Manchete da Ponte Jornalismo em 03/09/2019
Segunda carta
Uma das primeiras expressões adultas que compreendi com fundura, ainda criança, era “não tem dinheiro”.
A fome te faz aprender muitas coisas.
O cérebro de quem tem fome agarra outras palavras no vento, se pega em significados outros, atina com coisas que outros não veem. (assim como também deixamos muitas coisas passarem por nós sem que as possamos agarrar).
“Não tem dinheiro” significava isso mesmo, que simplesmente não havia dinheiro, mas significava também que não fizesse alguém sofrer insistindo em pedir aquilo que não se pode dar, significava que outras prioridades haviam de ser garantidas no longo caminho que provavelmente nunca chegaria a passar por aquele “algo fútil”. “Não tem dinheiro” também dizia respeito a uma parede, um muro, um abismo ou o final de alguma estrada – a impossibilidade objetiva de certo desejo seguir adiante.
Nós só não ouvíamos mais vezes a expressão “não tem dinheiro” porque nossos cérebros eram rápidos em assimilar o entendimento do que não era fútil embora nossas lombrigas, silenciadas pelo peso da razão com fome, nunca deixassem de remexer nas barrigas quando algo “fútil” despertava a água em nossa boca.
Naquele dia em que tive de comprar fubá no supermercado do bairro, eu atravessei o corredor dos laticínios fugindo das palavras tentadoras que os danones sussurravam de seus lugares na prateleira. Eu sabia que “não tem dinheiro” e avancei sem olhar para os lados, afastando os diabos que sentavam para em seguida caírem dos meus ombros. Ao contrário dos desenhos animados, nunca houveram anjos cochichando coisas: eram ou pessoas vivas, me ensinando lições antigas cuja “moral” da história era sobreviver ou diabinhos – estes sim existiam como aura de enxofre das propagandas de todas as coisas deliciosas e sempre inacessíveis.
Minhas lombrigas gritavam e eu pensava porque não comer o que eu queria? ninguém iria ver e eu não gastaria nada. Com o fubá numa das mãos e o dinheiro contado na outra, regressei pelo mesmo corredor por onde entrara e, depois de vê-lo esvaziar, furei um danone com os dedos e enquanto eu bebia aqueles goles de olhos fechados, senti a mão pesada de homem pousar nos meus ombros.
Abri os olhos mas não queria ver; meu coração estava tão acelerado que eu parecia um coelho preso na boca de um leão antes de ser engolido. Era um homem alto, negro, que trabalhava como segurança e que vinha me dizer que o que eu estava fazendo era errado. Com oito anos eu era alta mas pequena ainda em comparação com aquela montanha masculina que se afigurava diante de mim e eu estava ainda menor, o medo reduziu meu tamanho naquele minuto.
Eu já o conhecia.
Os mercados de bairro sempre tinham trabalhadores que viviam mesmo por ali e este homem, vez ou outra, passava pela rua onde eu vivia – de passagem para algum lugar e sempre cumprimentava meu pai.
– O que você fez é errado. Vá para sua casa e não faça isso nunca mais. Seu pai teria vergonha de saber.
Eu não podia piscar os olhos porque senão as lágrimas cairiam e não poderia correr porque minhas pernas não estavam firmes. O encarei em silêncio, baixando o rosto a olhar o chão no infinito espaço que me separava do caixa, onde paguei o fubá.
Quando meus pés tocaram o chão da calçada, as lágrimas desciam pelo meu rosto e a taquicardia do meu peito tomou conta de mim como se eu tivesse corações acelerados batendo por todas as partes do meu corpo que mal conseguia caminhar.
Pouco antes de chegar à minha casa, parei e pedi um pouco d’água a uma senhora que lavava o quintal. Eu bebi água no bico da mangueira e molhei o rosto para conter todo o pavor e raiva e humilhação que se batiam dentro da minha carne de oito anos.
