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25 jan 2020

A internacionalização da luta pelo transporte coletivo

Imagem: https://itsgoingdown.org/why-fare-strike-an-faq-on-upcoming-transit-actions-in-seattle/

A gratuidade do transporte coletivo tem entrado na agenda de movimentos sociais que militam pela questão ecológica em diversos países. Essa luta é entendida, por esses ativismos, enquanto uma forma de reestruturar a cidade de forma sustentável, já que o transporte público gera apenas 5% dos 10% dos gases de efeito estufa produzidos pelo transporte em geral, assim como o transporte individual sozinho é responsável por um quarto das emissões globais de carbono. Além da questão ecológica, problemas como o insustentável custo de vida e a repressão policial dentro do transporte público, também são assuntos debatidos e geradores de uma resistência que se desenha em âmbito internacional. 

Um exemplo deles é o Extinction Rebellion, movimento que nasceu no Reino Unido em 2018 e hoje presente em 18 países, a maioria na Europa, mas também na África do Sul, Estados Unidos, Canadá, Argentina e Paquistão, tendo como maior pauta o colapso climático. A luta pelo transporte encabeçada por essa grupo teria, entre outros motivos, a pauta ecológica como norteadora. O movimento Planka.nu (que pode ser traduzido como “passe livre já”), por sua vez, nasceu em 2001 em Estocolmo na Suécia, sendo um campanha lançada por um grupo anarco sindicalista, o SUF, em reação ao aumento dos preços da tarifa. Em novembro de 2008, Planka.nu se tornou um fórum global de luta pelo transporte coletivo, seguindo a tradição dos autonomistas italianos na proposta de descentralização do poder, autogestão e colaboração em rede. Atualmente opera como uma think tank, atuando principalmente na área de planejamento urbano e mudança climática. O movimento ficou conhecido principalmente pela promoção e incentivo do ato de “catracar” o transporte, tática utilizada para promover a bandeira do transporte coletivo gratuito. Uma organização similar foi criada na capital da Finlândia, intitulada pumm.it, uma espécie de campanha pelo transporte coletivo gratuito e compartilhado, administrando um fundo para financiamento coletivo dos passageiros de baixa renda. Comentarei alguns protestos recentes endossados por esses movimentos internacionais.  

Em outubro de 2019 ativistas do Extinction Rebellion fizeram um ato em Malta, dentro da Universidade de Malta, exigindo transporte coletivo gratuito disponível a todos, extinção do uso de combustíveis fósseis e implantação de transporte elétrico. 

Em novembro de 2019 ativistas do mesmo grupo fizeram uma série de ações diretas na França, na cidade de Besançon, a favor da gratuidade do transporte público. Acorrentados a máquinas de bilhetes, distribuíram bilhetes falsos para dialogar com passageiros e colaram cartazes de “fora de serviço” em todas as máquinas de vendas de bilhetes. 

É importante falar dos protestos no Chile pois, além da sua magnitude, serviram de inspiração e endossaram o movimento dos EUA e Canadá. O pontapé inicial foi o aumento da tarifa do transporte público em 3,75% que levou manifestantes secundaristas em Santiago, no dias 17 e 18 de outubro, a fazerem as chamadas “evasiones”, que consistiam em pular a catraca do metrô como forma de protesto. As manifestações se generalizaram pelo país e passaram a incluir novas pautas, é interessante como “catracar” em protesto à tarifa do transporte se expandiu, tornando-se uma pauta internacional de países pobres à países ricos. 

O movimento “29th #NoBodyPays” foi uma convocatória internacional para as greves de tarifa do dia 29 de novembro de 2019, inspiradas nos protestos que eclodiram em Santiago do Chile em outubro do mesmo ano. Além de organizadores de várias partes dos EUA, a convocatória foi oficialmente feita pelo coletivo anarquista CrimethInc, endossada pelo sindicato Planka.nu da Suécia e por vários grupos do levante no Chile, como Evade Chile 2019, Grupo Solenopsis, Coletivo La Peste e Rara Señal , com o objetivo de lutar contra a austeridade e aumento dos preços da tarifa, assim como a presença de policiais e sua ação repressora dentro das estações. Aconteceram protestos em Seattle, Portland, San Francisco, Chicago, New York, Minneapolis, todos nos Estados Unidos, mas também Toronto, Edmonton e Montreal no Canadá, inclusive uma página no Twitter foi criada em novembro de 2019, com o nome @nobodypays para divulgar os atos pelo mundo contra as tarifas, incluindo notícias e chamados para revoltas internacionais e nacionais.

