PT EN

14 dez 2019

Estruturas da categoria bancária a partir de sua origem.

>>Surgimento e formação da categoria bancária:

A categoria bancária nem sempre existiu no Brasil. Até 1923, não havia diferenciação entre bancário e comerciários, até 1939 era possível um bancário ser associado ao sindicato dos comerciários. A diferenciação formal só surgiu em 1923 com o nascimento da Associação dos Funcionários de Bancos do Estado de São Paulo. Em 1931, essa associação deu origem ao primeiro sindicato dos bancários no país por conta da nova legislação varguista que legalizou os sindicatos naquele ano.

Somente a partir da organização reivindicativa dos trabalhadores dos bancos que surgiu essa identidade corporativa dos bancários. Importante destacar bem este ponto, pois o que faz com que trabalhadores sejam classificados em uma determinada categoria corporativa é sua organização, o Estado força a regularização de dado campo de trabalhadores que fazem lutas comuns como uma categoria para melhor controlá-los através de restrições jurídicas – essa classificação jurídica corporativa historicamente pelo mundo costuma assumir a forma de restrições aos ramos profissionais de trabalhadores que poderiam ser contemplados pelas lutas de determinada categoria profissional, delimitação por empresa e por restrições territoriais para sua organização.

Nesse período do início do século até meados dos anos oitenta não havia tanta fragmentação de empresas entre os trabalhadores de bancos. Quero dizer com isso que, por exemplo, a limpeza dos bancos ou a segurança, eram feitos normalmente por trabalhadores diretamente contratados pelos bancos, classificados como bancários, e não por trabalhadores classificados como de outros ramos de empresas terceirizadas, como é hoje.

>>Algumas características do trabalho do sistema financeiro e  suas consequências na organização dos trabalhadores desde as origens do sindicalismo bancário brasileiro:

O sistema financeiro, que é o setor da economia que o trabalho bancário faz funcionar, tem um papel central dentro do sistema capitalista. Seu trabalho operacionaliza o próprio controle e organização dos fluxos das transações de capitais monetários dentro da economia, integrando os diferentes setores da economia, são empresas com uma rede de trabalho capilarizado por todo território nacional, também centralizando o fluxo de capitais com outros países. No Brasil, parte dos principais bancos são historicamente estatais e diretamente responsáveis pela aplicação da política econômica do Estado.

Paralisar totalmente o sistema financeiro causa imensos prejuízos a todo o conjunto da economia capitalista, impedindo a própria circulação do sangue monetário que dá vida aos vampiros capitalistas, sendo uma arma poderosíssima que está disponível a ser conquistada mais facilmente pela organização dos trabalhadores do sistema financeiro, afinal estes trabalhadores que operacionalizam o trabalho que materializa a própria existência concreta ao sistema financeiro no dia-a-dia.

As lutas dos bancários brasileiros, pelas próprias características de seu trabalho em empresas que regem políticas econômicas capilarizadas por todo o território nacional,  têm uma capacidade inerente de organização nacional e com forte disposição para pautar a política econômica geral, sendo as pautas que surgem a partir do seu local de trabalho, reivindicações econômicas e políticas tanto para a patronal quanto para o Estado, com frequência pautando os rumos da própria política econômica vigente do sistema. Essas características inerentes são alvo de ataque e desmonte constantes por parte dos banqueiros que utilizam as mais avançadas técnicas de gestão para submeter e fragmentar os trabalhadores bancários.

Essas características se mostram logo na origem do sindicalismo bancário, em 1929 já surgia a primeira tentativa de federação nacional a unir associações de bancários em todo o país, com a legalização dos sindicatos em 1931, já em 1932 os bancários realizam uma primeira greve abrangendo duas importantes cidades, Santos e São Paulo, e apenas dois anos depois em 1934, realizam a sua primeira grande greve nacional, deflagrada simultaneamente em todos os estados do país com exceção da Bahia e do Rio Grande do Sul, a greve ao paralisar o sistema financeiro nacional gerou imensos prejuízos a toda a economia brasileira, parando indiretamente o comércio nacional e internacional, prejudicando o setor cafeeiro que era então dominante na economia e arrancando uma vitória retumbante: além de conquistas salariais, conquistou políticas de Estado como o direito a aposentadoria e a assistência médica com a fundação do Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Bancários (IAPB) e o compromisso oficial do governo e empresas de que não haveria punição aos grevistas.

