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19 jan 2020

Rascunho para uma fala sobre lutas negras e indigenas em Berlim.

O texto a seguir foi escrito como esboço para uma fala no evento “Fighting to Survive: Black and Indigenous Liberaion Struggles Against State Violence” que ocorreu em Berlim no dia 08/10/2019. O evento foi organizado por Edna Bonhomme, foram convidados para debater também Melody Howse, professora da Frei Universität e ativista do Black Lives Matter Berlin, e Ahmed Isam, fotografo Sudanês e organizador da solidariedade alemã a revolução Sudanesa. O texto aqui reproduzido é um esboço da fala inicial do Gabriel Silva, que havia sido previamente traduzido para o inglês para facilitar a fala.

Boa noite, Eu sou Gabriel Silva, eu moro em São Paulo, sou atualmente militante do Quilombo Invisível e trabalho no Banco do Brasil.

Irei fazer aqui um brevíssimo resumo da formação do Brasil da perspectiva de negros e indígenas, e depois das lutas atuais.

A resistência negra e indígena se funda com a colonização no século dezesseis. Num primeiro momento com a escravização dos povos indígenas, que sofreram com isso um intenso processo de genocídio – só para ilustrar, haviam aproximadamente 2,5 milhões de indígenas no território que hoje compreende o Brasil, essa população foi reduzida em 90% apenas no primeiro século de colonização. Hoje em dia, sobrevivem 240 povos indígenas no Brasil – quase 900 mil pessoas.

No período seguinte foi introduzido o comércio de negros escravizados da África, que foram a principal força de trabalho por mais de 3 séculos e construíram a economia brasileira que sempre teve um caráter predatório e colonial e é marcada pela monocultura e pelo extrativismo.O próprio nome do país, “Brasil”, é o nome de uma árvore nativa que era importada para produzir tinta vermelha.

Esse período foi marcado por grandes revoltas de escravos, que se tornaram atores centrais em todas as principais revoltas contra a ordem colonial, a revolta dos Males na Bahia, a guerra das farroupilhas e outras. A principal forma organizativa de resistência desenvolvida pelos negros nesse período foram os quilombos. O quilombo era um espaço de auto-governo construído pelos escravo fugidos que unia também indígenas e até brancos pobres.

O maior e mais famoso quilombo ficou conhecido como Quilombo dos Palmares – ou Angola Janga, “pequena angola”, como era chamado pelo negros. Ele existiu entre 1590 e 1694 – 100 anos de existência – e chegou a mais de 30 mil habitantes. Ele foi a principal experiência de auto-governo em oposição ao regime colonial em toda a história do Brasil. Estima-se que existem hoje entre 3500 e 5000 comunidades remanescentes de quilombos, que ainda lutam pela posse de suas terras e por mínimas condições de vida.

A escravidão foi oficialmente abolida no Brasil em 1888, mas a abolição não foi acompanhada de nenhum processo de reparação ou assistência aos negros como nos EUA, pelo contrário, o processo de genocídio e invisibilização dos negros seguiu ininterrupto.

No início do século XX, se inicia o processo de industrialização no Brasil. O governo brasileiro adota políticas de eugenia que atribuíam todo o atraso do país aos negros e indígenas. A partir disso, se inicia uma política de embranquecimento da população que incentivou o processo migratório de europeus para formar a classe trabalhadora livre brasileira.

Esse processo excluiu os negros e indígenas dos principais empregos formais e os renegou às posições mais precárias no mercado de trabalho. Por exemplo, hoje no Brasil, a principal profissão das mulheres negras é o trabalho doméstico e a principal profissão dos homens negros é o comércio ambulante. Pessoas de origem afro-indigena são a maioria nas estatísticas de desemprego, informalidade, analfabetismo, assassinato e encarceramento.

Agora vou falar um pouco sobre a conjuntura atual das lutas no Brasil. 

Em junho de 2013, o Movimento Passe Livre São Paulo convoca grandes manifestações contra o aumento da passagem do transporte público em São Paulo. Esse movimento é uma organização autonomista de jovens que compõe o cenário dos novos movimentos sociais no Brasil. Essas manifestações sofreram repressão violenta e isso desencadeou as maiores mobilizações de rua da história do Brasil, com milhões de manifestantes nas principais capitais do país. 

A política de conciliação de classes dos governos do Partido dos Trabalhadores, que estava no poder desde 2003, viu seu fim em 2013. Esse também foi o ano com maior número de greves desde a década de 80 no Brasil. Uma forte retomada nos conflitos entre capital e trabalho nas diferentes esferas da sociedade.

Ao mesmo tempo, nesse ano, se aprofundou um processo fragmentação da esquerda que se divide em: um bloco de esquerda majoritária, burocratizada, que aposta todas as suas fichas na via eleitoral; as massas cada vez mais desiludidas com as instituições mas com apenas pequenos grupos organizados numa perspectiva de luta que vá para além das eleições. 

