Dia 08 de novembro, todos os jornais do Brasil e diversos veículos internacionais noticiaram: depois de mais de 500 dias de prisão, o ex-presidente Lula foi libertado e muitas comemorações foram anunciadas nas páginas de militantes e de algumas organizações políticas.
Dia 08 de novembro, por mais de duas horas estive em reunião com companheiras bolivianas, de La Paz e Cochabamba, tentando entender o que alí acontece e buscando maneira de – mesmo distante – colaborar de algum modo. Não é simples, não se pode ignorar os elementos reacionários que se mobilizam mas também não se deve simplesmente taxar de reacionário a tudo, dado que aí também há gente do povo, cansada dos acordos do governo boliviano com grandes grupos econômicos, fato que se refletiu em 2016 quando se realizou um referendo sobre a possibilidade de reeleição de Evo, referendo que negou esta possibilidade, ainda que por apertados 2%.
Uma semana atrás, Alberto Fernandez ganhou as eleições argentinas depois de um mandato em que o atual presidente Macri – eleito depois da era Kirchner – demonstrou-se um pesadelo para os pobres.
Duas semanas atrás, na Nicarágua, diversos coletivos de mulheres promoveram uma jornada de atividades que buscavam denunciar o Feminicídio em curso neste país, e foram duramente reprimidas pela polícia sob um governo sandinista.
O que acontece nas terras de Abya Yala?
Os anos 90 com seu sangrado realinhamento neoliberal puseram um continente em ebulição e as saídas para alguma possível “estabilidade” se deram pela via de apostar nas últimas cartadas de respiro ao regime democrático burguês, em plena decadência. Os povos pobres destes países, bastante cansados, decidiram tentar um caminho “diferente” e elegeram lideranças oriundas de movimentos que tiveram importância nas lutas dos anos ou décadas anteriores. Tentaram, de novo, mudar sua situação de vida, cada vez mais depredada, nas urnas.
De diferentes maneiras e cada qual a seu tempo, estes países atravessaram a dura realidade de ver a diferença entre o que precisavam – e que lhes fora prometido – e o que aconteceu – e foi implementado por estes presidentes, que se associaram mais ou menos a setores conservadores, aristocráticos e burocratizados incrustados no poder desde sempre. Uma onda de decepção, suavizada enquanto a economia mundial pôde suportar o alto preço de venda dos comodities.

A “suavização” permitida pela situação econômica, no entanto, não alterava em nada a continuidade e expansão da criminalização, repressão, do encarceramento e do genocídio de populações pauperizadas e potencialmente perigosas – quando rebeladas – à manutenção da ordem. Com o aprofundamento da crise em nível mundial e com a grita capitalista pela implementação de mais um “pacote de ajustes”, caíram as miseráveis políticas compensatórias, caíram algumas das “esperanças” eleitas e, com todas as quedas, foi a face violenta e autoritária do sistema que se mostrou sem disfarces vermelhos ou plurinacionais.
Anos difíceis temos vivido: as ferramentas que existem já não resolvem as tarefas pela frente, as organizações que existem não conseguem ir além das eleições, as capacidades de auto-organização popular foram vulnerabilizadas, cooptadas ou mesmo destruídas e o povo, desprovido de instrumentos e perspectivas, vaga errante pelo deserto das roletas eleitorais enquanto recolhe corpos de adolescentes pretos assassinados em qualquer viela.
O açoite do ajuste é duríssimo, arranca de nós o pouco que temos, trabalhamos três vezes mais e sequer se consegue pagar a própria vida. Não sem luta, não sem resistência – ainda que acontecendo da maneira mais confusa e exposta à manipulação por qualquer sanha religiosa e patriótica.
Somos bucha de canhão na disputa entre poderosos que desejam a cadeira e o poder da caneta: quem vai assinar as nossas sentenças de morte? Quem vai assinar a destruição da previdência? Quem vai assinar a venda e queima da Amazônia? Quem vai assinar a depredação violenta de já precarizadas relações de trabalho? Uma guerra entre os urubus se desenrola sobre nossos corpos estilhaçados por bombas ou balas de chumbo e a nossa participação esperada é a de escolher quem vai assinar nossas sentenças de morte.
