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28 mar 2020

Notas de rodapé sobre motins policiais, greves, emancipação, fascismo e a formação social brasileira – parte 3

[Esse artigo foi publicado em três partes, leia a parte um aqui, e a parte dois aqui]

Água mole em pedra dura ou militância cabeça dura?

    Para que fosse viável disputar a consciência dos policiais e fazê-los voltarem-se contra o Estado e apoiar os trabalhadores, seria preciso desenvolver um trabalho de muito longo prazo, que só pode ser feito a partir de dentro e clandestinamente. A organização política que se propusesse a desenvolver esse trabalho teria que colocar seus militantes durante anos ou décadas para atuarem como policiais, para ganharem a confiança deles, para poderem se tornar influência entre essa categoria. Somente no curso desse trabalho longo e sistemático seria possível disputar politicamente os policiais e fazê-los romper ideologicamente com a obediência cega ao Estado e com a hostilidade aos trabalhadores. Sem isso, aparecer do nada apoiando as greves policiais é pura irresponsabilidade e inconsequência.

    Há ainda o problema adicional de como sustentar esse hipotético trabalho clandestino de militância dentro da estrutura policial. Supondo-se que o PSTU ou outra organização coloque um militante para atuar clandestinamente como policial, durante esses anos, ou décadas, essa pessoa teria que praticar diariamente, ou no mínimo ser conivente, com todos os tipos de atos legais e ilegais por meio dos quais a PM se opõe aos trabalhadores. Depois disso tudo, esse militante continua sendo trabalhador? Continua sendo militante? Continua acreditando no mesmo projeto? Supondo-se que esse trabalho esteja sendo feito (e se estiver, nenhuma organização poderá admitir, do contrário deixaria de ser clandestino), como podemos avaliar o resultado produzido até agora, em face da permanência ou até agravamento dos índices de letalidade policial, abusos, corrupção, repressão, etc.? Se um hipotético trabalho clandestino “interno” de contenção da PM como força hostil aos trabalhadores revela assim os resultados pífios que estamos presenciando, a se julgar pelo comportamento atual dessas forças contra nós; que dizer desse trabalho do ponto de vista da suposta intenção ainda mais audaciosa de chegar ao ponto de “romper o aparato repressivo”?

    Diante de toda a argumentação que estamos desenvolvendo, é possível apresentar como contraposição as seguintes objeções: não é preciso enfrentar a milicianização das PMs? Não é preciso impedir que os policiais se tornem ainda mais bolsonaristas? Não é preciso disputar a direção dos seus movimentos? Não é preciso, afinal de contas, enfrentar o aparato repressivo do Estado, de preferencia provocando algum tipo de divisão no seu interior? Podemos responder afirmativamente a todas essas perguntas, pois não é a existência de imensas dificuldades para a realização dessas tarefas que faz com que devamos deixar de nos preocupar com elas; pelo contrário. A questão é que todas elas precisam ser pensadas antes de tudo com os métodos corretos. O fato de que uma determinada tarefa militante não esteja produzindo resultados não é argumento para dizer que ela não deveria ser feita, mas deveria ao menos servir para trazer à pauta a reflexão de que essa tarefa deveria ser feita de maneira diferente.

    A insistência do PSTU em apoiar greves policiais produziu que resultados? Rachou qual parte do aparato repressivo? Será que essa tática que parece muito radical (quem é que não gostaria de ver a repressão rachar? Quem é que não acha romanticamente revolucionário ouvir falar em fazer os destacamentos armados do Estado desobedecerem os seus comandantes?) não é um disfarce para a ausência do trabalho militante que poderia trazer resultados reais, mas com muito mais esforço e dificuldade, em muito longo prazo e sem nenhum glamour “revolucionário”? Será que o esforço voluntarista voltado para a superestrutura do Estado e para o controle dos aparatos não seria melhor empregado buscando inverter a correlação de forças ideológicas na sociedade?

    Aqui a crítica não é somente ao PSTU, mas ao conjunto das organizações militantes que se declaram anticapitalistas. Qual é por exemplo o empenho dessas organizações com pautas que se relacionam com uma contenção “externa” da PM? Qual é o seu empenho na denúncia de abusos policiais, brutalidade, assassinatos, corrupção e outros crimes, na luta pela desmilitarização da polícia, contra o encarceramento em massa, pela descriminalização das drogas, na luta por direitos humanos de modo geral, etc.? Não seriam essas as lutas capazes de desarmar o círculo vicioso de violência que alimenta a existência tanto da PM como das organizações criminosas e dos políticos oportunistas que representam ambas? Não seriam essas as lutas capazes de organizar a imensa massa marginalizada das populações das periferias e trazê-las para o centro da luta de classes?

