Ninfomaníaca é um filme com origem em quatro países: Alemanha, França, Dinamarca e Bélgica. Constituído de duas partes, o primeiro teve seu lançamento no data 10 de janeiro de 2014, sendo um filme bem recente. Foi escrito e dirigido por Lars Von Trier.
Trier é um cineasta dinamarquês que ficou conhecido internacionalmente por sua ousadia e uma visão diferente de se fazer cinema. Começou sua carreira no início dos anos 1980, estudando cinema na Universidade de Copenhagen e na Escola de Cinema da Dinamarca. No Brasil, tornou-se mais conhecido pelo controverso ”Os Idiotas”, do movimento conhecido como Dogma 95, em que o diretor não entraria nos créditos e nenhum efeito de edição seria usado. Esse manifesto objetivava construir uma cinema mais simples, mais puro.
O referido filme conta a história de Joe, mais precisamente uma história pornográfica. No início da película Joe é encontrada no chão, machucada e sangrando por um homem de idade avançada chamado Seligman, que a resgata levando-a para sua casa, onde lhe oferece abrigo. Ao tentar entender o que aconteceu com Joe, esta avisa: “Eu mereci isso. Essa história começou quando eu tinha dois anos”. A partir disso se inicia um relato extenso de Joe, como se fosse uma sessão de terapia. A personagem, ao contar sua história, tenta entender a miséria de sua vida, e o que a teria tornado, em sua visão, um ser abjeto. A narração contempla momentos que vão desde a virgindade às suas primeiras relações sexuais, de modo a chegar no mais dramático de seu comportamento obsessivo em relação ao sexo, iniciando relações com diversos homens em que o interesse era estritamente sexual, conquistando e se desfazendo de uma centenas deles.
A frieza de Joe mediante todos os males que sua sexualidade inevitavelmente causava é muito explícita e chocante. Trier constrói uma personagem que claramente não se importa com os padrões sociais do matrimônio.
No segundo filme, Joe surge como uma mulher condenada por sua imoralidade pervertida. Velha, sem perspectivas, cansada e desencantada. Seligman se torna uma espécie de amigo compreensivo, que tenta racionalizar seus relatos culpados; além da peculiaridade de ser homem assexuado, tenta explicar a Joe todo o tempo que a sua sexualidade não é um problema.“O mundo diz que isso é errado, mas não é” é uma fala constante em seu discurso. Importante ressaltar que não há proibições religiosas nem sociais manifestas durante o filme. Joe parece estar o tempo todo confessando seus crimes como uma penitência. Essa prática faz parte dos costumes do ocidente em relação ao sexo – a penitência cristã de confessar pecados em busca de perdão. Foucault, a respeito deste fato afirma: “A sexualidade, no Ocidente, não é o que se cala, não é o que se é obrigado a calar, mas é o que se é obrigado a confessar” (FOUCAULT, 1974).
A personagem de Lars Von Trier é duramente castigada por dar vazão a seu desejo sexual exacerbado. De um modo até mesmo meio absurdo leva uma vida totalmente miserável e sua situação somente piora ao longo do filme. Joe parece acumular o que de pior se pode encontrar no gênero humano. Se no primeiro filme ela aparece machucada, fragilizada, sem amigos ou família, destruidora indiferente de lares, fria, no segundo filme se revela má esposa, incapaz de amar até o filho, mãe irresponsável que abandona a cria em casa e numa creche, aliciadora de menores para o crime, pedófila numa relação meio incestuosa, bandida, inacreditavelmente ciumenta e finalmente assassina de seu benfeitor, Seligman, que a tenta estuprar no final do filme. “Mas você não transou com milhares de homens?”.
A personagem Joe em uma narrativa fílmica permeada pelo olhar masculino somente poderia ser uma personagem feminina, porque é a partir de uma determinada ideia de feminilidade que sua história faz sentido diante dos olhos do espectador. Um homem indiferente que faz sexo com quatro ou cinco mulheres distintas ao longo de uma semana, descartando-as como objeto sexual, sem se importar se estas desenvolvem por ele qualquer tipo de afeto para além da satisfação sexual, é um personagem até mesmo comum nas narrativas fílmicas e portanto na vida real, mas uma mulher que desenvolve este mesmo comportamento só pode ser considerada doente, uma ninfomaníaca fria, um ser completamente abjeto.
Todos os males de sua vida estão diretamente relacionados a sua sexualidade, e sua culpa está em ter aceitado-a ao invés de reprimi-la. Joe é digna de punição e é isso que a narrativa faz com que o telespectador deseje a ela, trata-se de mais um mulher que ao ultrapassar o limite da proibição sexual será duramente castigada e culpada.
Trier, ao longo dessa produção, opta por deixar intacta a visão social padronizada da culpabilização da sexualidade feminina.
Por Thaís Fernandes – Cientista social, periférica, cresceu no Grajaú, extremo sul de São Paulo, atualmente milita no Quilombo Invisível
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