?
fui perguntar pra minha mãe,
ela não sabia.
meu pai, já não via há tempos
meus avós eu já não tinha
de onde vinha tanto preto?
Ói O RAPA!
O rapa quando passa
Afasta a massa das barracas.
Um vão de repente se formou
Um assobio amigo,
um grito conhecido, serve de aviso:
é Maomé abrindo o mar de camelôs,
Vai guiando a liberdade
de vender mercadoria,
que mesmo vinda
do suor da testa digna,
é acusada e duramente reprimidas:
pi-ra-ta-ri-a
A barraca já fica no esquema,
pra fechar e correr.
É muito prejuízo pra efeito de uma polícia que
não tem nada melhor pra fazer.
Enquanto isso,
os verdadeiros criminosos pirateiam nossas vidas,
barateiam nossas vidas,
E ainda criam uma dívida,
pra gente pagar em imposto.
A FOTO
saiu no jornal
a foto.
mais um jovem pobre corpo morto
coberto com jornal.
O PODER DA ARTE
dinheiro:
cédula e moeda.
poucos centímetros de papel desenhado,
e um pedacinho talhado de pedra,
obra prima dessa sociedade,
um dos maiores exemplos de poder da arte.
BANZO
a história contada pelas bocas pretas tem a verdade e o frescor do sangue.
“saudade” é uma palavra muito usada no meu vocabulário.
ainda que eu não saiba exatamente de quê. ainda que não tenha vivido esse momento lembrado. Saudade.
quero demais, falo demais, na minha juventude.
das migalhas do que restou da farta ceia do meu povo.
meu povo.
da riqueza que preserva o pouco, do meu povo.
eu vim chorar. cantar lamentos.
que é daí que tiro beleza e força.
da história contada pela boca.
da verdade e do frescor do meu povo.
…
BALANÇA
Como se pesa a escravidão brasileira
em tonelada de cana?
em cabeça de gado?
em saca de café?
barra de ouro?
…
e quanto pesa?
SE EU PUDESSE PERGUNTAR
SEM TER MEDO DE MORRER
Se eu pudesse perguntar sem ter medo de morrer:
e depois que você tira a farda?
o que passa na sua cabeça?
Deus me livre, que ninguém mereça
a maldade do bem de ninguém.
me diz quem vai chorar os nossos.
me diz quanto tempo dura o luto.
quem leva flores no dia dos mortos.
quem sai ganhando com isso tudo.
e quanto pesa carregar a arma.
se vale o peso de um sono tão tenso.
se eu posso mesmo dizer o que penso
me diz…
quantas vidas você já tirou?
tanto sangue fez mudar o que?
se o buraco é mais e maior.
se o problema é quem manda em você.
me diz…
ainda tem gente aí dentro?
tem vida, tem sentimento?
de baixo do colete a prova de balas
tem um coração batendo no peito?
se eu perguntar você me mata?
e depois que você tira a farda?
PACIÊNCIA
Paciência
que se não pensa
você sai penso
esbarrando tudo, menino.
Paciência,
relaxa a face,
que a lua é fase,
e a vida é ciclo, menino.
Paciência,
e faz por onde,
que a sorte esconde
quando não se espera, menino.
Respira, menino…
Paciência.
NOSSA HISTÓRIA
e nossa história foi assim:
meio ficção,
meio ficação,
meio fixação,
e fim.
NAS FISSURAS
Queria escrever versos cheios de exclamações!
mas não paro de me interrogar…
Queria escrever versos-solução.
mas ainda nem entendi direito o problema.
Queria escrever razão, bater no peito.
mas no peito quem manda mesmo é o coração, o sentimento…
Mas não escrevo versos claros,
eu sou preto.
Nem versos diretos,
Nasci canhoto.
Então toma:
um poema cheio de contradições e rupturas
que andar nas fissuras talvez me leve mais longe
e fechar os olhos talvez me deixe ver melhor.
Talvez.
O óbvio e o que tem de mais clichê continuam
sendo as coisas mais importantes a serem lembradas.
Pra além do óbvio eu não acho nada.
continuo na procura.
Acabei escrevendo os versos mais perigosos.
O MUNDO ESTA PEGANDO FOGO
o mundo todo está pegando fogo.
é uma guerra silenciosa.
é uma bactéria
que come meu corpo
de pouco em pouco
e de dentro para fora.
o mundo todo está pegando fogo.
é uma guerra silenciosa.
e quando ando na rua vejo estampada
uma apatia insuportável no rosto do povo
mas há resistência,
e a paciência está acabando.
é uma guerra silenciosa
e o mundo todo está pegando fogo.
e não há nada mais saudável
do que se sentir louco.
ver a cabeça decepada dos senhores
se tornou meu maior sonho.
o mundo todo está pegando foto.
é uma guerra silenciosa,
um grito mudo e diário.
em cada nome martirizado
nós óbitos e no sistema carcerário.
mas há resistência,
e a paciência está acabando.
é uma guerra silenciosa,
e o mundo todo está pegando fogo.
e a história escreve com sangue,
peço coragem e esperança no novo.
que por enquanto segue gritante:
o mundo todo está pegando fogo.
Por Uberê Guelé – Artista multi talentos das quebradas da zona de São Paulo, trabalha como ator, artista plástico e poeta. Os poemas aqui presentes são parte do livro “Couro de Gente” publicado pelo selo Sarau do Binho, as fotos são graffitis do Uberê pela periferia da cidade.
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