Na segunda-feira, dia 21/10/2019, aconteceu uma palestra da Angela Davis no auditório do Parque Ibirapuera em São Paulo. O debate fugiu totalmente do roteiro comum do lançamento de livros de intelectuais famosos, tendo se convertido num verdadeiro ato político de massas. A estimativa divulgada na grande mídia fala de mais de 15 mil pessoas no auditório do Ibirapuera. Tal número espanta e causa perplexidade por ser muito superior do que a capacidade comum de mobilização do movimento negro brasileiro atualmente, nem em atos políticos em situações graves com grande repercussão midiática, como o recente assassinato com um tiro na cabeça da menina Ágatha de 8 anos no Rio de Janeiro, ou o caso do jovem torturado com chicoteadas num supermercado por roubar chocolates, em nenhuma dessas situações as coalizões do movimento negro conseguiram mobilizar sequer um quinto dessa massa em São Paulo. Nos últimos anos somente no assassinato da vereadora Marielle Franco vimos mobilizações de massas em torno da questão negra.
Ao assistir essa impactante palestra, duas questões não pararam de martelar na minha cabeça, vindo as mais variadas e contraditórias respostas: Qual é o motivo de a Angela Davis mobilizar tamanha massa? E qual é o motivo de não existir hoje nenhum outrx intelectual ou militante que se apresente como revolucionário brasileiro, seja negrx, seja brancx, a ter capacidade de mobilização semelhante?
Logo que cheguei, pouco antes da fala de Davis começar, admito que fiquei desconfortável pela estrutura espetacular e ostensiva do auditório do Ibirapuera, com um gigantesco painel onde estava projetado um enorme rosto de Angela Davis ao lado do logo de empresas capitalistas como Banco Itaú, Editora Boitempo e outras, constava também o financiamento da fundação Rosa Luxemburgo. Admito que tive pensamentos pessimistas ao ver isso, pensando que um evento de uma intelectual socialista que um grande banco se sente confortável em por o nome não representa perigo algum a ordem capitalista. Pensei em como os capitalistas hoje tem excessivo controle sobre os próprios movimentos que se pretendem insurgentes e sobre como somos colonizados. Também especulei o quanto de lucro estava em jogo ali, quanto a Angela Davis teria faturado nessa vinda ao Brasil, e quais os lucros que a editora Boitempo estaria tendo com a venda de seus livros. Me veio à cabeça a crítica de revolucionários como Mikhail Bakunin e Jan Waclaw Makhaiski aos intelectuais, pensando os intelectuais como parte da classe dominante, pessoas com uma relação oportunista com a luta dos explorados e que se beneficiam da exploração capitalista. Também refleti sobre a projeção midiática e espetacular do nome da Angela Davis, e nesse primeiro momento atribui o público massivo ali presente sobretudo a essa estrutura capitalista midiática.
Mas um sentimento contraditório se alimentava junto a esse pessimismo, pois fiquei andando pela frente do palco e encontrei muitos conhecidas(os). Encontrei uma grande quantidade de amigos de classe média (ou pequeno burgueses, se preferir) de maioria conhecidos da USP e brancos, por outro lado também uma grande quantidade de amigas, amigos e ativistas da quebrada, encontrei gente do Grajaú, Parelheiros, Santana, e das periferias de Diadema, Mauá, Osasco, etc. Se destacava a grande quantidade de mulheres negras presentes, que apesar de não chegarem a serem a maioria do público, eram uma concentração que impressionava. Tal variedade de público é muito rara no Brasil, me lembrando momentos singulares como junho de 2013 e as ocupações de escola que chegou unir frações sociais normalmente incomunicáveis. Também nunca vi no Brasil um público branco proporcionalmente tão abrangente numa palestra de pauta tão marcadamente negra. Recordei bondoso que conseguir unir brancos em torna da luta anti-racista era parte da perigo que representaram os panteras negras à ordem dominantes estadunidense.
