1 – Existe uma forte confusão dentro daquilo que se chama de “movimento negro”. Este termo aglutina uma ampla variedade de atores com objetivos dos mais variados e, em alguns casos, contraditórios.
O termo é usado para se referir sem a devida diferenciação a organizações políticas, indivíduos, políticas públicas de governos, empresas, ONGs, atividades culturais, educacionais, religiosas, empresariais, assistencialistas ou recreativas e a uma grande e contraditória quantidade de correntes políticas, teóricas e acadêmicas.
Me parece que toda essa confusão acontece por dois motivos:
– Pelo racismo, entranhado na esquerda, que com sua ignorância e desinteresse em relação a questão negra acaba homogeneizando todo tipo de experiência organizativa ou reivindicatória negra;
– Pelos equívocos e contradições das próprias lutas negras no Brasil que não conseguiram construir no último século seja um horizonte programático amplamente reconhecido, seja expoentes políticos, teóricos ou organizativos que sejam sólidos ou influentes o suficiente para se imporem de forma inequívoca.
2 – Defino o racismo das organizações de esquerda como desestimular, estigmatizar, vetar ou restringir a espaços marginalizados o debate, os estudos e a ação sobre as questões específicas da população ou dos trabalhadores pretos, assim como a configuração e perpetuação de espaços que se mostrem hostis a aproximação e ou manutenção de pessoas pretas na organização, também pela cumplicidade com atitudes discriminatórias que existam no cotidiano da organização ou mesmo a discriminação explícita como prática coletivamente aceita como tradicional na organização. Aqui, preto é entendido num sentido amplo, como os setores da mistura afro-indígena que sofrem discriminação racializada pelo colorismo em nossas terras.
A partir dessa definição ouso afirmar que a imensa maioria das organizações da esquerda, e mesmo dos seus setores mais radicais e pretensamente revolucionários, são extremamente racistas no Brasil hoje. Esse racismo é, em geral, mais explícito nas cúpulas que nas bases, acompanhando a tendência geral no Brasil da maioria dos membros das cúpulas serem brancos e dos próprios negros na cúpula também serem cúmplices ativos desse racismo, mesmo quando as bases da organização são majoritariamente negras.
3 – Entender e enfrentar as consequências do racismo é uma necessidade central da luta de classes num país de formação escravocrata como o Brasil, que racializou índios e africanos. A discriminação racial é o principal fator determinante para viabilizar a superexploração do trabalho vigente no capitalismo brasileiro. Ao estabelecer uma divisão interna e estrutural na classe trabalhadora, a instituição do racismo significa a impossibilidade de união entre os trabalhadores e os despossuídos de diferentes origens étnicas, enfraquecendo de forma exponencial as possibilidades de resistência de todos.
Neste sentido, os chamados privilégios da branquitude são a principal cilada que os capitalistas armaram para os trabalhadores brancos, que enfraquecem suas próprias possibilidades de resistência a exploração capitalista ao encarnarem o racismo.
A incapacidade de lidar com o racismo na esquerda e nos revolucionários no Brasil é um dos principais motivos que explicam a derrota a cada dia maior que marca as nossas lutas.
4 – A proposta de organização exclusivamente negra no Brasil tende a dar poucos frutos dentro de uma perspectiva revolucionária, pois aqui a miscigenação é generalizada. Assim, mesmo as pessoas que se identificam como brancas costumam ter descendência africana e indígena e, em outros países, não seriam consideradas brancas. Da mesma forma, os próprios negros também costumam ter descendência européia, tendo brancos entre os seus parentes próximos. O racismo aqui não se operacionaliza através da descendência como em outros países, mas pela discriminação com base no colorismo, na classe social e na territorialização das populações racializadas. Para classificar algumas centenas de respostas para a pergunta “Qual é a sua cor” do IBGE, a própria militância negra teve que criar o conceito de “pardo” e, através dele, evidenciar a massa miscigenada afro-indígena brasileira.