A rápida politização do sindicalismo bancário pode ser demonstrada, desde suas origens, com a produção de quadros para partidos e movimentos diversos, e o envolvimento em campanhas gerais como pelo salário mínimo, pela lei de férias, pela redução da jornada de trabalho para 8 horas, pelo direito de greve, pela autonomia e liberdade do movimento sindical, pela estabilidade no emprego, por assistência aos desempregados, etc.

O período de 1932 até 1964 foi o de maior ascenso do movimento dos trabalhadores bancários no Brasil. Sem entrar em maiores detalhes dos muitos avanços e recuos desse período, ele se caracterizou pela criação dos primeiros sindicatos de bancários e suas primeiras organizações regionais e nacionais, num momento de significativa ofensiva dos trabalhadores que conquistaram as principais vitórias históricas da categoria como: a jornada de trabalho de 6h, o não trabalho aos sábados, a assistência médica, a assistência previdenciária, a estabilidade no emprego (que com  golpe empresarial militar de 1964 foi totalmente perdida para os bancos privados) e salários acima da média da classe trabalhadora brasileira. Nesse período a organização política dos bancários esteve bastante atrelada ao antigo PCB. A grande diferença desse período com o pós-64 é a maior capacidade dos bancários realmente paralisarem as atividades do sistema financeiro com suas mobilizações, essa capacidade foi quase totalmente perdida no pós-64, recuperar esse poder é um tema de reflexão urgente dos lutadores que querem fazer frente aos atuais ataques

>>> Características ideológicas da formação da categoria bancária desde o seu surgimento:

A categoria bancária é historicamente um setor que exige formação educacional (atualmente 73% da categoria tem pelo menos ensino superior completo) e proporciona uma condição salarial acima da média dos trabalhadores do Brasil, são “proletários de colarinho branco”, que precisam usar roupas formais para interagir com o público. É uma profissão que envolve o contato direto com setores das classes dominantes e dos estratos médios para a gestão dos seus recursos financeiros, o que é um dos fatores a impulsionar uma forte ideologia de ascensão social, é uma categoria marcada no seu imaginário por ilusões de ascensão social e poder.

Apesar de todas as más condições de trabalho e elevados índices históricos de adoecimento, um elemento importante para compreender a mentalidade da categoria é o forte sentimento de superioridade do bancário médio em relação ao demais setores de trabalhadores e em relação aos despossuídos em geral, o imaginário da possibilidade de ascensão social é um mecanismo de controle muito forte na categoria. Os bancários ainda hoje são uma profissão estruturada de forma a permitir a realização de uma carreira profissional com diversos cargos durante a vida, mesmo que na realidade isso se restrinja a uma minoria da categoria.

Essas características fazem do medo de perder o emprego um sentimento central na categoria, que é fortalecido pela sensação de que não será possível conseguir outro emprego melhor. Também ajuda a explicar o motivo de os bancários terem historicamente um grande apego às formas jurídicas, o primeiro sindicato de bancários no Brasil só conseguiu emergir quando o sindicalismo foi legalizado pelo Estado.

Assim a categoria bancária tende a ser uma categoria de vanguarda no que diz respeito a alta qualidade de sua capacidade de organização, mas com pouco histórico de movimentos explosivos ou repentinos, sendo muito conservadora em relação a realizar ações ousadas que possam envolver riscos maiores em sua luta.