Quando começou a palestra, parte desse sentimento inicial ruim rapidamente deu lugar a um fraterno entusiasmo. Admito que tenho uma relação de muito carinho com as obras que tive a oportunidade de ler da Angela, que são livros que tiveram forte impacto na minha vida concreta e nas escolhas políticas que tomei nos últimos anos. Davis é muito coerente e carismática, sua fala aponta para uma perspectiva de unificação das várias lutas. Ela pensa conjuntamente, dentro de uma perspectiva anticapitalista, a luta abolicionista, climática, indígena, negra, anti-proibicionista, trabalhista, feminina, LGBT, e as diferentes revoltas que tem acontecido pelo globo em uma perspectiva comum. Me enche de entusiasmo ver alguém que ouse fazer isso de forma tão bem articulada. Sua fala não promove concessões fáceis, trazendo críticas à burguesia negra e à burguesia feminina, deixando claro que sua perspectiva é revolucionária e anti-capitalista, e não de integração dos explorados e oprimidos.
Ouvindo-a, rapidamente me dei conta de como aquela massa ali presente também era de fato mobilizada por aquele discurso que chega a soar espectral, vindo de uma tradição revolucionária tão rara, quase completamente ausente do discurso das lideranças políticas, brancas ou negras, mulheres ou homens, no Brasil hoje. A tradição de esquerda brasileira tem sido marcada nos últimos anos por um forte integração as instituições do Estado, de forma que o próprio movimento negro tem utilizado suas forças sobretudo em pautas de ascensão individual dos negros (como o foco na luta por cotas em universidade e na construção de cursinhos populares) e não nas grandes questões das massas negras como as questões sociais, ou do genocídio e o encarceramento.
Isso chegou a ressoar na fala de Davis, que ao dialogar com a esquerda local se restringiu a se posicionar contra a repressão, falando “Lula Livre” e “Preta livre”, mas destoando de forma muito forte com o posicionamento programático de quase toda a esquerda nacional. A própria Davis acabou também sendo crítica ao fato inusitado de sua palestra se tornar um evento tão grande, criticando a desproporção de como ela é super valorizada e autoras nacionais que fizeram proposição política semelhante a sua no passado, como Lélia Gonzales, serem desconhecidas, e de como é necessário que se construa um verdadeiro diálogo internacionalista entre as lutas do Brasil e EUA que não se resuma a uma submissão acrítica a ideias pré legitimadas por serem de um país imperialista.
É curioso que eu mesmo já fui criticado por notórias figuras do movimento negro por estar seguindo “pautas de branco” ao ajudar a organizar a marcha da maconha na periferia trazendo a conexão que Davis faz entre racismo, encarceramento e guerra às drogas. Por outro lado cheguei a ser entre ridicularizado ou ignorado ao tentar trazer tais debates em espaços sindicais, estudantis ou dos movimentos sociais que participei, que são majoritariamente brancos (como quase todos os espaços de cúpula de organizações no Brasil) e reproduzem fortes práticas racistas, sendo inclusive comprar uma polêmica defender a relação entre luta anti-racista e luta de classes. De forma que senti na pele na minha militância como é raro e difícil um discurso como o da Davis emergir no Brasil. Mas por qual motivo é tão difícil surgirem quadros com um pensamento como o dela no Brasil?
Uma esquerda fruto de um projeto eugenista:
Por quatro séculos, os negros e indígenas foram a principal força de trabalho no Brasil. Por quatro séculos, a economia brasileira esteve submetida aos interesses coloniais e teve no escravismo de base racial sua ideologia oficial. As próprias classes dominantes que se formaram aqui mantiveram uma profunda filiação ideológica e econômica com as metrópoles colonizadoras. Mesmo nas famílias burguesas miscigenadas cujas origens são efetivamente locais (africanas e indígenas) é muito comum se auto definir como pertencentes a uma suposta raça superior estrangeira. Durante esse tempo, a luta de classes no Brasil foi uma luta genocida e militar contra as resistências dos povos indígenas e africanos, os brancos não tinham um papel abrangente como força de trabalho na economia, representando um setor residual na lutas de classes desse período. Portanto, durante os quatro primeiros séculos de “Brasil”, a luta de classes teve um caráter de luta contra a dominação escravocrata e imperialista com sua expressão ideológica de supremacia racial no Brasil.
