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07 fev 2020

A Luta Anti Racista Em Perspectiva Internacional

No sábado do dia 05/10/2019 aconteceu uma mesa e um debate sobre a luta anti racista internacional como parte da programação do mês anticolonial em Berlim. Esse evento reuniu ativistas e representantes de organizações de dezenas de países e nacionalidades como parte de um esforço de trazer mais união e formulação crítica anti-capitalista para as lutas dos imigrantes de diversos países na cosmopolita cidade de Berlim.

A primeira mesa era composta por Majeb, militante palestino, Inna, dos judeus anti-fascistas e Victor, do movimento negro universitário, José, militante do povo Roma, o segundo debate foi um workshop com diversos temas disparadores do debate.

A primeira mesa me chamou muito atenção por trazer um discurso sobre o racismo com contornos internacionais que era desconhecido para mim. O debate trazido pelos judeus e pelos roma (mais conhecidos pelo seu tratamento pejorativo, como ciganos) colocava o racismo como um fenômeno muito anterior a escravidão moderna africana com a colonização da América e da África. 

Os judeus sofrem racismo há mais de dois mil anos, e o discurso de Inna me chamou atenção, por trazer consistentemente um discurso classista mas que compreende o racismo como um fenômeno pré-capitalista. Houve um breve debate sobre o antissemitismo na Alemanha e as origens do racismo que as localizou na antiguidade na relação de dominação entre diferentes povos, mas que foi elevado em novo patamar com a colonização e o capitalismo mercantilista, a ideologia racista num primeiro momento era sobretudo econômica e teológica, mas no alvorecer do capitalismo ela ganha um caráter pretensamente científico, no século XIX quando foi forjado o conceito de raça e as teses eugenistas ganharam centralidade na geopolítica global, dando sustentação ideológica ao neo-colonialismo europeu.

Algo que mudou bastante minha visão nesses dias de debate foi ver como as formas de dominação por racialização possuem uma imensa variedade de formas e mecanismos de funcionamento no mundo, por exemplo, na Alemanha, o racismo é muito diferente do que no Brasil. Lá não existe o nosso colorismo, sendo assim, cor da pele não é o elemento central para definir a percepção de raça para discriminação, e sim a origem da pessoa racializada, dessa forma, existe discriminação racial voltada contra pessoas que no Brasil seriam perfeitamente classificadas como “brancas”, inclusive os próprios brasileiros que aqui chamamos de “brancos” em grande parte não seriam classificados assim na Europa. A sua origem é o mais importante para a percepção de raça lá, assim por exemplo, árabes, persas e eslavos, mesmo tendo a pele branca, são alvo de perseguição racial por grupos supremacistas de extrema direita na Alemanha. Interessante lembrar nesse sentindo como os nazistas perseguiam judeus, romas, eslavos, etc, a pretexto de serem raças inferiores, apesar de serem todos povos perfeitamente “brancos” a um olhar brasileiro. Outra diferença que me chamou muita atenção do racismo alemão é o fato deles admitirem esse racismo com facilidade, o Brasil é conhecido por pesquisas em que mais de 90% das pessoas dizem que existe racismo no Brasil e a mesma porcentagem de pessoas afirmam que não são racistas. Na Alemanha eles admitem o próprio racismo, e isso não significa que encarem isso como um problema ou que sejam menos racistas por isso.

No meu período em Berlim percebi que o racismo alemão hoje se volta, aparentemente, muito mais contra o oriente médio, há muitos turcos e descendentes em Berlim e o movimento curdo e palestino são bastante expressivos. Os palestinos, em especial, são muito perseguidos, o movimento palestino BDS (boicote, desinvestimentos e sanções ao Estado de Israel) foi recentemente criminalizado por resoluções do parlamento na Alemanha, os palestinos são impedidos de falar mesmo em espaços de esquerda e a maioria da esquerda alemã é anti-palestina. Um dos temas que surgiu do debate é justamente como a suposta autocrítica alemã em relação ao holocausto judeu (há muitos museus e fala-se muito na Alemanha sobre esse assunto), além de não acabar com o anti-semitismo alemão, se torna uma bizarra apologia as práticas neo-nazistas do Estado sionista de Israel na Palestina. A suposta autocrítica dos alemães em relação ao Holocausto judeu também não se estende às práticas coloniais alemãs, que tendem a ser desconhecidas pelos próprios alemães. O mês anti-colonial inclusive foi marcado de se iniciar no “Dia de Colombo”, marco do início de processo de colonização que é tido como uma data de comemorações na Alemanha e em outros lugares da Europa ainda hoje.