As lutas acontecem; frente ao anacronismo e inoperância das organizações tradicionais, surgem outras – desqualificadas como apolíticas ou pós-modernas. Surgem por vias insuspeitas e tentam desenvolver-se em meio a este permanente estado de exceção em que até mesmo pretensos discursos alternativos as condenam, como condenaram junho de 2013 ou como desmoralizaram as ocupações das escolas por secundaristas em 2015. Não é fácil desenvolver-se assim, com fome, mas essa tecnologia acompanha nossos povos há 500 anos e nem na América do Sul nem no Brasil houveram tempos de paz.
O capital e as leis cegas do mercado e do lucro buscam reacomodar a vida em linhas de produção de morte mais aceleradas, mas como fazer sem que todo o edifício desabe? Como impor seus “paquetazos” sem perder o controle e sem que revoluções aconteçam – em busca de pão?
Será possível – onde a onda de decepção tenha revezado os urubus – requentar aquele último fôlego, aquela “última cartada” democrática? Veremos nos próximos capítulos.
Acho importante a decisão de que ninguém deva ser preso sem exaurir todas as suas possibilidades de defesa. Cerca de 40% da população carcerária brasileira – 3ª maior do mundo e expandindo-se – é formada por presos provisórios, ou seja, gente que sequer foi julgada em 1ª instância. Cada vez mais me aproximo do abolicionismo penal e acredito que enquanto pedirmos prisões, é o nosso povo, pobre, preto, indígena, nordestino e favelado quem nelas vai estar: não comemoro prisões mas posso comemorar a liberdade, caso ela não seja artigo de luxo conferido apenas a figuras de notoriedade e poder. Quero comemorar nas ruas a libertação de Rafael Braga, que depois de adoecer na prisão, continua cumprindo pena domiciliar numa casa doada, já que ele não tinha onde morar.
Por enquanto, segue o sul-realista enredo latino americano e a superestrutura vai se redesenhar à luz das candidaturas no horizonte que não vê um palmo adiante das urnas. Haverá trabalho e comida para todes? A reforma da previdência será anulada? A polícia será desmilitarizada? A reforma trabalhista será anulada? Serão banidas as megacorporações da Amazônia? Serão libertados os milhares de presos sem condenação? Serão banidos os que especulam com comida, terras e aluguel? Não acontecerá, ao menos não pelas mãos de nenhum eleito ou eleita.
A última cartada se prepara para requentar uma receita mas encontra na realidade ingredientes novos. A vida vai seguir resistindo ao genocídio que, há 500 anos não nos deu nem um mandato de trégua, a vida continua de pé, como uma muralha metralhada todos os dias em plena democracia dos ricos.
Se algo se pode aprender do que vemos explodir por todas as partes é que confiar o próprio destino a mãos alheias é um erro grave que nos leva, como humanidade, ao fracasso. Somente nós somos capazes de mudar as nossas realidades e é preciso se organizar sem apostar todas as fichas da esperança em nenhum “salvador”. Os “salvadores” surgem nos momentos em que desesperadamente terceirizamos nossa luta e permitimos que alguém se coloque acima de todes, quando tributamos a alguém a riqueza que são os nossos desejos de futuro, desejos que só devem confiar em nossas próprias mãos e nas mãos que encontramos cheias de barro, horizontalmente, no plantio partilhado do mundo novo.
Enquanto se requenta a última cartada, nos aproximamos do abismo e a natureza assassinada em nome do desenvolvimento, e os povos assassinados em nome da civilização, e o endividamento dos pobres em nome do consumo desacompanhado de direitos, e a expansão do Feminicídio nessa sociedade misógina denunciam: o castelo de cartas está ruindo e, aos pobres, não sobra nenhuma alternativa que não seja a de se cuidar, de aprender e de organizar-se para construir a nossa única saída, o autogoverno.
Por Helena Silvestre – Ativista favelada e afroindígena, fortaleço as lutas pela libertação de corpos e territórios através da militância com o povo sem-teto, sem-terra, negro e indígena dos quais sou parte. Escritora autoproclamada, estudante de Saúde Pública e educadora clandestina. Marxista por reivindicação, antropóloga por gosto de conhecer diferenças, chorona porque leonina e aprendiz da agroecologia, da astrologia e da cultura dos orixás. Uma das editoras da Revista Amazonas e parte do movimento Luta Popular..
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Textão foodaa!!!