Essa situação mostra os profundos conflitos subjetivos causados pelo genocídio colonial, mecanismo de dominação permanente em territórios que herdaram estruturas coloniais. Ao tornar determinada raça como alvo permanente de desenraizamento, despossessão, humilhação, super-exploração, atraso, controle e morte, o genocídio impede o auto-reconhecimento da própria origem histórica de uma imensa massa de brasileiros trabalhadores ou despossuídos, como os descendentes de índios e africanos escravizados que já não reconhecem o próprio passado, conformando um dos problemas centrais da subjetividade dos brasileiros, assim como de outros territórios colonizados.
O Partidos dos Panteras Negras, ao organizar as comunidades negras contra a violência genocida do Estado e do capital, entendia a necessidade de uma organização especificamente negra pra fazer esse trabalho, pois os negros seriam uma colônia de exploração interna aos estados unidos. No Brasil a maioria das comunidades exploradas são miscigenadas, isso faz com que as próprias famílias negras sejam, na verdade, coloridas. É comum ver por aqui mãe preta de filho branco ou filho preto de mãe branca. Por mais que a violência policial seja a evidência mais clara do racismo colorista no Brasil, quando observamos os brancos que também são presos ou mortos pela polícia, vemos que estes eram brancos pobres, normalmente moradores das periferias e comunidades negras. A discriminação racial no Brasil é fortemente territorializada e classista. A complexidade dessa situação é expressa na metáfora de Elza Soares, “branco pobre no Brasil é preto, preto rico no Brasil é branco“.
5 – Nos últimos anos, tem surgido muitos pequenos coletivos e organizações no movimento negro brasileiro que tem importado formas organizativas exclusivas para negros da experiência norte-americana. Esses setores costumam ser chamados de afrocentrados ou identitários. Porém, no Brasil, a organização exclusiva para negros não visa organizar as comunidades como os Panteras, mas adota uma concepção colorista de raça, onde a escala cromática da pele define a que raça você pertence. Essa é uma concepção equivocada pois desconsidera a complexidade da formação das próprias populações negras brasileiras, que são miscigenadas e territorializadas.
No entanto, a maior cilada organizativa é a tendência que desconsidera a luta de classe no combate ao racismo. O racismo é um fenômeno de opressão poli-classista – ou seja, negros ricos ou pobres sofrem racismo – porém, a violência da discriminação racial tem um viés inequívoco de classe: somente os pobres sofrem sistematicamente a violência do genocídio que extermina e encarcera em massa os jovens e negros. Assim, ao desconsiderar a questão de classe no combate ao racismo, essa parcela do movimento negro limita a sua luta a círculos estreitos de poucos negros organizados incapazes de se relacionar com as massas de uma forma que não seja oportunista, pois são dirigidos política e ideologicamente por negros que ascenderam às classes dominantes e que, para ascender nesse sistema, precisam ser cúmplices do genocídio racista.
Assim, o horizonte último da luta racial que não considera a questão de classe numa perspectiva revolucionária acaba sendo a integração e ascensão social de algumas famílias e indivíduos dentro da sociedade capitalista. Sua ambição é limitada a ver os capitalistas negros ganhando cada vez mais espaços e mercados que pertenciam aos capitalistas brancos.
O principal problema de se ignorar a questão de classe é que torna a luta um mero meio de alpinismo social de indivíduos específicos, acaba priorizando temas como o combate a casos individuais de racismo e as cotas raciais para universidades, cargos públicos ou de cúpulas administrativas empresariais, e desenvolvendo pouco lutas mais abrangentes, como por direitos sociais ou contra a repressão policial, que realmente são do interesse das massas negras.
Ainda assim, é inegável que a recente ampliação das elites negras brasileiras tem gerado uma mudança política qualitativa na conjuntura para o debate racial, estas notas não deixam de ser sintoma e reação disso.
