sido torturado e morto ao ser preso. Nenhum crime a propriedade vale mais que uma vida. Nenhuma pessoa tendo roubado ou não merece ser torturada e morta mas, ainda assim, a imensa maioria da esquerda brasileira manteve uma diferenciação entre os presos comuns, que supostamente mereceriam tal tratamento, e os presos políticos, que estariam sendo perseguidos por motivos mais nobres, o que caracterizaria a injustiça da sua situação.
Como podemos ver, a proposta do MNU acaba sendo mais radical [2] do que a dos Panteras ao encarar toda prisão como injusta e não apenas a forma de julgamento racista como elemento determinante dessa injustiça. Intelectuais do MNU, como Lélia Gonzalez e Clóvis Moura, mostraram como o sistema penal e as práticas de tortura e assassinato por agentes do Estado que ele gera possuem um vínculo direto com as práticas escravocratas de dominação de classe. Sendo assim, a prisão só serve para perpetuar essa dominação de classe e a discriminação de raça, não cumprindo nenhuma função social positiva para os negros e trabalhadores, sendo falsos os discurso de que a prisão traria aumento da segurança, ou reabilitaria o prisioneiro para vida em sociedade, ou que traria reparação aos prejudicados pelo crime, pelo contrário, o sistema penal só segue aumentando a violência, destruindo vidas e fortalecendo o crime. Hoje, a bandeira do MNU de que “todo preso é um preso político” continua extremamente atual, ganhando ainda maior importância nesse momento histórico em que os militares voltam a ter o controle do governo federal no Brasil se utilizando de um discurso midiático de sensacionalismo penal. Conseguir fazer esse debate avançar de forma real, radical e coerente é uma necessidade urgente e que, caso não consigamos avançar vai continuar a custar as nossas vidas.
[1] A tradução em português do programa de 10 pontos pode ser lida aqui:
[2] Essa idéia é desenvolvida com maior profundidade no excelente artigo “Em busca da radicalidade perdida” da historiadora Suzane Jardim, no qual me inspirei para escrever esse texto. Disponível a partir da página 138 da relatório “Tortura em tempos de encarceramento em massa – 2018” da Pastoral Carcerária: https://desencarceramento.org.br/wp-content/uploads/2019/01/Tortura-em-tempos-de-encarceramento-em-massa-2018.pdf
Por Gabriel Silva, bancário e militante do quilombo invisível.
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