
I[1]
Eram os seus dias de luta. Queria-os melhores! Começavam longos, barulhentos, mal servidos; sem dinheiro ou vaga em creche, entregava-me a vizinha, beijava-me. Com dois anos de idade não recordo esse drama, mas sei que as pessoas iam tão amontoadas no trem que se tinha dificuldades para mexer os cotovelos. O suor escorria por todas as frontes; primeiro dia de um trabalho. Sonhava com as possibilidades da parca diária.
Como uma cintilante estrela solitária cruzou o chão quente da cidade e se deparou com uma dessas casas funcionais de classe média. Então viu-se avançar sobre o quintal convidada por uma velha senhora, que parecia empantufar-se em roupas de gosto duvidoso. Seu rosto era mais plissado de rugas do que maracujá maduro, e das mangas da camisa ultrapassavam duas longas mãos cujas veias verdes sob a pele clara tornavam-se repulsivas.
Um pouco com timidez iniciou o trabalho sob olhares inquiridores da velha senhora. Com a vassoura varreu toda a casa e com um pano acabou com a poeira. A força de ter servido, dolorosamente como seus antepassados, apresentava por si só os humildes testemunhos de tantos sofrimentos suportados. Indiferente a isso, a velha senhora ia atrás passando o dedo nos móveis para conferir. Um ultraje e num relance lancinante exclamou: “Escuta aqui dona, vá para lá que eu não gosto de ninguém me enchendo o saco não!
Algo de uma rigidez inesperada realçou o rosto da velha. Se, nenhum sentimento amolecia aquele olhar pálido, a afronta de uma trabalhadora que não se calava causou espanto. Desabou no sofá como se fosse desfalecer e ficou sem graça. Mais tarde, porém, não engolindo o torrão da ofensa, a velha senhora foi certificar-se da lavagem do quintal e vendo que nada podia dizer, imperiosamente ordenou: “você precisa lavar a rua!”.
“Quer saber!”, retrucou de imediato, “pegue a mangueira e lave a senhora, porque não sou paga para lavar a rua!”.
“Eu não acredito que você está falando isso para mim!”
“Pois estou, vamos pegue a mangueira e lave a senhora!”
“Fora da minha casa!”
“Nem precisa pedir!”, – fez retirando imediatamente o avental.
“O que?”
“É isso mesmo, tome!” – lançou o avental na respeitável senhora que com ódio bradou:
“Só que você não sai daqui sem eu revistar a sua bolsa!”
“O que você está dizendo mulher? Olha só eu vou contar até três se você não sair da minha frente eu enfio a minha mão na sua cara!”. E como uma pantera avançou portão afora. A impotência da sensação penetrada por uma injustiça secular doía-lhe no peito (nada mudou) e, como grãos de areia numa ventania, turbilhonavam seus batimentos que espalhava o constrangimento sobre a sua alma. Ela abriu as narinas repetidas vezes, nervosamente, quando se lembrou que não tinha recebido a diária e nem tinha o dinheiro da passagem para voltar para casa. Revirou a bolsa, enxugou as mãos; depois, observou ao seu redor e constatou que teria que pedir dinheiro para o retorno…
[1] Doravante quinzenalmente.
Por Douglas Rodrigues Barros, doutorando em Ética e filosofia política pela UNIFESP, romancista e autor de “Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para uma crítica à metafísica racial.”.
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