Esse cartaz e outros foram encontrados nas ruas de  Edmonton, Alberta no Canadá, o interessante dele é a referência que faz a protestos em outros país como Chile, França, Haiti, Equador, Hong Kong, Honduras, como forma de inspiração e solidariedade. É um exemplo claro da força que a internacionalização traz para as convocatórias. Em Toronto houve cartazes que diziam “From Chile to Toronto” Em Seattle o ato se intitulou Black Friday Rebellion, “contra o aumento do custo de vida e em solidariedade a revolta no Chile” e foi chamado pelo Extinction Rebellion, entre outros grupos locais. Em Montreal coletivos anarquistas sabotaram as máquinas de cobrança de tarifa, disseminando formas de como operacionalizar a técnica.  

A tática de saltar as catracas do transporte público em forma de protesto, largamente utilizada no #nobodypays, já vinha, no entanto, sendo utilizada no mesmo período não somente no Chile e nos protestos em Hong Kong, que utilizaram a tática de “catracar” contra a repressão em Beijing, mas também em Nova York, por exemplo, quando em duas datas diferentes, 01 e 23 de novembro de 2019, o grupo Decolonize This Place, organizou uma coalizão intitulada FTP Emergency Action, em que a sigla “FTP”  significa “Fuck The Police”. Diversos movimentos estão fazendo parte desta coalizão, entre eles: South Asia Solidarity Initiative; No New Jails NYC; Why Accountability; Take Back The Bronx; Peoples Power Assemblies NYC; NYC Shut It Down: The Grand Central Crew #blacklivesmatter. Há, inclusive, um ato marcado para o dia 31 de janeiro de 2020, que se chama FTP3 J31. 

 Durante o primeiro ato, manifestantes fizeram um “catracaço” em massa no Brooklyn, na estação Hoyt-Schermerhorn Street, em frente aos seguranças, no segundo marcharam pelas ruas de Harlem e South Bronx e terminaram com um catracaço em massa na estação da 149th Street. Os atos consistiram em uma reação contra o assédio e racismo policial, pois na semana anterior ao primeiro ato um jovem afro americano de 19 anos, Adrian Napier, foi detido por uma dezena de policiais por não ter pago a tarifa do metrô, também foi acusado de porte  ilegal de armas, sendo inocentado logo depois, o fato é que um vídeo da ação policial foi compartilhado gerando revolta e debate nas redes sociais. 

Estatísticas do MTA (Metropolitan Transportation Authority) mostraram que aproximadamente meio milhão de pessoas utilizam o transporte sem pagar a tarifa em Nova York, sabotando de alguma forma o sistema de cobrança. Um outro estudo, no entanto, feito pelo NYPD (New York Police Department) demonstrou que metade das pessoas presas em 2019 por não pagar a passagem em Nova York eram negras. As tensões todavia começaram em abril de 2019, quando o governo votou pelo aumento das tarifas, alguns meses depois as autoridades locais fizeram uma campanha para coibir as greves de tarifas contratando um adicional de 300 policiais de trânsito e 200 policiais civis para as estações, aumentando o custo do MTA (Metropolitan Transportation Authority) em 50 milhões de dólares por ano, de acordo com o jornal New York Times. 

Mais recentemente houve uma convocatória internacional de greve de tarifa para os dias 5 a 13 de dezembro de 2019 em Madrid chamada “Que nadie pague el metro”, em solidariedade a luta pelo transporte no Chile e pelo mundo, e também contra a COP 25, uma conferência internacional da ONU sobre o clima. 

No Brasil há uma tradição de lutas anuais pelo transporte coletivo encabeçadas pelo Movimento Passe Livre (MPL), que existe a mais de uma década, sendo apoiado por outros coletivos e organizações. A tática de catracar o transporte já aparecia nas grandes manifestações de junho de 2013, que ficaram conhecidas como As Jornadas de Junho, e tiveram como mote inicial a luta contra o aumento da tarifa. O fato é que, todos os anos, o governo aumenta a tarifa dos transportes e um novo ciclo de lutas se inicia. Esse ano em especial além do aumento da tarifa o governo anunciou um corte de linhas de ônibus gigantesco. As manifestações começaram em 7 de janeiro prosseguindo semanalmente, e a cada ato houve recrudescimento da repressão policial.  O aparato policial tem se sofisticado e dispositivos jurídicos como a lei nº 13.260, lei Antiterrorismo de 2016, e o Decreto-Lei nº 64.074/2019 foram implementados de modo a inviabilizar  as manifestações de grupos autônomos, na medida em que amplia os poderes da Polícia e limita o direito à manifestação que não seja partidária ou de grupos institucionais, como os sindicatos, conhecidos por serem apaziguadoras da situação miserável da população.  A “brutalidade democrática” é visível e aumenta a cada ato, sempre há um contingente policial completamente desproporcional ao tamanho da manifestação. A quantidade de armas somado a todo o aparato policial se assemelham a cena de um extermínio. No terceiro protesto contra o aumento houve mais de dez prisões de militantes. O aumento constante do custo de vida e a repressão policial são pautas que estão presentes em todas os movimentos aqui discutidos e não é diferente no Brasil. Nos últimos atos podia se ouvir gritos que faziam referência aos protestos no Chile, como “acabou o amor isso aqui vai virar o Chile”.

