
O documentário “Estou me guardando para quando o carnaval chegar” retrata a vida dos trabalhadores da indústria do jeans na cidade de Toritama, no agreste de Pernambuco. A cidade é responsável por 20% do jeans produzido no Brasil, e esse volume impressionante é fabricado em pequenas oficinas semi-artesanais, que repassam a produção a atravessadores, que por sua vez a distribuem no mercado nacional.
Nessas oficinas não há vínculo empregatício formal com os trabalhadores, não há contrato de trabalho, carteira assinada, regulamentação da jornada e das condições de trabalho, direitos trabalhistas em geral, organização sindical, etc. Os trabalhadores recebem remuneração por peça, de modo que, quanto mais trabalham, mais recebem. Os valores pagos por unidade produzida são ínfimos, portanto é preciso costurar centenas, milhares de peças para conseguir ganhar o necessário para sobreviver. Dessa forma, as jornadas de trabalho se estendem a 14, 16, 18 horas diárias, tal como nos primórdios da Revolução Industrial. Não há limite de duração para as jornadas, nem descanso semanal, nem férias, nem equipamentos de proteção, cuidados com a ergonomia, nem com as condições de trabalho em geral. Em especial, não há proteção contra o barulho das máquinas de costura (o documentário enfatiza esse aspecto de maneira cinematograficamente muito eficiente).
Em Toritama os dias, semanas, meses de trabalho se passam em meio a esse inferno de montanhas de tecido, tintas, máquinas e seu barulho ensurdecedor. O único alívio desses trabalhadores é o feriado do carnaval. É a ocasião que é aguardada ao longo do ano inteiro, para onde são direcionadas as poucas economias que se acumulam nesse regime de exploração brutal. Caso não haja dinheiro para viajar no carnaval, o que é bem comum devido aos baixíssimos ganhos, vendem-se os poucos pertences, eletrodomésticos, motos, etc., para conseguir pagar a viagem (pertences que terão que ser recomprados na volta, a prazo, porque as economias foram zeradas, originando ano após ano um ciclo de endividamento interminável).
Mas por que exatamente o carnaval é tão aguardado por esses trabalhadores? Por que justamente o carnaval e não qualquer outro feriado prolongado? Pela simples razão de que o carnaval se consolidou no Nordeste como o feriado de maior duração: não termina na quarta-feira de cinzas, em geral se estende pela semana inteira. O carnaval para o povo de Toritama é o único equivalente às férias, por isso é mais importante que outros feriados, como semana santa ou as festas de natal e ano novo, por exemplo.
O ritmo da vida na cidade de Toritama transformada em pólo industrial é contrastado com as memórias do documentarista, que quando criança percorria as estradas do agreste pernambucano acompanhando o pai, funcionário público estadual. A calma e o silêncio de outrora foram substituídos pela azáfama dos trabalhadores do jeans, em sua correria desenfreada pela produção, pelo comércio, a serviço da acumulação de capital. O silêncio reflexivo, meditativo, em que é possível pensar sobre o sentido da vida, só retorna quando a cidade se esvazia inteira, quando seus moradores foram todos viajar no carnaval.
O carnaval não é mais como antigamente…
O carnaval, tão aguardado por esses trabalhadores, não é experimentado como uma atividade cultural, uma festa que permite a expressão daquela imensa variedade de músicas, danças e trajes, da qual cada região do Brasil é tão bem servida, particularmente o Nordeste e o estado de Pernambuco. Nada disso aparece no imaginário dos trabalhadores de Toritama, não é esse o significado do carnaval e o apelo que faz com que seja aguardado o ano inteiro. O carnaval é apenas uma semana de folga que permite que viajem para a praia. Não aparece no filme nenhuma referência a uma paixão especial pelas músicas, danças, trajes que outrora caracterizavam essa vibrante festa popular, que já foi um dos ingredientes mais peculiares da identidade nacional.