A ideologia da supremacia racial dava contornos de luta de raça a luta de classes, por mais que raça seja um conceito fantasmagórico sem existência real para além da ideologia, já que as raças foram inventadas para justificar a exploração e opressão intensa de uma parcela da população e não existem de fato. Digo isso pois existiram ricos escravocratas de origem africana e indígena, assim como muitos agentes da repressão, capitães do mato, bandeirantes, etc. Inclusive, em muitos casos, viam a si mesmo como brancos apesar de sua origem negra ou indígena, um tipo que ainda é muito comum no Brasil, um país profundamente marcada por uma confusa crise de identidade. De outro lado, a resistência contra os exploradores envolvia com alguma frequência a união de negros, indígenas, mestiços e brancos pobres, o Quilombo dos Palmares e Canudos são fortes exemplos nesse sentido.
Com a abolição da escravidão no fim do século XIX e o impulso ao processo de industrialização no início do século XX, o Estado brasileiro decretou, baseado em teorias eugenistas, que todos os problemas nacionais eram fruto das raças decadentes que são maioria no Brasil, ou seja, as classes subalternas de origem africana e indígena seriam a origem de todos os males. A partir disso, se iniciou um processo de importação de mão de obra “branca” que trouxe trabalhadores pobres da Itália, Alemanha, Espanha, Portugal e Japão. Desde então os melhores empregos livres no Brasil são exclusivamente dos brancos, sendo os negros renegados aos piores trabalhos, exércitos de desempregados, de trabalhadores ambulantes e empregadas domésticas, sendo, por mais de um século, a imensa massa do exército industrial de reserva brasileiro a povoar guetos e ser alvo das mais brutais políticas repressivas.
Logo, somente no século XX o principal da luta de classes no Brasil ganha contornos clássicos de conflito entre trabalhadores livres e capitalistas. Porém, astutamente, as classes dominantes locais instauraram uma divisão fundamental entre esses trabalhadores livres, tornando os trabalhadores livres majoritariamente “brancos”, e deixando as massas depauperadas, de maioria afro-indígena. O movimento sindical que floresce com a industrialização no Brasil se manteve em toda a sua história hegemonizado por trabalhadores que, em maioria, aceitaram o discurso ideológico da divisão racial com seus supostos privilégios brancos que lhe proporcionavam vantagens no mercado de trabalho. Mas esse suposto privilégio é, na realidade, a castração da possibilidade de resistência dos trabalhadores, pois as grandes organizações sindicais, ao se limitarem a lidar exclusivamente com as questões dos trabalhadores brancos, ficaram sem a capacidade de mobilizar em unidade os trabalhadores das grandes massas depauperadas brasileiras, enfraquecendo a imensa potência da luta de classes no Brasil.
Essa realidade nos legou a situação atual, onde a cúpula de todos os principais partidos, sindicatos e movimentos sociais no Brasil são brancas e tem grande dificuldade em levar a sério o problema gerado pelo legado eugenista do Estado brasileiro. Pior ainda, tendem a reproduzir o racismo e as consequências macabras de divisão social criada pelo projeto eugenista das classes dominantes brasileiras. Um raro artigo que elabora com qualidade esse problema ao tratar da formação teórica da esquerda radical no Brasil é o “Uma esquerda marxista fora do lugar”, de Márcio Farias. Nele, Farias mostra como, apesar do marxismo brasileiro ter produzido autores que pensam com radicalidade a questão de classe e raça (como a própria Lélia Gonzales, Clóvis Moura e outros), as organizações não se deixaram influenciar por esses autores e seguiram pensando com moldes teóricos importados que desprezam o problema racial no Brasil e, portanto, são incapazes de entender como se dá ou atuar com sucesso na luta de classes aqui.
Não tenho bagagem teórica para me arriscar a fazer uma mesma contextualização resumida da formação da esquerda brasileira em torno da questão feminista, mas o problema é semelhante: as mulheres são maioria entre desempregados e empregos precários, a principal profissão feminina ainda é o trabalho doméstico que no Brasil segue sendo o mais palpável resquício vivo de relações escravocratas, as mulheres são minoria na direção de espaços políticos de esquerda e tem suas reivindicações sumariamente ignoradas e desprezadas pelo grosso da esquerda, que historicamente não tem pudor algum em reproduzir o machismo.
Nesse sentido, a potência da recepção de massas da Angela Davis serve para demonstrar como tratar de mulher, raça e classe numa perspectiva minimamente coerente, radical e anti-capitalista tem uma imensa potência e como de fato existe uma imensa demanda represada em relação a esse debate no Brasil.