    As forças anticapitalistas no Brasil se encontram em um tal grau de dispersão e desorientação que todos os esforços precisam ser muito bem pensados, para não resultar em retrocesso ou retardamento da luta. Infelizmente, esse cenário deve prosseguir por um tempo, pois existe uma recusa da parte de todos os setores a se repensar e rever sua teoria e prática. Todos preferem seguir no piloto automático, reproduzir ou intensificar o que faziam antes, acreditando que uma hora tudo vai dar certo. Algumas repetem um discurso petrificado, como o PSTU com seu apoio às greves policiais. Outras se deixam seduzir por imediatismos, opondo por exemplo a ação tresloucada do senador Cid Gomes ao avanço do milicianismo. Esquecem que se trata de mais um típico coronel nordestino, que num ato de “macheza” desafia os jagunços dos quais ele próprio já foi chefe. Afinal, como governador, ele mesmo comandou esses policiais e os utilizou imperturbável para reprimir greves de professores e outros funcionários públicos.

    Esse ato de macheza destoa do pacifismo predominante na oposição ao governo, por isso mesmo chama a atenção e pode render um importante capital eleitoral ao seu autor. Afinal, se até uma facada encenada rendeu os votos decisivos em uma eleição presidencial, o que não podem fazer dois tiros? Ao entrar nesse jogo do sensacionalismo, as organizações perdem de saída o debate, pois os problemas da violência, da criminalidade e das falsas respostas policialescas e milicianas a elas não serão resolvidos com ações aventureiras e golpes publicitários. O debate sobre desmilitarização da polícia, controle social sobre forças de segurança (na perspectiva de uma revolução que destrua o Estado e todas as suas forças armadas), desencarceramento, descriminalização das drogas, direitos humanos, etc., requer muito esforço e paciência, não escavadeiras.

    O “fascismo” como espantalho e álibi para capitulação

    Além de fórmulas prontas e soluções mágicas, boa parte das organizações adere sem refletir a chavões e lugares comuns, reproduzindo-os sem um mínimo de aprofundamento. É o caso da caracterização de “fascismo” para o bolsonarismo ou para as próprias polícias em processo de milicianização. Já tivemos ocasião, em notas de rodapé propriamente ditas anexas a um outro texto (notas 2 e 3 do texto a seguir: leia aqui ), de discutir porque consideramos inadequado o uso do termo “fascismo”, de modo que é oportuno repetir aqui essas considerações.

    O fascismo histórico foi um movimento em que países capitalistas centrais de unificação retardatária, como Alemanha e Itália, buscaram superar as suas contradições internas para ingressar na corrida imperialista contra as potências já estabelecidas. Para superar essas contradições, contaram com um sentimento de revolta da pequena burguesia, parte dos trabalhadores e lúmpens mobilizados, todos insatisfeitos contra a democracia liberal, para esmagar a resistência da classe trabalhadora organizada, num contexto em que se colocava em pauta a revolução socialista. Para mobilizar esses setores o fascismo lançou mão de discursos nacionalistas, irracionalistas, idealistas, racistas, moralistas e tomou emprestado recursos de agitação, propaganda e organização de massas das forças anticapitalistas, usando-os em seu proveito. Sua função histórica foi construir uma mobilização social total para a guerra (guerras mundiais de destruição total, com múltiplos genocídios e holocaustos incluídos), por meio da qual o capitalismo como um todo superou as graves crises da primeira metade do século.

    Nenhuma dessas condições está presente no Brasil de hoje. O que temos aqui é uma revolta das mesmas camadas médias e parte dos trabalhadores contra as consequências da última crise capitalista, o rebaixamento das suas condições de vida, a deterioração dos serviços públicos, etc. Uma vez que a gestão da crise estava sendo feita por um partido chamado de “esquerda”, o qual se encarregou de defender os interesses capitalistas quando essa revolta eclodiu em 2013, naturalmente foi a chamada “direita” que se beneficiou politicamente de tal eclosão. Entretanto, o fato de que os opositores “normais” do PT fossem vistos (corretamente) como parte de um mesmo sistema corrupto fez com que um opositor até então marginal (no sentido figurado e literal) espertamente chegasse à presidência. 

    Evidentemente, a crise capitalista continua em andamento, e as políticas aplicadas pela quadrilha que ora ocupa o comando do Estado só farão piorá-la. Enquanto os aderentes da claque mafiosa se locupletam o mais rápido que podem do desmonte do Estado, a culpa da crise é transferida para uma miragem de “comunismo” genérico que abrange desde o PT até o Papa e a Rede Globo, de modo a manter os seguidores mais cegos mobilizados. Seriam esses os contornos gerais da situação que muitos caracterizam como avanço do fascismo no Brasil, às vezes com o acréscimo de um prefixo do tipo “neo” ou “pseudo” para distinguir o fenômeno atual das experiências históricas.