O filme não explora essa diferença entre a imagem consagrada e até estereotipada do carnaval-maior-festa-popular-do-Brasil e o carnaval dos trabalhadores de Toritama, a simples ida à praia, ele apenas deixa entrever que essa diferença existe. Fica em aberto a pergunta: os trabalhadores de Toritama vão mesmo pular carnaval, no sentido clássico dessa expressão? Vão sair em blocos? Vão se fantasiar? Vão dançar frevo, ou maracatu, ou samba, ou qualquer outra manifestação característica? Não sabemos, porque na verdade tanto faz, isso é indiferente. O aspecto do carnaval como atividade cultural típica não tem qualquer centralidade, e isso é digno de muita atenção.
O título do filme, aliás tirado do nome de um samba, expressa uma intensa expectativa pela chegada do carnaval, mas o objetivo final dessa expectativa parece esvaziado de qualquer particularidade qualitativa, parece não ter importância nenhuma o que acontece, afinal de contas, quando a espera se concretiza. O carnaval, insistimos, não é esse momento de inspiração estética e erótica, de magia e de fantasia. É tão somente a interrupção do trabalho. E ainda assim, reduzido a isso, ele é a motivação que faz com que a rotina de trabalho de jornadas, semanas, meses intermináveis seja tolerada. A folga do carnaval é a miragem no horizonte para onde se dirigem todas as expectativas e desejos dessa categoria de trabalhadores. Mas enquanto o carnaval não chega?
O que faz com que esses trabalhadores aceitem esse regime de trabalho? Por que não se organizam? Por que não lutam? Essa é outra questão que não é perguntada, porque a resposta aparece antecipadamente escancarada: esses trabalhadores não se enxergam como uma categoria explorada coletivamente ou como parte de uma classe social dominada mais ampla. Vêem a si mesmos como autônomos, trabalhadores por conta própria, empresários de si mesmos, empreendedores.
Ao falar sobre a diferença entre o emprego assalariado formal com patrão e o trabalho na indústria do jeans com remuneração por peça, os trabalhadores preferem esta última opção. Preferem ser “livres”, não ter patrão, ou serem patrões de si mesmos, fazer a própria jornada, etc. As diferenças entre os donos das oficinas e os trabalhadores não constituem uma barreira nítida, mas uma espécie de faixa cinzenta. Basta uma máquina de costura para começar. As famílias empregam a si mesmas: filhos, primos, sobrinhos, genros, noras e outros agregados, todos moram juntos e trabalham juntos. Alguns conseguem adquirir máquinas, construir oficinas, mini galpões num “puxadinho” no terreno de casa, outros não conseguem, e juntos todos seguem se esfalfando, se auto-explorando e se endividando. Na feira de domingo, quando chegam os compradores que distribuem o jeans no mercado nacional, é que vemos os representantes de uma outra classe social melhor identificáveis.
Passado e futuro do capitalismo
O exemplo de Toritama é precioso para ilustrar as tendências em operação no capitalismo brasileiro e mundial. Aparentemente o que temos aqui é mais uma grande concentração operária com alguns milhares de trabalhadores, em regime de trabalho intensivo, conectada a mercados nacionais e globais, como tantas outras na China, na Índia e seus arredores. Essas concentrações em alguns casos podem ser uma repetição dos surtos de industrialização do século XX, mas em outros, como em Toritama, podem ser algo bastante diferente. Ao invés de termos uma grande corporação com uma grande fábrica, com uma estrutura diretiva hierárquica e centralizada, formas padronizadas de contratação, etc., o que temos é o oposto: pequenas oficinas semi-artesanais, descentralizadas e concorrentes entre si, com vínculos informais e pessoais com os trabalhadores. O tipo do empreendimento (grande empresa centralizada ou várias micro empresas) e a forma de contratação (trabalho assalariado ou remuneração por peça) representam uma diferença abissal em termos de como a dominação capitalista se reproduz.
Na época atual as inovações tecnológicas (internet, algoritmos, inteligência artificial, robótica, etc.) caminham lado a lado com as ofensivas políticas e ideológicas que buscam erodir todas as conquistas que a classe trabalhadora tinha conseguido em termos de salários, condições de trabalho e direitos sociais em séculos de luta, impondo regimes de trabalho dos mais bárbaros. O capitalismo é extremamente flexível quando precisa reconfigurar as formas de exploração do trabalho, fazendo conviver o arcaico e o moderno em combinações insólitas.