6 – A afirmação da identidade negra, assim como de outros setores oprimidos, é uma ferramenta de reconhecimento, união, auto valorização, criação de solidariedade e recuperação de sua própria história, que são mecanismos importantíssimos na luta contra o racismo, a armadilha da identidade esta quando ela é afirmada como uma essência absoluta, uma ancestralidade mítica, quando ela é colocada como o objetivo último e não usada apenas como um meio. Estabelecer um equilíbrio entre a necessidade de afirmar a identidade para conseguir lutar contra o racismo e ao mesmo tempo ter que nega-la, superando a identidade para a luta ter um caráter verdadeiramente emancipatório de superação da própria racialização, é um tema constante de reflexão de militantes que lidaram com a questão negra, presente na obra de pensadores como Franz Fanon, e do principal dirigente do Partido dos Panteras Negras, Huey P. Newton.
O erro de se condenar de forma sumária a luta ou as pautas de identidade como uma negação da luta de classes só pode de dar pela ignorância e desinteresse para com a relação histórica das lutas negras com a luta de classes, os setores que fazem isso reatualizam toscamente o mito da democracia racial, difundindo uma leitura histórica equivocada da realidade, onde a questão racial não seria um fator determinante para a luta de classes em países de formação escravocrata.
Setores da esquerda dita revolucionária de diversas matizes (stalinistas, trotskistas, marxistas, anarquistas, etc) tem fortalecido muito a crítica aos setores chamados identitários do movimento negro que não consideram a luta de classes na luta contra o racismo. Tais críticas têm gerado um importante debate que nos motiva bastante, porém, setores expressivos nesse debate tem realizado a leitura equivocada de avaliar sumariamente a identidade como uma negação da luta de classes.
Assim, tem se fortalecido uma campanha anti-identitária com assustadora frequência associada ao que há de mais velho e reacionário no discurso e nas práticas racistas de esquerda, como por exemplo, falar que “é melhor não se discutir raça e gênero por que isso vai apenas dividir a gente” e generalizando todo debate racial ou de gênero como uma negação da luta de classes. Eu mesmo já testemunhei dezenas de vezes nos últimos anos como pautas e problemas específicos raciais ou de gênero (situações de assédio sexual, estupro, injúria racial por gestores no ambiente de trabalho, perseguições baseadas em critérios raciais e toda sorte de discriminação explícita) são negligenciados em movimentos sociais, estudantis ou sindicais com justificativas embasadas no discurso anti-identitário.
7- Para avançar na reflexão sobre a questão racial é urgente um balanço do último período das lutas negras globais e da influência nociva que os dirigentes que ascenderam as classes dominantes têm tido sobre as movimentações negras internacionalmente, relembrando que a luta anti-racista se da num terreno poli-classista, o último ciclo da luta de classes global foi marcado por um ascenso das lutas negras que propiciou a emergência e expansão de uma classe dominante negra no continente africano e nos estados unidos.
O caso mais emblemático foi o massacre dos 34 mineiros durante a greve na mina de Marikana na Africa do Sul em 2012, pelo governo negro conhecido por derrubar o aparthaid do partido Congresso Nacional Africano, em que o mandante do massacre, Cyril Ramaphosa, era então diretor e acionista da mineradora Lonmin, o empresário e atual presidente da Africa do Sul, é ex-dirigente do sindicalismo mineiro em históricas greves na década de 80 que ajudaram a derrubar o aparthaid. A ascensão de militantes negros que agora ocupam postos nas elites empresariais, políticas e da burocracia de Estado no pós-aparthaid não significou a eliminação do racismo e da exploração colonial branca sobre as massas de trabalhadores negros sul-africanos, mas apenas sofisticou e aumentou a legitimidade do regime ao colocar dirigentes negros de antigos movimentos contestatários como parte da elite que se beneficia da exploração capitalista intensificada pela discriminação racial.
No caso dos estados unidos, lembremos das revoltas nacionais violentamente reprimidas depois do assassinato racista pela polícia de jovens em Fergurson em 2014 e Baltimore em 2015, que deram origem ao movimento Black Live Matters (vidas negras importam), em pleno governo do presidente negro Barack Obama, em Baltimore a própria prefeita era negra, nunca antes na história dos estados unidos houve tantos negros em postos de poder, o que não vem impedindo a permanência do racismo, nem que a polícia continue a cometer assassinatos racistas, nem diminuindo a repressão do Estado ao movimento negro.
