Sudão, o segundo maior país norte africano, de raízes afros em território árabe tem uma história de revolução fresca em seu solo. Hoje, na sua terceira revolução, está no rumo de ter um governo civil pela primeira vez desde sua colonização.
A história sudanesa traça uma linha clara de luta contra as forças colonizadoras, tendo sua população sequestrada por navio negreiros, sofrendo apagamento histórico cultural cometido pelo Egito, guerra civis, e golpes de estado imperialistas por parte da união europeia, Estados unidos, Emirados Árabes e Egito. A terra sudanesa segue, como muitas “ex-colônias”, sendo saqueada por sua abundância em petróleo, minérios, hidrovias e outras riquezas naturais, sendo esse o principal fator para tanta opressão.
Há 6 meses atrás, os trabalhadores sudaneses, explorados pelo estado, começaram a se revoltar contra o aumento do valor do pão em uma grande onda de protestos em vilas e cidades periféricas. Em 19 de dezembro de 2018, as manifestações chegaram à capital e se espalharam por todo o país.
Rapidamente a pauta dos protestos passou a ser o fim da ditadura de 30 anos liderada por Omar Al-Bashir, responsável pelo genocídio de Darfur [1], acusado de crimes de guerra pela corte penal internacional.

O principal formato que as manifestações tomaram foi o de “sit ins”, acampamentos onde os manifestantes ficam sentados 24 horas por dia, 7 dias por semana nos arredores das bases militares pelo país e na capital. Essa forma de protesto se tornou símbolo da revolução, uma forma de reapropriação do espaço comunitário, conseguindo envolver toda a população, incluindo crianças, com movimentos artísticos que inundam e transformam as cidades em cor [2], música, grupos de discussão sobre temas diversos e até práticas religiosas, todas respeitadas e apoiadas.

No dia 11 de abril, essa pressão popular levou Omar Al-Bashir a abdicar do poder e fugir do Sudão [3], deixando, em seu lugar, o General Awad Ibn Auf, derrubado um dia depois [4]. A população sudanesa compreende que o problema é estrutural e não basta apenas derrubar o presidente sem que todo o sistema e todos os seus servidores sejam removidos também. Por isso, mesmo com essas duas vitórias, as manifestações permanecem.
No atual momento, o movimento enfrenta seu maior desafio até então. O Governo de Transição Militar (GTM), também responsável pelos crimes de guerra praticados pelo estado anteriormente, trocou suas balas de borracha por balas de verdade e começou a massacrar os manifestantes nos “sit-ins”, especialmente em sua capital de Khartoum. As repressões já passam de 108 mortes [5], pelo menos 40 corpos foram encontrados no Rio Nilo [6].
Informações concretas como nome, número de mortes e cidades afetadas estão cada vez mais difíceis de sair do Sudão. Nesta segunda-feira (03/06/2019) a internet foi parcialmente cortada no país [7]. No mesmo dia, militares atacaram os “sit-ins” deixando pelo menos 60 mortos somente em Cartum [8], os massacres em outras cidades ainda se encontram invisibilizados e desconhecidos.
No momento, o principal embate está nas negociações da duração e o caráter do governo de transição. Os manifestantes exigem que o governo de transição seja civil e dure 4 anos. Dessa forma, é possível reestabelecer um cenário político que permita a renovação institucional, dado que praticamente toda a oposição política foi eliminada pelo governo ao longo desses 30 anos [9]. No entanto, os militares, por não terem intenção de permitir o fim do modelo autoritário atual, defendem uma transição militar com 7 meses de duração, aumentando muito a chance de uma eleição inefetiva ou fraudulenta.
Sudaneses pelo mundo pedem com urgência apoio internacional. Visibilidade e pressão de outros países é extremamente importante para ajudar a proteger e fortalecer o movimento e, assim, conquistar suas demandas e evitar um novo massacre.

