“…todos os meios para o desenvolvimento da produção se convertem em meios para a dominação e exploração do produtor, mutilam o trabalhador, transformando-o em um ser parcial, degradam-no, tornando-o um apêndice da máquina”
“o tempo é tudo, o homem é nada, é quando muito carcaça do tempo”
Karl Marx, O Capital
“…consumo e destruição vêm a ser equivalentes funcionais do ponto de vista perverso do processo de ‘realização’ capitalista”
Istvan Mészáros, Para além do Capital
“O espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem”
Guy Debord, A Sociedade do Espetáculo”
O filme “Coringa” chega aos cinemas num contexto em que a sétima arte foi engolida pela nona: nos últimos 15 ou 20 anos os filmes baseados em personagens de histórias em quadrinhos saíram de uma condição de subgênero marginal para se tornarem o principal filão comercial da indústria. Impondo-se tal qual uma fórmula de produção industrial de sucesso, os filmes de super-heróis acentuaram certos traços que o cinema já vinha desenvolvendo, como a desvinculação do mundo real rumo à fantasia, o maniqueísmo rasteiro como ferramenta básica dos roteiros, o final feliz como desfecho obrigatório das narrativas, a dependência de efeitos visuais em detrimento da exigência de boas histórias, o interesse mercadológico em produtos secundários (merchandising de bonecos, camisetas, cadernos, bugigangas), etc.
Dentro desse contexto, o filme sobre o arquiinimigo do Batman destoa por buscar justamente o contrário dessas tendências, propondo-se a retratar aspectos do mundo real, alicerçando-se num roteiro consistente e em interpretações maduras. Não se trata das peripécias de um vilão caricatural contra seu arquiinimigo, o abnegado vigilante mascarado, num cenário já pronto em que o “bem” enfrenta o “mal”, mas da narração cuidadosa e convincente do processo por meio do qual uma pessoa comum, um trabalhador chamado Arthur Fleck, se torna um assassino psicopata. A ambientação da história é a cidade fictícia de Gotham, numa época indeterminada, anterior ao advento da internet e dos celulares, mas a caracterização dessa metrópole traz elementos que são comuns a qualquer grande cidade de hoje.
A começar pela precarização e deterioração dos serviços públicos: há uma greve dos lixeiros em andamento e a cidade está tomada pelo lixo. Ratos e outros tipos de pragas e são vistos nas ruas, doenças são mencionadas nos noticiários. O serviço de saúde pública e assistência social da cidade está passando por cortes orçamentários e o protagonista (ou será antagonista?) deixará de ter acesso a consultas e medicações que mitigavam a sua condição psiquiátrica (um distúrbio que provoca gargalhadas incontroláveis a despeito do estado emocional da pessoa). E para variar, um mega empresário, Thomas Wayne (ele mesmo, o pai do Bruce), anuncia que planeja se candidatar à prefeitura para resolver os problemas da cidade. Afinal, os problemas devem ser todos resultado de má gestão, coisa que somente um grande empresário poderia consertar, e as queixas dos pobres seriam todas produto de ressentimento e indolência.
Em meio a uma crise econômica e social, Arthur Fleck tenta sobreviver como palhaço, contratado por uma agência chamada “Ha Ha”, que terceiriza profissionais circenses. Com os ganhos reduzidos advindos dessa atividade, ele sobrevive com a mãe idosa e doente num apartamento minúsculo, num prédio caindo aos pedaços. Solitário, sem amigos, ele flerta com a vizinha que mora no mesmo andar, mas apenas na imaginação, como um típico “incel” (celibatário involuntário, como são chamados em inglês), mas a princípio bastante cordato e inofensivo, e sonha com a chance de se tornar comediante de “stand up”. Uma de suas poucas diversões é o “talk show” do apresentador Murray Franklin, o grande astro da TV de Gotham.
Graças a uma sequência interminável de acontecimentos desfavoráveis, Fleck se vê desempregado, sem medicação, com a mãe internada em estado grave, desenganado em seu sonho de se tornar comediante e ainda desconcertado pela descoberta de sua adoção e dos abusos que ele e a mãe sofreram (dos quais não se sabe se ele mesmo tinha alguma memória). Depois de uma enésima humilhação, ele reage matando a tiros três valentões que o espancavam no metrô. Nessa ocasião ele estava ainda com maquiagem de palhaço, sendo assim relatado por uma testemunha dos tiros. O misterioso palhaço assassino do metrô se torna inimigo público número 1 nas manchetes dos jornais e TVs por ter matado jovens empregados de colarinho branco da corporação Wayne, mas a despeito da intensa campanha da mídia contra ele, esse personagem se converte em símbolo de protesto dos pobres contra os ricos da cidade.
