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29 dez 2019

Couro de Gente, poemas de Uberê

?

fui perguntar pra minha mãe,

ela não sabia.

meu pai, já não via há tempos

meus avós eu já não tinha

de onde vinha tanto preto?

Ói O RAPA!

O rapa quando passa

Afasta a massa das barracas.

Um vão de repente se formou

Um assobio amigo,

um grito conhecido, serve de aviso:

é Maomé abrindo o mar de camelôs,

Vai guiando a liberdade

de vender mercadoria, 

que mesmo vinda 

do suor da testa digna,

é acusada e duramente reprimidas:

pi-ra-ta-ri-a

A barraca já fica no esquema,

pra fechar e correr.

É muito prejuízo pra efeito de uma polícia que

não tem nada melhor pra fazer.

Enquanto isso,

os verdadeiros criminosos pirateiam nossas vidas,

barateiam nossas vidas,

E ainda criam uma dívida,

pra gente pagar em imposto.

A FOTO

saiu no jornal

a foto.

mais um jovem pobre corpo morto

coberto com jornal.

O PODER DA ARTE
dinheiro: 

cédula e moeda.

poucos centímetros de papel desenhado,

e um pedacinho talhado de pedra,

obra prima dessa sociedade,

um dos maiores exemplos de poder da arte.

BANZO 
a história contada pelas bocas pretas tem a verdade e o frescor do sangue.

“saudade” é uma palavra muito usada no meu vocabulário.

ainda que eu não saiba exatamente de quê. ainda que não tenha vivido esse momento lembrado. Saudade. 

quero demais, falo demais, na minha juventude.

das migalhas do que restou da farta ceia do meu povo.

meu povo.

da riqueza que preserva o pouco, do meu povo.

eu vim chorar. cantar lamentos.

que é daí que tiro beleza e força.

da história contada pela boca.

da verdade e do frescor do meu povo.


BALANÇA
Como se pesa a escravidão brasileira

em tonelada de cana?

em cabeça de gado?

em saca de café?

barra de ouro?

e quanto pesa?

SE EU PUDESSE PERGUNTAR

SEM TER MEDO DE MORRER

Se eu pudesse perguntar sem ter medo de morrer:

e depois que você tira a farda?

o que passa na sua cabeça?

Deus me livre, que ninguém mereça

a maldade do bem de ninguém.

me diz quem vai chorar os nossos.

me diz quanto tempo dura o luto.

quem leva flores no dia dos mortos.

quem sai ganhando com isso tudo.

e quanto pesa carregar a arma.

se vale o peso de um sono tão tenso.

se eu posso mesmo dizer o que penso

me diz…

quantas vidas você já tirou?

tanto sangue fez mudar o que?

se o buraco é mais e maior.

se o problema é quem manda em você.

me diz…

ainda tem gente aí dentro?

tem vida, tem sentimento?

de baixo do colete a prova de balas

tem um coração batendo no peito?

se eu perguntar você me mata?

e depois que você tira a farda?

PACIÊNCIA

Paciência

que se não pensa

você sai penso

esbarrando tudo, menino.

Paciência,

relaxa a face, 

que a lua é fase,

e a vida é ciclo, menino.

Paciência,

e faz por onde,

que a sorte esconde

quando não se espera, menino.

Respira, menino…

Paciência.

NOSSA HISTÓRIA

e nossa história foi assim:

meio ficção,

meio ficação,

meio fixação,

e fim.

NAS FISSURAS

Queria escrever versos cheios de exclamações!

mas não paro de me interrogar…

Queria escrever versos-solução.

mas ainda nem entendi direito o problema.

Queria escrever razão, bater no peito.

mas no peito quem manda mesmo é o coração, o sentimento…

Mas não escrevo versos claros,

eu sou preto.

Nem versos diretos,

Nasci canhoto.

Então toma:

um poema cheio de contradições e rupturas

que andar nas fissuras talvez me leve mais longe

e fechar os olhos talvez me deixe ver melhor.

Talvez.

O óbvio e o que tem de mais clichê continuam

sendo as coisas mais importantes a serem lembradas.

Pra além do óbvio eu não acho nada.

continuo na procura.

Acabei escrevendo os versos mais perigosos.

O MUNDO ESTA PEGANDO FOGO

o mundo todo está pegando fogo.

é uma guerra silenciosa.

é uma bactéria

que come meu corpo

de pouco em pouco

e de dentro para fora.

o mundo todo está pegando fogo.

é uma guerra silenciosa.

e quando ando na rua vejo estampada

uma apatia insuportável no rosto do povo

mas há resistência,

e a paciência está acabando.

é uma guerra silenciosa

e o mundo todo está pegando fogo.

e não há nada mais saudável

do que se sentir louco.

ver a cabeça decepada dos senhores

se tornou meu maior sonho.

o mundo todo está pegando foto.

é uma guerra silenciosa,

um grito mudo e diário.

em cada nome martirizado

nós óbitos e no sistema carcerário.

mas há resistência,

e a paciência está acabando.

é uma guerra silenciosa,

e o mundo todo está pegando fogo.

e a história escreve com sangue,

peço coragem e esperança no novo.

que por enquanto segue gritante:

o mundo todo está pegando fogo.

Por Uberê Guelé – Artista multi talentos das quebradas da zona de São Paulo, trabalha como ator, artista plástico e poeta. Os poemas aqui presentes são parte do livro “Couro de Gente” publicado pelo selo Sarau do Binho, as fotos são graffitis do Uberê pela periferia da cidade.

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