Conclusão: sobre minha experiência pessoal com a obra de Angela Davis e a necessidade de trazer a perspectiva da totalidade para as lutas.
A primeira vez que li Angela Davis foi em 2016, quando fui presenteado por uma pessoa muito querida com uma edição de “Mulher, raça e classe”. O livro foi um verdadeiro raio de luz na escuridão em um período muito turbulento no qual eu estava em uma forte crise de referências políticas.
Nessa época, vários dos espaços políticos que eu frequentava foram se tornando, cada vez mais, verdadeiros espaços de formulação anti movimento negro e anti Feminista. Devo ressaltar que isso não foi um fenômeno que presenciei somente em um ou dois coletivos, foi um avanço reacionário abrangente que se fortaleceu muito a nível nacional em organizações pretensamente revolucionárias em 2016. Esse processo me abalou muito e teve consequências extremamente reacionárias para as lutas que participava, nos enfraquecendo muito e tornando as organizações ainda mais elitistas e delirantes. Mesmo minhas condições de militância e saúde mental se degradaram imensamente em um curto período de tempo com o fortalecimento do racismo e do machismo nesses espaços. A leitura de Angela Davis reforçou em mim a convicção da necessidade de pensar a luta de classes dentro de uma perspectiva de totalidade, que não poderia dar espaço para o fortalecimento do racismo e do machismo dividindo os lutadores.
Em “Mulher, Raça e classe” são feitas análises de paralelos históricos em relação a luta de trabalhadores, mulheres e negros de diferentes classes sociais. Segundo Davis o limite colocado para a possibilidade de avanço das lutas de mulheres trabalhadoras, assim como de negros e negras nos EUA foi dado em muito pela falta de independência de classe. Ela mostra, com ironia, como mulheres burguesas brancas escravocratas dirigiram muito do movimento abolicionista, o que fez com que o movimento fosse contido a estreitos limites e facilmente desmontado quando desagradava os escravocratas. Mostrou como negros que ascenderam às classes dominantes também dirigiram muito dos movimentos de demandas negras no pós abolição, o que também resultou no enfraquecimento dos trabalhadores negros. A mesma situação acontecia com as pautas específicas das mulheres trabalhadoras, que com frequência eram dirigidas em seus próprios movimentos de luta por mulheres burguesas com interesses opostos aos seus.
Tal análise na época soou como música aos meus ouvidos e me motivou longos estudos sobre independência de classes, assim como sobre as lutas negras. Para mim é evidente que no Brasil passamos por problema idêntico historicamente, nossos movimentos sociais, sindicais e estudantis sendo dirigidos por figuras burguesas que a qualquer ameaça de descontrole que ponha em risco seus interesses de dominação de classe tem facilidade em desmontar o movimento. Essa dinâmica de entender as disputas de classe interna ao próprio movimento dos trabalhadores me parece central para poder avançar nas lutas hoje.
Mais tarde, já em 2018 e novamente através de mãos muito queridas, li outro livro da Davis, um livro de entrevistas, artigos e discursos chamado “A liberdade é uma luta constante”, que novamente veio ao meu socorro num momento de tomar decisões difíceis. Esse livro veio me encher de coragem que fortaleceu minha vontade a seguir construindo espaços como o Quilombo invisível, a Frente Estadual Pelo desencarceramento e a Rede contra o genocídio. O livro é um refresco nessa conjuntura marcada por uma covardia crescente na esquerda brasileira, que limita seus sonhos de transformação a um mítico retorno aos tempos de conciliação de classes.
Acredito que as contradições que apontei no início do texto devem ser levadas a sério, que precisemos de um espetáculo montado em cima de uma intelectual negra norte-americana para juntar massas nesse debate é um fato que deve ser encarado com triste reflexão e crítica por parte dos militantes para pensar a razão da nossa atual impotência política. Ainda assim, esse evento prova o quão represado é o debate sobre gênero e raça dentro da esquerda revolucionária e fortalece a perspectiva de se pensar a luta de forma mais abrangente e realmente internacionalista.
Marcio Farias, Uma esquerda marxista fora do lugar: http://periodicos.unb.br/index.php/SER_Social/article/view/14946/13265
Sobre Jan Waclaw Makhaiski: https://passapalavra.info/2017/04/111586/
Por Gabriel Silva – Bancário e militante do Quilombo Invisível.
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