A máscara de palhaço começa a ser usada em massa nos protestos, conforme as declarações elitistas do pré-candidato Wayne atraem contra o milionário manifestações cada vez mais numerosas e raivosas dos trabalhadores pobres e desempregados. Enquanto as manifestações se avolumam e radicalizam, Fleck passa a ser investigado pela polícia como suspeito dos assassinatos do metrô, devido às circunstâncias de sua demissão. Cada vez mais acuado e sem esperanças, nosso anti-herói não vê outra saída a não ser metamorfosear-se de vez no personagem Coringa, urdindo um plano para dar cabo da própria vida de maneira altamente espetacular, em pleno talk show de Murray (para o qual foi inesperadamente convidado devido ao sucesso de audiência de algumas cenas que “vazaram” de sua performance sofrível num clube de comédia).
As cenas “vazadas” foram usadas como objeto de deboche pelo apresentador, por isso, quando o plano é executado, é Murray que acaba sendo o alvo do tiro fatal, ao vivo para toda a cidade. O Coringa nasce para o grande público ao trucidar aquele a quem chegou a imaginar como uma espécie de pai espiritual (Freud explica). E neste momento, Gotham City está se consumindo em chamas, com manifestantes mascarados de palhaço enfrentando a polícia, saqueando e depredando o que encontram pela frente. O apoteótico final do filme é o nascimento do personagem, e o insano Coringa estaria assim pronto para ser caçado pelo Batman, se se tratasse de um filme convencional. Mas a ressonância social que essa narrativa angustiante traz consigo o tornam maior e mais importante do que os estritos moldes de uma franquia cinematográfica (de alguma forma a indústria procurará “digerir” o filme e torná-lo inofensivo, premiando-o com Oscars, por exemplo).
O elemento mais importante de onde partimos para analisar os fundamentos dessa ressonância é a caracterização do personagem principal que já mencionamos de passagem: Arthur Fleck é um trabalhador. Ele é um palhaço-Uber, um trabalhador intermitente e precarizado que presta serviço onde quer que seja chamado, sem ter garantias e segurança alguma. Como palhaço-trabalhador, ele deve se apresentar sorridente e saltitante e entregar o entretenimento esperado, a despeito de quão trágica esteja a sua vida pessoal e quanto sofrimento interior ele tenha que mascarar com as tintas da maquiagem. Nada mais adequado do que um palhaço, aquele que ri por fora e chora por dentro, para representar a condição do trabalhador.
Ao expor o palhaço como trabalhador, o filme expõe o trabalhador como palhaço. O trabalho hoje é performance, é encenação, é o ato de se conformar a uma narrativa de sucesso e positividade. O que se faz concretamente no trabalho pouco importa, o que conta é o que é apresentado. Dentro da ditadura do otimismo prevalecente, devemos todos nos apresentar sorridentes, positivos, produtivos, proativos, performáticos, excepcionais, buscando nos destacar nas avaliações, pontuações, índices, rankings, curtidas, comentários, para nos colocar na frente dos colegas/concorrentes, num contexto de competitividade desenfreada e solidariedade em extinção. É proibido fazer críticas, reclamar, dizer que há algo errado, que há descontentamento, que há sofrimento. Isso aparece como falta de educação, fere a etiqueta corporativa, e não pega bem nas redes sociais. Como palhaços, temos que sufocar no peito o descontentamento, o desespero, a revolta, e estampar no rosto um sorriso forçado e idiota. Sorria, você está sendo avaliado!
O mal-estar inerente a essa dissimulação odiosa se acumula e por vezes transborda em alguns momentos e locais específicos. Entretanto, quando há algum transbordamento inesperado, lá está, entrementes, o mecanismo infalível do espetáculo para administrar as crises, desviar a atenção, distorcer o significado das coisas, apresentar uma falsa narrativa, oferecer alguma mitologia justificadora e apologética em favor do sistema. O espetáculo é a ideologia transformada em mercadoria, e a mercadoria transformada em ideologia. Venda-se de corpo e alma, e você poderá comprar inclusive os corpos e almas alheios, oferecidos de bandeja na vitrine sempre artificialmente alegre da publicidade e das redes sociais. Meritocracia, empreendedorismo, individualismo, auto-ajuda, auto-sacrifício, resignação, foco-força-e-fé, são os mantras dessa sociabilidade em que a alienação e o fetichismo alcançam um paroxismo.