Esses movimentos ao redor do mundo apresentam alguns pontos em comum, primeiro que a maioria deles são convocados por grupos anarquistas e autônomos, sem relação com os partidos institucionais nem com atores que pertencem a esse meio, segundo que há um esforço de internacionalização do movimento pela percepção de o transporte ser uma pauta que facilmente atravessa fronteiras, apesar das especificidades que cada lugar incorpora em suas lutas, e terceiro que a questão ecológica foi, na maioria dos lugares aqui citados, uma pauta que se tornou subjacente e norteadora da luta pelo transporte. Por fim, o fato dos protestos do Chile terem sido irradiadores da tática de catracar o transporte, além de inspirar solidariedade de tantos outros coletivos. 

O  transporte coletivo se tornou uma pauta internacional de resistência devido sobretudo ao seu caráter unificador da experiência de opressão do capitalismo, seja ela em países emergentes ou desenvolvidos. Em toda parte existe um custo muito alto da manutenção do direito básico de ir e vir, que vem se tornando cada dia mais insustentável. A experiência comum desse fato, facilita a ação coletiva que se difunde adquirindo características específicas de cada lugar. A luta pelo transporte não se limita ao seu conteúdo mais imediato, mas significa também uma resistência contra as desigualdades sociais, a pobreza e a dificuldade de acessos aos serviços ditos públicos, em geral. Assim como as lutas por moradia e alimentação, a luta pelo direito de ir e vir versa a respeito da nossa própria existência e dignidade, nos colocando contra as políticas neoliberais na medida em que fala sobre coletividade e universalidade de direitos.

Por Thaís Fernandes – Cientista social, periférica, cresceu no Grajaú, extremo sul de São Paulo, atualmente milita no Quilombo Invisível.

Notas:
[1] https://climateandcapitalism.com/2012/12/04/ecosocialism-and-the-fight-for-free-public-transit/

[2] https://rebellion.earth/

[3] https://en.wikipedia.org/wiki/Planka.nu

[4] https://web.archive.org/web/20100813125840/http://planka.nu/pummit

[5] http://bit.ly/38eJcwN

[6] http://bit.ly/2TtltEP

[7] http://bit.ly/38kBgKu

[8] https://pt.crimethinc.com/

[9] https://lapeste.org/

[10] https://raraenvivo.wordpress.com/

[11] https://enoughisenough14.org/2019/11/23/friday-november-29-evade-nobody-pays/

[12] https://itsgoingdown.org/seattle-fare-strike-report-back/

[13] https://www.koin.com/green-living/transportation/dozens-protest-trimet-fare-enforcement-in-portland/

[14] https://itsgoingdown.org/san-francisco-ca-bay-area-youth-evade-unjust-bart-fare/

[15] http://bit.ly/2RCOpYx

[16] http://bit.ly/2ujMUGQ

[17] https://itsgoingdown.org/toronto-november-29-nobody-pays-fare-evasion-report/

[18] https://itsgoingdown.org/amiskwaciy-ab-report-on-nobodypays-activity/

[19] https://mtlcounterinfo.org/fare-distribution-machines-disabled-in-montreal-metro/

[20] https://twitter.com/nobodypays

[21] https://itsgoingdown.org/amiskwaciy-ab-report-on-nobodypays-activity/

[22] https://itsgoingdown.org/toronto-november-29-nobody-pays-fare-evasion-report/

[23] https://mtlcounterinfo.org/fare-distribution-machines-disabled-in-montreal-metro/

[24] https://ricochet.media/en/2834/global-wave-of-transit-fare-strikes-hits-toronto

[25] https://twitter.com/decolonize_this

[26] https://www.decolonizethisplace.org/content/post/1-ftp-iii/ftp3_operationsmanual.pdf

[27] https://fordhamobserver.com/42759/news/nypd-and-mta-protests-shed-light-on-greater-nyc-issues/

[28] https://www.publimetro.cl/cl/social/2019/11/02/video-detono-evasiones-metro-nueva-york-chile.html

[29] https://www.amny.com/transit/mta-fare-evasion-ticket-1-24190875/

[30] https://www.vox.com/the-goods/2019/11/7/20951960/protests-public-transportation-subway

[31] https://www.meganoticias.cl/nacional/280915-influencia-chile-protestas-nueva-york-evasion-metro-manifestaciones.html

[32] http://barcelona.indymedia.org/newswire/display/529279

[33] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13260.htm

[34] https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/2019/decreto-64074-18.01.2019.html

[35] https://diplomatique.org.br/a-brutalidade-democratica-contra-movimentos-autonomos/?fbclid=IwAR0FVT8gSCToF0xxjgbrDvDeIZusq9FP62yWcAvQUz3W1JWtMASfewN-m14

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