Basta lembrar que na era mercantil ele ressuscitou o trabalho escravo nas Américas, com africanos escravizados, para sustentar a acumulação primitiva na Europa. No século XXI ele ressuscita a remuneração por peça e convence o trabalhador de que é empresário de si mesmo para assegurar uma maior taxa de exploração. Em Toritama a exploração prossegue sem a mediação direta do burguês, dos gestores e capatazes brandindo o chicote, pois é o trabalhador que chicoteia a si mesmo, em nome da miragem miserável do feriado de carnaval. O capital aparece em sua nudez como simples relação social, justamente ao se tornar invisível e despersonificado, como pura compulsão econômica, pura necessidade de produzir e vender para sobreviver, incorporada subjetivamente por cada trabalhador.
As dinâmicas de que estamos tratando podem ser melhor compreendidas com o recurso a uma visão mais panorâmica da história do capitalismo, que atravesse os vários séculos de existência desse modo de produção. Na sua formação o capitalismo começou arrecadando a produção de artesãos e produtores individuais dispersos, para ser vendida nas cidades. Num segundo momento os mercadores que faziam essa função de distribuição começaram a encomendar quantidades cada vez maiores de produto desses artesãos individuais, ultrapassando a barreira do consumo local e gerando excedentes concebidos desde a origem para um mercado sempre maior.
Num terceiro momento esses comerciantes capitalistas iniciais dão mais um passo decisivo e compram oficinas, ferramentas, matérias-primas e contratam os antigos artesãos como assalariados, já desprovidos dos meios de produção (ferramentas) e do controle do processo de trabalho, no que foi chamado de manufatura. Surge aquilo que Marx chamou de subsunção formal do trabalho ao capital: a produção deixa de estar determinada pelas necessidades locais de autossuficiência e passa a estar submetida ao imperativo capitalista da produção de excedentes visando lucro.
A próxima etapa é o aperfeiçoamento final da manufatura, com a introdução de máquinas, a Revolução Industrial, que inaugura o capitalismo propriamente dito. O trabalhador perde quase todo o vestígio de controle sobre o processo de trabalho, que passa a ser comandado pelo ritmo das máquinas. Cada um desses momentos durou séculos e foi imposto pelo capitalismo mediante grandes lutas e uso intensivo do poder armado de coerção do Estado como seu aparato político indispensável. Sem genocídios, massacres, guerras, invasões, colonizações, espoliações, torturas, estupros, barbaridades de todos os tipos praticadas em larga escala o capitalismo não teria sido posto de pé (e também não se manteria vivo até hoje).
Note-se que o trabalhador já estava submetido às relações capitalistas desde os momentos anteriores à Revolução Industrial, e as máquinas introduzem apenas uma modificação de ordem técnica no processo. Claro que essa modificação multiplica exponencialmente as capacidades produtivas e quase extingue a autonomia do trabalhador no processo de trabalho. Mas não são as máquinas que criam o capitalismo, e sim as relações capitalistas que criam a necessidade de inovações técnicas, ou seja, de uma Revolução Industrial (que corresponde à introdução das máquinas a vapor), à qual se seguiu uma segunda (introdução da eletricidade e motores de combustão), uma terceira (automação industrial e informática) e segundo alguns uma quarta revolução (inteligência artificial, redes sociais, algoritmos, aplicativos, etc.). Marx chamou a essa etapa final de subsunção real do trabalho, já que agora não apenas as relações de trabalho “da porta para fora” da oficina estão submetidas ao capital, mas no interior do próprio processo concreto de trabalho o controle do capitalista é quase total.
A subsunção ao contrário
Foi essa configuração criada pela Revolução Industrial que deu origem ao cenário da classe trabalhadora identificada com o trabalho assalariado, reunida em grandes concentrações homogêneas de operários. Durante os dois séculos seguintes, falar em trabalho passou a ser sinônimo de falar em emprego, em contrato de trabalho, em legislação trabalhista, em sindicatos, em categorias organizadas, etc. Muitas gerações de trabalhadores viveram sob esse imaginário do emprego e do assalariamento, das lutas sindicais e corporativas, e ele ainda está presente como um certo horizonte de expectativas de vida, mesmo quando os seus alicerces numa certa forma de produção enfrentam um abalo sísmico, que indica uma mutação drástica em andamento.
