Era hora da novela; sentadas e quietas. Um tapete ocupava grande parte do subchão da imensa sala, entre o vigamento do contrapiso e a terra cimentada. Era casa de coronel. A impressão viva de surpresa corava o rosto da meninada vestida em roupas de saco. Em frente, um tubo impunha imagem preta e branca de moça bonita. Atriz. Alva mais que a neve. 1964, ano simbólico para o país, mas no interior do Ceará nada se sabia de democracia, que dirá ditadura. O coronel dizia-se ser bondoso; deixava a meninada assistir televisão. Naquela brandura patriarcal, porém, descascava-se o inesperado se alguma criança fosse vista querendo comida. “Damos a mão, esse povo quer logo o braço!”. A meninada sentava uma do lado da outra e em fileira. Nos olhos da menina magrela e “cor de bosta” – como diziam – o brilho frente a grande novidade. No estômago, entretanto, o vazio frente a falta do almoço. De pé vexadíssima, sentia brumar-se a vista, numa fumaça de vertigem. Mas, Lurdinha, a de olhos verdes, era bondosa e mais temente a Deus que o pai. O resto, uma cambadinha indistinta, sentadinha com os cabelos volumosos sendo puxados pelos cabrinhas. Adormentados nos últimos espaços, confundidos na sombra preguiçosa do fundo da sala. Zumbia aos ouvidos da menina a palavra bonita e jocosa da tevê. A composição deste cenário era, contudo, alegre, inocente, vivo… Sim, devia ser isto; um movimento de formas infantis, roupas desgastadas, risos soltos, um turbilhão de imaginação, deslocados ao capricho de todas as fantasias, tocando-se, saltando a sarabanda da alegria. Essa coisa que é monopólio da irresponsabilidade séria da criança. Tudo isso a despeito da pobreza e da situação de miséria daquela meninada. A fome, contudo ainda estava lá, no estomago da menina magrela – a que seria minha futura mãe – Lurdinha comia e enchia o copo de seu pai de cachaça para que dormisse logo. Quando esse começava a cochilar, por debaixo da mesa dava a menina magrela a comida que vinha de seu prato. Esta disfarçadamente enfiava a mão com arroz, farinha e feijão verde na boca. Saciava-se na bondade da amiga e depois lavava a mão “peguenta” de gordura. A beleza, se há, é que a constância da bússola é uma, mas a criança a ignora. Assistir televisão na casa de Coronel Seu Antônio Jeremias era assim; matava-se a fome e a imaginação frente a tevê.
Por Douglas Rodrigues Barros – Doutorando em Ética e filosofia política pela UNIFESP, romancista e autor de “Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para uma crítica à metafísica racial.”
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