Foto: Hossam El-Hamawaly
“Sit-ins” e protestos em solidariedade à revolução e contra o massacre estão tomando força pelo mundo. Somente nesta semana, houveram atos em Berlim (Alemanha), Londres (Inglaterra), Dublin (Irlanda) e Washington DC (Estados Unidos). Além disso, estão sendo produzidas petições, cartas abertas e campanhas de arrecadação [10] e a disseminação de notícias, vídeos e mais materiais pelas redes sociais estão também entrando em peso para expor a situação e fazer o trabalho negado pelas grandes mídias, usando as hashtags:
#SudanUprising
#Sudanrevolt
#fall_that’s_all
#Internet_Blackout_in_Sudan
#sudan_massacre
Ativistas sudaneses estão usando a tag #google_open_internet_for_sudan em forma de campanha, para pressionar a Google e outras empresas proveedoras de internet para que abram vias de comunicação segura que funcionem independentemente dos cortes de internet já cometidos pelo GTM.
É essencial estabelecer conexões com a diáspora sudanesa – exilados, migrantes e refugiados de origem sudanesa que estão fora do Sudão -, para apoiar, entender e fortalecer sua luta e organização.
A revolução no Sudão é muito importante para todos que tem a perspectiva de fortalecer as lutas anti-racistas, anticoloniais e anti-patriarcais por unir também as pautas feministas [11] e contra o genocídio negro que acontece nas áreas afastadas do centro (em especial, Darfur). Acompanhar e apoiar essa luta com certeza nos trará aprendizados preciosos para nossas lutas atuais e futuras. O internacionalismo é um fator vital para revoluções e mudanças sociais. A troca de conhecimentos históricos, ancestrais e culturais são de extrema importância para reconhecermos ainda mais as classes dominantes contra as quais lutamos e também lições táticas e estratégicas para nossos próprios processos de lutas e organização. Com essa troca podemos nos colocar mais atentos ao cenário da luta de classes global, gerar solidariedade que pode servir como um escudo contra os massacres, e abrir portas de visibilidade que driblam burocracias políticas e midiáticas.
Notas:
[1] “As hostilidades se iniciaram na região árida e pobre em meados de 2003, depois que um grupo rebelde começou a atacar alvos do governo, alegando que a região estava sendo negligenciada pelas autoridades sudanesas em Cartum.
A retaliação do governo veio na forma de uma campanha de repressão da região, e mais de dois milhões de pessoas deixaram suas casas. Como a maioria das áreas é inacessível para funcionários de organizações humanitárias, é impossível se precisar o número de vítimas.”
(…)
“Refugiados e observadores externos afirmam que há uma tentativa deliberada de se expulsar a população negra africana de Darfur.” https://www.bbc.com/portuguese/reporterbbc/story/2007/04/070424_darfur_qa_dg.shtml
[2] “Uma camada de graffiti e outras formas de pintura agora cobrem quase todas as superfícies ao redor do Sit-in, expressando a demanda dos manifestantes de “justiça” e prometendo “A revolução continuará”.
Os manifestantes participam do Sit-in em turnos para garantir uma presença constante fora do composto militar, e isso frequentemente gera programações noturnas, quando milhares se reunem regularmente.
Concertos ao vivo foram realizados, alargando as músicas temáticas de revolução que proliferam nos últimos meses e agora dominam as transmissões de muitas estações de rádio sudanesas.”
https://www.middleeasteye.net/news/sudans-sit-revolution-continues-and-art-flourishes
[3] “O presidente do Sudão, Omar al-Bashir, foi forçado pelos militares a deixar o poder nesta quinta-feira (11), após três décadas comandando o país, segundo declarações de funcionários do governo à emissoras árabes.” http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2019-04/presidente-do-sudao-e-deposto-por-militares-apos-30-anos-no-poder
[4] “General Awad Ibn Auf anunciou decisão um dia após a derrubada do ditador Omar al-Bashir. País continua a ser palco de protestos. Manifestantes temem que junta militar esteja tentando instaurar uma nova ditadura.”
https://www.dw.com/pt-br/chefe-do-governo-de-transi%C3%A7%C3%A3o-do-sud%C3%A3o-renuncia/a-48311557
[5] Pelo menos 108 pessoas foram mortas e mais de 500 ficaram feridas, segundo o Comitê Central de Médicos Sudaneses (CCSD). (em inglês)
[6] “Ao menos 40 corpos foram retirados do rio Nilo na capital do Sudão, Cartum, de acordo com líderes de protestos pró-democracia no país. (…)
Uma ativista, Amal as-Zein, diz que o número pode ser ainda maior. De acordo com ela, dúzias de corpos foram retirados do Nilo em diferentes pontos perto de onde aconteciam as manifestações e foram levados ao necrotério de um hospital.”
[7]”A conectividade com a Internet foi parcialmente interrompida no Sudão até a manhã de segunda-feira, 3 de junho de 2019. As novas interrupções ocorrem em meio a relatos de tiros disparados contra manifestantes que continuam nos “sit-ins” em Cartum.” (em inglês)
https://netblocks.org/reports/internet-disrupted-in-sudan-amid-unrest-at-khartoum-sit-in-98aZoQAo
[8] “Capital do Sudão no bloqueio como manifestantes recordam a violência que matou pelo menos 60” (em inglês)
[9] “A formação de um governo nacional de transição. (…) Seu papel é governar por um período de quatro anos, até que uma estrutura democrática sólida seja estabelecida e eleições sejam realizadas.”
[10] Campanhas de arrecadação para o assitência médica no Sudão:
(em inglês) https://www.gofundme.com/medical-assist-for-sit-in
(em inglês) https://www.gofundme.com/emergency-medical-aid-for-sudan
Petição demandando que a ONU investigue as violações de direitos humanos no dia 3 de junho no Sudão pelas Forças Armadas:
(em inglês) http://chng.it/QsZvLgGRt2
Carta aberta em solidariedade às revoluções do Sudão e da Argélia (em inglês)
[11] “Os pobres foram os maiores atingidos, e as mulheres, que colocavam comida na mesa da família, se mobilizaram pelo WhatsApp e pelo Facebook e se rebelaram contra o regime autoritário.
As mulheres seguiram liderando atos pacíficos de rua e chamados à desobediência civil, e tomaram as redes sociais em protesto. Médicos, advogados, estudantes, professores e donas-de-casa têm tocado a Insurreição Sudanesa (#SudanUprising) há três meses, na revolta contra o regime mais constante da história recente.” https://movimentorevista.com.br/2019/04/as-historias-das-mulheres-a-frente-da-rebeliao-sudanesa/?fbclid=IwAR2xhBH4K-pVLD955TY-S2mZHJbagGLioMtbp1HODnfL-6NdUAsgNtT119w
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