Qualquer que seja a forma como se organiza, o trabalho é na verdade o intercâmbio do homem com a natureza para produzir sua subsistência, e esse intercâmbio teve diversas formas no passado e terá outras no futuro. No próprio capitalismo em formação não existia emprego no sentido que nós hoje conhecemos, nem contrato de trabalho, direitos trabalhistas, etc. Tudo isso teve que ser construído por muita luta e ação coletiva dos trabalhadores, durante séculos também.
Essas massas de trabalhadores deram a base para a formação de instrumentos de luta como sindicatos e partidos, e para várias conquistas civilizatórias das quais até hoje nos beneficiamos (legislação trabalhista, previdência pública, serviços públicos, etc.). Entretanto, depois de mais de um século, sindicatos e partidos foram recuperados pelo sistema como instrumentos de administração do capital. Servem apenas para disciplinar, fiscalizar, restringir e policiar as lutas dos trabalhadores, impedindo que se enfrentem de maneira autônoma contra o capital e o Estado. E cumpriram tão bem o seu papel de forças auxiliares de administração que agora podem ser arremessados à lata de lixo da história. No mundo inteiro os sindicatos e partidos estão sendo descartados, porque não são mais necessários para manter a classe trabalhadora sob controle. O capital pode se defrontar hoje com multidões de trabalhadores atomizados e desprovidos do horizonte de superação do sistema, e mantê-los sob controle mediante o uso da força bruta e da ideologia empreendedorística e meritocrática mais grosseira (com adornos religiosos ou racistas conforme o caso).
O processo que estamos testemunhando agora é uma espécie de inversão ou reversão em direção às formas anteriores de subsunção, com as relações capitalistas dissolvendo aquelas concentrações homogêneas de operários e criando multidões de empreendedores e exploradores de si mesmos como os trabalhadores da indústria do jeans de Toritama. Depois do intervalo dos séculos XIX e XX em que as condições materiais de trabalho do proletariado engendraram o sonho da ação coletiva e do socialismo, o século XXI está nos devolvendo às condições de atomização dos primórdios do capitalismo, mas de um modo agravado.
Também estamos submetidos às relações capitalistas, como na época da subsunção formal, mas com uma ilusão de controle sobre o processo de trabalho, que já foi perdido desde a época da subsunção real. O motorista de aplicativo ou operário do jeans pensam que controlam o próprio trabalho, que trabalham quando querem, já que não obedecem diretamente a um patrão, mas o preço do seu trabalho é determinado por uma racionalidade de mercado situada fora de seu controle, inclusive em alguns casos calculado de forma automatizada por um aplicativo, e exige um ritmo de atividade desumano para fazer jus ao valor necessário para a sobrevivência.
O isolamento dos trabalhadores na época da subsunção formal era territorial e temporal, enquanto que o isolamento atual é quase que puramente fictício, ideológico. A interligação e a interdependência das milhares de atividades necessárias à reprodução da vida social só não são percebidas como tais devido às limitações das formas jurídicas capitalistas, da propriedade privada, do mercado e do dinheiro. Hoje essas limitações compõem uma carcaça de coerção que impede a emergência de formas de vida pós-capitalistas, recorrendo a expedientes cada vez mais bárbaros, como guerras étnicas, tribais, religiosas, fanatismos, fundamentalismos, irracionalismos e obscurantismos para manter de pé esse modo de produção obsoleto.
Os desafios para se pensar a superação do capital também se modificam nessa nova configuração. Ao invés de poderosas categorias de trabalhadores organizados, em concentrações que reúnem centenas ou milhares de pessoas, com modos de vida e experiências relativamente homogêneas, temos massas de trabalhadores atomizados, atuando individualmente, explorando a si mesmos, sem proteção ou direitos, concorrendo uns com os outros, separados por clivagens raciais, religiosas nacionais completamente artificiais e relacionando-se diretamente com o mercado pela mediação de atravessadores ou aplicativos.