Cheguei em casa quieta, entreguei à minha mãe o que comprara e as moedas que sobraram. Eu peguei o violão de meu pai e subi na laje da casa vizinha – o único lugar onde nessa época era possível estar só. Aí, com meus três acordes de até hoje, olhava o céu por cima dos morros cheios de barracos no horizonte e esperei ansiosamente ver aquele homem fazer sua passagem pela minha rua, quase desfalecendo de medo de que ele contasse a meu pai o que havia acontecido.
O homem passou, eu o vi, ele não me viu, mas comprimentou meu pai sem tentar lhe dizer nada.
Eu desmanchei e me transformei numa poça sem forma, eu era água pura e soluços. Chorei tanto que meus olhos ardiam mas era alívio o que eu sentia. Meu pai sempre dizia que nós éramos trabalhadores – ainda que eu fosse criança e ainda que fosse mulher, ele falava assim para designar a nós todos em contraposição aos “parasitas que roubam do nosso trabalho”. Ele dizia sempre referindo-se ao presidente almofadinha mas eu me pelava de medo porque se meu pai soubesse…
Passei semanas cabisbaixa, observadora de todos os sinais.
Meu pai nunca soube. Nem o homem contou a ele e nem eu.
Temos esse segredo em comum, não me lembro de seu nome, cruzei seu rosto algumas outras vezes, anos depois, em meu bairro e ele parecia orgulhar-se de sua conduta ao ver-me adulta e sã.
Muitos anos depois, eu caminhava pelas seções de algum supermercado chique e meu companheiro escondia sob a jaqueta uma garrafa de vinho. Eu não podia entender e tampouco podia explicar o que sentia. Eu já era marxista e estava me lixando para aquela grande empresa varejista de consumo gourmet. Mas eu não conseguia fazer o mesmo. Eu paralisava. Aquilo para mim nunca se associou a um hobbie ou a alguma aventura transgressora: eu apenas me lembrava da fome e das palavras “não tem dinheiro”.
Eu não queria me sentir assim, eu não queria ter de calar as minhas lombrigas como tampouco de ter de calar a minha sensação de medo, de risco, de impotência faminta e humilhada. Queria beber um trago daquela ostentação de ousadia com que desfilavam meus amigos de esquerda aparentemente muito mais corajosos e transgressores do que eu por corredores de supermercados..
Como se pode perceber, na vida que seguiu, nunca tive anjos a cochicharem conselhos nos meus ouvidos: sempre houveram diabos, pensamentos e desejos interpelados por advertências antigas de sobrevivência.
Eu habitava dois mundos ao mesmo tempo e pouca ou nenhuma era a gente que sabia de tudo o quanto eu carregava por dentro enquanto fazia discursos e caminhava lado a lado com pessoas que em nada se assemelhavam aos meus mortos.
Se eu fosse menino ao invés de ser menina, teria eu reagido da mesma forma? Se fosse eu menino ao invés de ser menina, teria o homem-segurança reagido de outra forma? Se eu tivesse insistido em tentar dar de comer a meus desejos, sem fazer tanta força em bloquear alguns deles para não causar sofrimento alheio, como eu seria agora? Talvez me profissionalizasse – eu sempre fui esperta e sempre aprendi rápido. Talvez estivesse presa. Talvez nada. Talvez não existe.
Tempos atrás eu li uma coisa em que o homem dizia: “a face mais digna da miséria é a violência”. Ainda não sei o que fazer dessa memória. Eu era criança demais para ser digna. Hoje não mais. Tenho medo do que poderia se passar se tudo acontecesse agora. O ódio com que alimento minhas lombrigas silenciadas deixou-as vivas e sempre selvagens.
O mapinguari me habita.
Água na boca.
E eu eu ainda tenho fome.
Por Helena Silvestre – Ativista favelada e afroindígena, fortaleço as lutas pela libertação de corpos e territórios através da militância com o povo sem-teto, sem-terra, negro e indígena dos quais sou parte. Escritora autoproclamada, estudante de Saúde Pública e educadora clandestina. Marxista por reivindicação, antropóloga por gosto de conhecer diferenças, chorona porque leonina e aprendiz da agroecologia, da astrologia e da cultura dos orixás. Uma das editoras da Revista Amazonas e parte do movimento Luta Popular.
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