Havia uma preocupação fortemente anti-capitalista do debate, contrariando brutalmente aqueles que acusam os movimentos anti-racistas de não se preocuparem com a luta de classes. O debate passou por diverso dilemas da luta anti-racista como a questão do surgimento do racismo, contrapondo as teses que vêem o racismo como produto do capitalismo com aqueles que acreditam que é uma forma de dominação pré-capitalista, com a concordância geral que o capitalismo intensificou e aprofundou as formas de dominação racista para poder se estabelecer, sendo o capitalismo hoje o principal beneficiado pelo racismo. Se levantou os dilemas das táticas de enfrentamento do racismo enraizado nas instituições do Estado, das empresas e nas relações sociais em geral, a necessidade de enfrentamento do racismo em suas manifestações individuais, a complexidade gerada pelas divisões e conflitos que o racismo causa entre os explorados ou entre os próprios lutadores, com as humilhações cotidianas que sofremos devido a discriminação racial, os prejuízos materiais e simbólicos, das formas de adoecimento físico e mental a que estão especialmente vulneráveis as populações racializadas.

Também se falou sobre a continuidade do racismo em países que passaram por processos revolucionários como a URSS ou em Cuba, e as consequências macabras que a separação da luta revolucionária com a luta anti-racista geram para os povos oprimidos. Também foi repetidamente levantado como a questão não pode essencializar o conceito de raça, de como, por mais importante que seja levantarmos a nossa história e identidade para fazer frente a desumanização racista que sofremos, é fundamental perceber que opressão é um processo dinâmico de racialização, de forma que os oprimidos de hoje podem ser os opressores de amanhã, sem que isso sequer destrua a opressão racista mas apenas a transforme. Nesse sentido, surgiram exemplos como da ascensão de burguesias negras no continente africano com os processos de libertação nacional e nos EUA,  e o próprio caso do Estado sionista de Israel, onde setores dos oprimidos ascenderam como dominadores de outros povos. Se discutiu a necessidade da luta anti-racista ser mais articulada com as lutas trabalhistas, e estratégias da relação com o sindicalismo, que por vezes é muito conflitiva, com os sindicalistas com freqüencia se recusando a debater o combate da segregação racial no ambiente das empresas ou no mercado de trabalho, assim como as dificuldades de união entre os setores que essa segregação gera (divisões como, funcionário temporário/efetivo, terceirizado/quadro próprio, formal/informal, que em diversos países são diversões com fortes bases racistas), por fim, se discutiu sobre as questões das mães, pais e crianças num ambiente racista, com os dilemas e as formas de resistência que precisamos desenvolver desde cedo com nossas crianças para lidar com a violência racial cotidiana a que estamos submetidos. 

Capitalismo e racialização, dilemas e lutas:

Das diferentes formas de racialização tratadas no debate alguns elementos se destacam como semelhanças do racismo em escala global, o capitalismo racializa determinada nação ou etnia para tornar essa determinada população alvo de criminalização, segregação jurídica e espacial, encarceramento em massa, genocídio e violência armada, desvalorização e dominação simbólica, religiosa e intelectual, resultando na criação de massas super-exploradas, seja através da escravidão, pela sub-remuneração ou por diversas variedades de trabalho precário. O racismo aparece como uma forma de dominação imperialista, de um Estado, etnia ou nacionalidade sob outras, é um fenômeno de dominação poli-classista, onde membros de diversas classes sociais praticam, se beneficiam, ou sofrem com o racismo, sendo um meio que serve para criar solidariedade identitária na dominação entre capitalistas e trabalhadores, ao mesmo tempo que divide e enfraquece os trabalhadores seja das identidades dominadoras ou das dominadas.

Na América a racialização é principalmente associada ao processo de colonização, com a dominação e genocídio dos povos nativos e africanos escravizados, em boa parte da América a questão racial aparece de forma muito central para os rumos da luta de classes, dado que capitalismo e colonização racialista são fenômenos que nascem indissociáveis em relação a colonização européia e o nascimento do capitalismo neste continente.