A discriminação racial também é elemento estruturador da categoria bancária que é historicamente construída no Brasil como uma categoria de brancos, no início do século XX negros (entendido aqui como pessoas com traços visíveis de origem afro-indígena em geral) não eram sequer contratados e banqueiros estiveram entre os principais incentivadores dos teóricos eugenistas que eram os ideólogos da segregação racial que caracteriza historicamente o mercado de trabalho brasileiro, negros só passam a ser mais expressivamente contratados nos bancos na massificação do sistema financeiro na década de 80, mas hoje na categoria apenas 2,2% são negros e 14% são pardos, os afro-indígenas continuam sendo portanto minoritários na categoria apesar de serem a maioria da população brasileira. Os afro-indigenas seguem com pouca chance de contratação ou de carreira dentro dos bancos.

Seja por serem muito minoritários, seja pela adesão mais ou menos explicita do sindicalismo bancário as teses eugenistas aplicadas historicamente na formação da categoria por governo e banqueiros, as pautas raciais em bancários nunca ganharam expressão, porém, o racismo é um elemento marcante e estruturante do imaginário da categoria, sendo um fator que beneficia em muito os banqueiros por facilitar a hostilidade dos bancários para com os clientes pobres e dificultar a união dos bancários com os outros trabalhadores, isso hoje é especialmente marcante no que diz respeito aos terceirizados dentro dos bancos, vigilantes e trabalhadores de limpeza que são de maioria negra, por exemplo, hoje a relação hierárquica e de falta de solidariedade entre trabalhadores bancários e terceirizados é fortemente mediada pelo racismo. Neste sentido, considero que avançar no debate racial e no combate do racismo na categoria é um elemento central para possibilitar alianças e solidariedades mais amplas de bancários com clientes, terceirizados e outros setores, inclusive para superar atritos regionais internos a categoria.

As relações de gênero também são estruturantes dentro da categoria, sendo construída historicamente como uma categoria masculinizada, situação que também tem forte impacto ideológico no imaginário da categoria. A partir da década de 80 iniciou-se uma tendência que segue ate hoje de aumento na quantidade de contratação de mulheres nos bancos, de forma que hoje elas são 48% da categoria, num primeiro momentos essas trabalhadoras eram alocadas nas funções menos prestigiadas de processamento na retaguarda, mas hoje são alocadas sobretudo para posições negociais tendo sua perspectiva de ascensão normalmente restringida a gerência média. Essa valorização das habilidades relacionais das mulheres esta também associada ao assédio sexual, principal problema estrutural desse setor a agravar o adoecimento pelo trabalho.  Apenas 7,2% das mulheres bancárias são negras ou pardas, o que mostra o efeito da dupla discriminação vivida nesse segmento, que impede a sua possibilidade de contratação pelos bancos.


A questão de gênero se torna uma questão que ganha alguma expressão no sindicalismo, que pauta alguns problemas específicos das mulheres no trabalho. O tema tem causado conflitos recentemente dentro do sindicalismo bancário, que continua sendo de imensa maioria masculino e com resistências ao aumento de poder das mulheres nos sindicatos, apesar de nos últimos anos o Sindicato de Bancários de São Paulo adotar quadros de direção femininos.

Entender a composição, as estruturas e a formação histórica de trabalhadores envolvidos em determinadas lutas comuns, é um elemento importante para conseguirmos realizar as mudanças políticas e organizativas necessárias para poder voltar a fazer avançar a luta de classes em favor dos trabalhadores.

Referências:

Sobre o surgimento do sindicalismo bancário e suas primeiras greves, ver: 1) Sindicalismo bancário: Origens, Ana Lúcia Valença de Santa Cruz, Oboré editorial, 1990; 2) O Sindicalismo bancário em São Paulo. No período de 1923 – 1944: seu significado político, Leticia Bicalho Canêdo, Edições Símbolo, 1978.

Os dados de porcentagem sobre o grau educacional e a quantidade de negros e mulheres na categoria foram extraídos de: 90 anos Fortalecendo a Democracia. Bancários de São Paulo 1923 – 2013. Sindicato dos Bancários e Financiarios de São Paulo, Osasco e Região. Editora Gráfica Atitude, 2013.

Por Gabriel Silva, bancário e militante do Quilombo Invisível.

0 Comentários

Deixe o seu comentário!

Seu e-mail não será divulgado

keyboard_arrow_up