A direita, que nunca foi minoritária no Brasil, também retomou a centralidade do poder com força, procurando disputar os movimentos de rua. Em 2016, ela capitaneou, com apoio dos veículos corporativos de comunicação, mobilizações de massa pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Os novos movimentos de direita que construíram as mobilizações pelo impeachment foram os mesmos que ajudaram a eleger o presidente neo-nazista Jair Bolsonaro. 

Portanto, há hoje no Brasil um ascenso tanto da extrema direita como da extrema esquerda, numa nova guinada da luta de classes. Está acontecendo um ataque generalizado aos direitos sociais e trabalhistas, um aumento da repressão e do assassinato político. Por outro lado, está havendo uma efervescência de criação de novos coletivos e de explosões de lutas que escapam ao controle das antigas burocracias. Por exemplo, lutas de ocupações por moradia, por transporte público, um nova ciclo grevista, com greves gerais de 2017 em diante, algumas greves selvagens e novas organizações sindicais, e um novo movimento estudantil e por educação, marcado pelas ondas de ocupações de escolas em 2015 e 2016.

No Brasil nas comunidades pobres, de maioria de origem afro-indigena, como o Grajaú o bairro do extremo sul de São Paulo onde fui criado e vivi a maior parte da vida, esse cenário tem se apresentado, por um lado, de forma triste com o aumento da miséria, do desemprego e da violência policial – pairando o clima de medo de ser preso ou assassinado arbitrariamente pela polícia e com a fome voltando a assombrar as famílias e a carne desaparecendo dos pratos.

De outro lado existe um avanço imenso dos coletivos negros, de literatura e de luta da educação nas periferias. Com por exemplo, os saraus, que são eventos em que escritores pobres fazem leituras públicas, que estão produzindo toda uma nova geração de escritores e intelectuais – da qual eu mesmo faço parte – e criando uma cena própria de leituras, grupos de estudos, publicações de livros, feiras literárias, etc. Além disso, tem os cursinhos populares, que são cursos livres organizados por coletivos de esquerda que lutam por acesso a educação universitária. 

O movimento negro nesse contexto segue distante das prioridades da esquerda majoritária, mas também tem se fortalecido com ações e debates contra a violência policial racista. Por exemplo, na rede contra o genocídio de que faço parte nos últimos meses organizamos atos pela liberdade de Ytalo e Arlailson, dois jovens jogadores de futebol negros presos injustamente na favela do Jd São Remo e soltos depois de 3 meses de intensas mobilizações. Ou o ato contra a tortura com chicotadas feita contra um jovem negro num supermercado na Vila Joaniza por supostamente ter roubado um chocolate. Por todo o Brasil também foram realizados recentemente, atos contra a morte de Agatha, uma criança negra de 8 anos de idade que foi morta com um tiro na cabeça por um policial no Rio de Janeiro.

Esses atos são sempre realizados com muitas reuniões e debates nas comunidades, visando criar organização e auto-defesa, porque a gente entende que o nosso trabalho é ainda muito insuficiente para fazer frente a violência racista no Brasil. Os casos que citamos são muitos mais comuns no Brasil do que se costuma imaginar, não são casos isolados – esse é inclusive um dos slogans comuns ao movimento.

O Quilombo Invísivel, que é a organização que faço parte, tem procurado atuar na articulação das lutas sindicais dos trabalhadores, com os movimentos sociais de moradia, transporte e educação, junto às lutas negras e indígenas. Dentro de uma perspectiva anticapitalista e internacionalista. A gente é um coletivo novo com militantes que pertenciam a diversas organizações e nutriam insatisfações em comum em relação a forma como é tratada as lutas negras e feministas na esquerda.

Temos nos esforçado em criar laços internacionais pois achamos que não há vitória possível num país de formação colonial como o Brasil sem passar pela luta internacional. A classe dominante que lucra com a nossa miséria é global, nossa luta por resistência também precisa ser global se quisermos seriamente resistir. A articulação internacional do movimento negro no Brasil ainda é incipiente, mas temos dado passos importantes e agora com ainda mais urgência com a vitória do Bolsonaro para a Presidência, que está promovendo abertamente um avanço da repressão genocida no Brasil.

Recentemente, no dia 27/09, a Frente Pelo Desencarceramento de São Paulo, que também compomos, foi na Corte Interamericana de Direitos Humanos em Washignton nos EUA para denunciar os massacres em presídios que resultaram em mais de 110 mortes por responsabilidade do Estado e o fechamento do cárcere à sociedade civil, que vem sendo um dos graves ataques a luta de prevenção e combate à tortura no Brasil.

No sentido desse fortalecimento internacional ficamos muito felizes com a organização de eventos como esses, precisamos estabelecer fortes laços entre os lutadores de diferentes países, para criar vínculos e diálogos reais e conseguir constranger o poder capitalista global e avançar na construção de um novo mundo.


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