Já na África, a divisão étnicas e religiosa internas parecem se colocar como elemento central da questão racial no continente, com a dominação imperialista fortalecendo e se beneficiando dessas divisões.

Admito que fiquei surpreso com a complexidade que surgiu no debate pela ignorância que temos sobre essa questão na Ásia. Uma camarada indiana apresentou como lá a questão das raças está na discriminação entre as castas da religião hindu, apresentou pensadores como Ambedkar, e o surgimento dos panteras dalit, também falou da organização dos maoísta que existe lá hoje. Também surgiu o exemplo filipino que passa por um grande processo de diáspora  pro sul da Ásia e pra Europa, o debate racial ganha força entre esses filipinos na diáspora, que são submetidos a discriminação, são super explorados indo principalmente para trabalhos precários como o trabalho doméstico.

No debate, os muçulmanos apareceram como os que hoje seriam os principais alvos e a principal fonte de resistência da violência racializadora na Europa, criando também laços de solidariedade entre as lutas locais e  dos seus países de origem.

Na Europa, a situação atual é de uma massa de imigrantes que ocupam os trabalhos precários. Nas principais capitais europeias, como Berlim, Paris ou Londres, mais de um terço da população é imigrante. O controle e a divisão desses trabalhadores em relação aos trabalhadores europeus é fortemente mediada pelo racismo. A massa de imigrantes e refugiados também é o principal alvo da repressão policial hoje. A base da classe trabalhadora europeia hoje é imigrante e pensar no avanço geral da luta de classes hoje lá passa por pensar a relação de criação de solidariedade entre trabalhadores imigrantes e nativos. 

Conclusão: A luta anti-racista precisa ser internacionalista

É preciso ter muita clareza que o problema do racismo não é uma questão exclusivamente indígena ou africana, mas um problema que prejudica a todos os explorados em escala global, com expressão e origens multifacetadas, que perpassa uma imensa variedade de etnias, povos e nacionalidades, e que é o racismo um dos principais obstáculos para a possibilidade de união e fortalecimento das lutas por emancipação dos trabalhadores e dos povos do mundo contra a opressão e a exploração. A luta anti-racista só pode ter esperanças de avanços se conseguir ser radicalmente internacionalista, anti-capitalista e anti-imperialista.

É urgente a necessidade de internacionalizarmos nossas lutas, pois nossos inimigos hoje são globais apesar de usarem máscaras nacionalistas. É preciso pensar o internacionalismo de forma mais ampla se quisermos ter qualquer esperança na luta contra o racismo e na luta de classes em geral, é perfeitamente viável darmos passos reais nesse sentido, podendo com isso criar laços que fortaleçam nossa luta cotidiana nos bairros, locais de trabalho ou estudo. Um primeiro e simples passo nesse sentido é conhecermos e valorizarmos mais a experiência de camaradas em lutas em outros países e estabelecermos mínimos espaços de diálogos reais entre nós. Precisamos criar laços internacionais entre pessoas comuns, sem se submeter necessariamente ao intermédio das burocracias partidárias e sindicais que hoje constituem os principais canais existentes para essas articulações. A própria organização do mês anticolonial é uma demonstração de como se pode esboçar espaços potentes de articulação e criação de laços internacionais por fora das burocracias. 

O mês anti colonial terminou com um ato que reuniu em torno de 8 mil pessoas nas ruas da capital alemã, com a presença de dezenas de nacionalidades e grande multiplicidade de pautas, houve blocos de povos em lutas de territórios ocupados como palestinos, curdos e mapuches. Se destacando naquele momento com força os curdos em solidariedade a Rojava, pois a data do ato coincidiu com a retomada dos ataques da Turquia contra os curdos. 

Referências:

As fotos que ilustram o texto foram tiradas no protesto de encerramento do mês anticolonial, no dia 12 de outubro de 2019 em Berlim.

Sobre a criminalização dos palestinos na Alemanha:

https://www.mppm-palestina.org/content/contrariando-liberdade-de-criticar-israel-parlamento-alemao-designa-movimento-bds-de-boicote

Site do mês anti-colonial:

– Por Gabriel Silva

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