A ascensão dessas elites negras causam um avanço no debate racial tornando mais evidente que elites negras não resolverão o problema do racismo, só tornarão esse racismo ainda mais sofisticado, precisamos focar a luta na união dos negros pobres com demais setores dos explorados e oprimidos para realmente avançar na luta contra o racismo.
8- Ao meu ver, a forma organizativa mais adequada a ser construída para a luta negra no Brasil não é exclusiva para negros, mas uma forma que consiga ter o combate ao racismo como algo profundamente entranhado nas estruturas da organização. Pois combater o racismo numa sociedade como a nossa é uma luta que precisa aglutinar as lutas de todos os explorados, oprimidos e despossuídos. Em outras palavras, também precisamos que os próprios brancos, assim como pessoas de todas identidades raciais, abandonem o racismo e também lutem contra ele. A luta tem que ter o horizonte último da destruição dos processos de dominação racialista e não a afirmação de nenhuma raça em especial.
Nesse sentido, a forma histórica do quilombo segue como referência por ser um espaço de resistência que aglutinava negros de diversas origens étnicas, índios e mesmo brancos pobres, que se aliava taticamente com toda sorte de atores em sua luta contra os escravocratas e se configurava como um território de auto-governo.
O fundamental da forma organizativa na luta anti-racista é o esforço para ela não reproduzir involuntariamente as estruturas racistas da sociedade. Assim, é necessário um esforço constante, pois o racismo está entranhado de forma profunda, visceral e camaleônica nas práticas e na sociabilidade organizativa historicamente construídas na esquerda brasileira.
9 – As pautas de luta econômica especificamente negras no Brasil são as pautas das massas mais explorados e oprimidas. Por isso, as lutas negras são as lutas dos desempregados, dos trabalhadores mais precários, dos ambulantes, das empregadas domésticas, as lutas por moradia, saúde, educação, terra, alimentação e transporte. Essas são as principais questões econômicas da população negra, que são as massas condenadas à miséria e a superexploração. As lutas que fazem avançar a auto-organização e a condição de vida desses setores mais explorados são lutas contra o racismo.
No entanto, mais especificamente, a questão do genocídio é a mais grave luta negra. No Brasil, 67% dos mortos pela polícia são negros, enquanto 61,7% da população carcerária é negra, sendo a realidade ainda mais grave por não termos dúvidas que esses dados são subestimados.
Que não se reconheça hoje com clareza essas pautas como horizontes das lutas negras é sintoma da miséria política, organizativa e teórica em que se afunda o debate racial no Brasil.
10 – As lutas contra o genocídio e o encarceramento em massa, apesar de serem mais graves lutas negras, são negligenciadas hoje tanto por movimentos negros como pelo conjunto da esquerda e dos revolucionários. Atuando nessa pauta, vejo um cenário em que as principais organizações a lidarem com a questão são, além de parte do movimento negro, ONGs com financiamento internacional, igrejas e anarquistas.
Essa luta contra a repressão tende a se tornar cada vez maior e uma pauta de alcance transversal, abrangendo o conjunto dos explorados e despossuídos. Acompanhando a constante histórica de a repressão genocida ser o limite dado a todo movimento reivindicatório na luta de classes no Brasil, o governo Bolsonaro promete colocar a super exploração do capitalismo brasileiro num novo patamar a custa de práticas escravocratas de espoliação generalizada dos direitos sociais e trabalhistas que promete ser viabilizada pelo genocídio, repressão e encarceramento em massa. Dessa forma, a luta de auto-defesa contra essa escalada da necropolítica genocida se torna inescapavelmente central para os rumos da luta de classes.
Hoje, em São Paulo, participo pelo Quilombo Invisível de dois espaços que visam avançar nessas lutas: a Frente Estadual pelo Desencarceramento de São Paulo e a Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio. Fortalecer essas e outras experiências de resistência a repressão me parece uma condição preliminar para avançar na luta de classes hoje.
Por Gabriel Silva – Bancário e militante do Quilombo Invisível.
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