A nova configuração convive com a antiga quando se considera o cenário mundial, afinal ainda temos grandes empresas, corporações centralizadas, categorias profissionais organizadas, fábricas com milhares de trabalhadores (e robôs) na China, na Índia e no restante da Ásia. Ao mesmo tempo, é preciso registrar que para uma imensa parcela da população, ou mesmo a maioria, no Brasil e no mundo, aquele cenário “idílico” de trabalho assalariado formal e organizado nunca existiu. Ele se expandiu no mundo até atingir uma certa abrangência, alimentando o conto de fadas do well fare state e do reformismo, mas refluiu nas últimas décadas sob o impulso avassalador da mundialização do capital e da quase desaparição das lutas pela sua superação.
Os saudosistas do reformismo baseado na classe operária ainda tentam se animar com a imagem das fábricas se multiplicando na Ásia, mas cabe perguntar o quanto dessa industrialização asiática é o que restou de um impulso retardatário da revolução industrial, aterrissando com décadas ou séculos de atrasos nesses países, e quanto desse impulso vai durar até ser engolfado pela maré global da plataformização e atomização dos trabalhadores. Seja qual for a tendência prevalecente, o certo é que sob o capitalismo, o arcaico e o moderno sempre se misturam, as antigas ideias e modos de vida são mobilizados para assegurar a dominação de novas legiões de trabalhadores num mundo saturado de recursos tecnológicos. Motoristas de uber dirigem guiados por aplicativos de mapeamento urbano via satélite, mas acreditam que a Terra é plana, que Jesus é o senhor, que lugar de mulher é na cozinha, etc. Exemplos desse tipo podem ser multiplicados ao infinito pelo mundo, independente de nacionalidade, religião ou etnia.
Estão aguardando a revolução chegar
Todas esses problemas estão colocadas em “Estou me guardando…”, nos deixando com esses questionamentos em aberto, nos forçando a pensar em como essa situação pode ser superada, como esses trabalhadores podem ser organizados, como podem se constituir em sujeitos coletivos, etc. O filme nos coloca diante dos dilemas reais da luta contra o capital em seus contornos concretos, de maneira simples, direta e brilhante. Quando nos deparamos com o seu brilhantismo e crueza, é inevitável fazer a comparação com um outro filme também ambientado no interior de Pernambuco.
O premiado e festejado Bacurau teve uma repercussão avassaladora, em contraste com a recepção discreta do documentário, embora a sua potência explicativa seja quase nula. A diferença entre os dois não é apenas aquela que separa um documentário de uma obra de ficção, afinal existem ficções que retratam de maneira minuciosamente real o nosso mundo e muito melhor do que vários documentários ou reportagens (basta pensar em filmes como Coringa e Parasita).
A diferença é que Bacurau oferece uma falsa catarse, que não corresponde a nenhum processo real de resistência popular autônoma. Ele encena uma coesão comunitária que não existe em nenhum lugarejo ou periferia do chamado Brasil profundo. Projeta uma harmonia idealizada entre lúmpens, criminosos, prostitutas, professores, médicos, donas de casa, aposentados e crianças. Fantasia uma coletividade magicamente hostil às armadilhas da política eleitoral e da religião. E inventa um coletivo vacinado contra essas alienações e irmanado em uma consciência histórica materializada em um museu, como muitos gostariam que existisse, mas de que não se encontra nenhum exemplo real.
Em Bacurau festeja-se o conto de fadas de uma resistência popular que já nasce pronta e não demanda nenhum trabalho de consciência e organização. Em Toritama encontramos a classe trabalhadora brasileira tal como ela é realmente, com todo o seu déficit de consciência e organização. Muitos se refugiam na reconfortante fantasia de Bacurau, onde nenhum trabalho militante precisa ser feito, porque no mundo real de Toritama, ao contrário, todo o trabalho está por fazer.
Bacurau é o povo brasileiro idealizado pelo público progressista, democrático e “de esquerda” que consome o cinema nacional, vingando-se na tela pelas derrotas sofridas em suas ilusões nos embates políticos, eleitorais e ideológicos. Sua repercussão desproporcional expressa a miséria intelectual, cultural e política do seu público. Enquanto esse público se ilude com os Bacuraus da ficção e aguarda uma revolução que nunca vai chegar, a realidade de Toritama nos impõe o desafio de refletir e agir sobre as condições reais do capitalismo e os abismos de superexploração e alienação para onde estamos sendo levados.
Por Granamir
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