Não poderia ser de outra forma, num momento em que o capitalismo acentua radicalmente a desconexão entre produção e necessidade humana. Nos primórdios desse sistema a possibilidade de produzir objetos em larga escala a despeito de atenderem uma necessidade direta e imediatamente identificada (os produtos são fabricados sem saber se encontrarão comprador, ao contrário das formas pré-capitalistas, em que só havia produção se houvesse a “encomenda” direta correspondente à necessidade de um consumidor) parecia ser uma vantagem, pois permitiu uma multiplicação inimaginada das forças produtivas. Mas isso se deu por meio da perda de controle dos trabalhadores sobre o processo de trabalho e da capacidade de determinar os objetivos da produção (não que não houvesse classes dominantes pré-capitalistas expropriando o trabalho).
A produção se torna aparentemente um fim em si mesmo, a ideologia produtivista reza que é preciso produzir sempre mais e mais, sem se perguntar como e para quem. O fim verdadeiro dessa obsessão produtivista não são os valores de uso, mas o valor de troca que a eles adere, o qual precisa se multiplicar interminavelmente, e não admite paralisação ou mesmo sequer desaceleração do seu crescimento. A taxa de utilização decrescente das mercadorias (Mészáros) expõe a negação quase total do valor de uso em favor do valor de troca. A obsolescência programada revela a irracionalidade de uma produção destrutiva (idem): não há hoje produção que não seja ao mesmo tempo destruição de recursos, destruição ambiental, desperdício, acúmulo de lixo, poluição, etc.; e também destruição de seres humanos.
Novas necessidades artificiais são criadas incessantemente para fazer girar um círculo de consumo que não pode parar: de celulares a bombas atômicas, de fast food a automóveis, de alta costura a blocos de concreto, uma torrente colossal de recursos materiais se move irracionalmente para fazer surgir e circular esses produtos, triturando pelo caminho incontáveis vidas humanas atordoadas no rodamoinho das mercadorias. Precisamos trabalhar para sobreviver, mas nosso trabalho não produz nada realmente útil; precisamos de bens para sobreviver, mas só o que nos oferecem são mercadorias quase totalmente inúteis; temos algum tempo livre, mas ele é mero disfarce para a realização de algum consumo de mercadorias; o sistema precisa de nós, mas ao mesmo tempo nos descarta como população excedente. É assim que toda a atividade humana é mercantilizada e tornada sem sentido numa corrida interminável e inútil para multiplicar o capital: somos todos palhaços nesse sistema.
O avanço incontrolável de uma montanha de mercadorias tornadas quase instantaneamente obsoletas serve ao propósito de possibilitar o correspondente acúmulo de insaciáveis montanhas de capital, as quais, não contentes com isso, precisam também se desdobrar em montantes ainda mais vorazes de capital fictício e sem valor real. A compulsão do capital para explorar trabalho humano em jornadas cada vez mais física e mentalmente extenuantes só encontra paralelo na compulsão oposta desse mesmo capital em remover trabalho humano por meio da automação da produção e da gestão mesma, na qual os aplicativos e algoritmos substituem gestores humanos na alocação de recursos e força de trabalho.
Os trabalhadores mendigam a oportunidade de serem explorados pelos aplicativos implacáveis que agora avaliam a sua performance via notas de clientes, colegas, superiores. A paranoia da avaliação onipresente formata as atitudes, gostos, preferências, aparências em um mesmo sorriso amarelo e homogêneo. Temos todos que sorrir e fingir que está tudo bem, para continuar no jogo do BBB da empregabilidade, jogo turbinado por sistemas de controle e monitoração automatizados. Mas nem só de coerção vive esse sistema, pois ele precisa oferecer algum prêmio, uma miragem em direção à qual as almas sedentas nesse deserto de sentido possam se mover: ele nos oferece 15 minutos de fama.
O espetáculo é uma engrenagem essencial da reprodução desse mecanismo. Sem a produção constante de ideologias, discursos, narrativas que lubrifiquem o maquinário da dominação, ele já teria emperrado há muito tempo. Apresentadores de TV, celebridades, autores de auto-ajuda, palestrantes motivacionais, youtubers, digital influencers, coaches, pastores, gurus, pseudo-terapeutas e charlatães de todos os tipos, um exército de palhaços destila incansavelmente as enfadonhas babaquices apologéticas, modas e novidades, discursos e jargões, asneiras e nulidades, cenouras com as quais querem fazer com que nós, burros de carga, continuemos girando as rodas desse moinho satânico. Querem fazer de todos nós palhaços, portanto é bom que aprendamos a fazer como o palhaço Arthur Fleck, que despachou com um merecido tiro o nefasto ícone do espetáculo. Seria um bom ponto de partida.
Por Granamir, 05/11/2019
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