    Nosso objetivo aqui não é entrar nos detalhes da caracterização da atual situação, ou mesmo debater a fundo o problema da definição de fascismo. Vamos apenas tratar de dois aspectos pelos quais essa definição é problemática para designar o que se passa atualmente no país. O primeiro é o modo como essa definição é conjurada, como se fosse uma espécie de palavra mágica, cujo simples som fosse capaz de causar reação imediata e imobilização do objeto assim denominado. As pessoas gritam “fascismo” a cada bozolice que se anuncia, como se esperassem que imediatamente a sociedade como um todo fosse tomada por um frêmito de indignação para dizer “não passarão!”, e o objeto “fascista” em questão quedasse irremediavelmente paralisado, fulminado por uma insuportável humilhação, vergonha, arrependimento. Maneja-se o adjetivo de “fascista” como se ele fosse o supremo anátema, a suprema incriminação contra a qual tudo e todos se unificam.

    Como disseram Jean Barrot e Gilles Dauvé, o pior produto do fascismo é o antifascismo (leia aqui ), pois ele impede que se vá à raiz dos problemas. O fascismo é um tipo de retrocesso bárbaro que só pode ser derrotado e extinto quando for extirpada a fonte de onde brotam todos os males semelhantes, que é o próprio capitalismo. Permanecendo este, permanecem igualmente com ele todas as condições para o surgimento de formas semelhantes de barbarização, como o atual surto de reacionarismo que assola o mundo. O antifascismo tem o efeito de unificar a todos contra o que qualifica como o mal supremo, acabando por deixar encoberta a origem desse e de todos os males, que é o capitalismo. Ao mobilizar contra o fascismo, acaba por mobilizar em defesa do Estado, da democracia e, indiretamente, do próprio capitalismo, de onde outras aberrações brotam mais cedo ou mais tarde. O antifascismo enxuga gelo. 

    Essa qualificação do fascismo como mal supremo se enquadra na narrativa que explica o século XX como o cenário de um duelo entre a democracia e o totalitarismo, que teve como ponto culminante a II Guerra Mundial, e como prolongamento a Guerra Fria contra o totalitarismo restante, o comunismo. Nessa narrativa desaparece a luta de classes e o problema da superação do capital e da alienação. Quando se adota a perspectiva de que a luta de classes contra a alienação é o fenômeno central, ao contrário, o fascismo deve ser devidamente reposicionado como apenas mais uma das tendências surgidas no interior das disputas interimperialistas que marcaram a primeira metade do século XX, sem as quais o capitalismo não teria conseguido escapar da ameaça da revolução socialista. 

    Tratar o fascismo como a versão suprema do mal significa desconhecer que as práticas adotadas pelos fascistas nos seus próprios territórios na Alemanha, Itália, Espanha, Portugal e Hungria, onde se tornaram força governante, eram as mesmas que já vinham sendo adotadas há muitas décadas, ou séculos, pelos imperialismos “democráticos” da França, Inglaterra, Estados Unidos, e de modo pioneiro, pelos colonialismos espanhol e português, nos territórios ocupados em outros continentes. O Japão também empregou esses mesmos métodos nas suas guerras de conquistas da China e sudeste asiático, mas como soaria falso falar em “fascismo” japonês, os adeptos dessa narrativa convencional (democracia x totalitarismo) falam em “militarismo” nipônico (também não podem falar em imperialismo, categoria oriunda e consagrada no léxico marxista). Todas as potências colonialistas e imperialistas praticaram na Ásia, na África e na América Latina o genocídio, a escravização, a tortura, o estupro, o saque de riquezas, a destruição e o silenciamento das culturas, a devastação ambiental, de maneira massiva, atingindo dezenas e dezenas de milhões, numa fileira hedionda de holocaustos em série, diante dos quais a tragédia dos judeus na Europa ocupada pelos nazistas só se sobressai no imaginário coletivo devido a uma característica superexposição midiática.

    Aimé Césaire, expoente da luta anticolonial, já havia destacado este fato no seu Discurso sobre o Colonialismo (leia aqui ).  O fascismo só ganhou a reputação que ganhou porque foi empregado contra populações europeias brancas, educadas e até burguesas. Mas trouxe pouca novidade em relação às formas de submeter pela força as populações dominadas, que já eram praticadas por todos os colonialistas e imperialistas. Colocadas as coisas nesses termos, chega a ser risível falar em “fascismo” no Brasil como se fosse o paroxismo do mal, sendo o nosso país aquele que presenciou o extermínio de milhões de índios e a escravização de milhões de africanos, por séculos e séculos a fio. Retrospectivamente, o fascismo não foi nada mais do que a aplicação de métodos de controle e repressão das populações trabalhadoras da Europa que já eram praticados durante séculos nas colônias da América Latina e outros continentes. 

    A forma especificamente brasileira de terrorismo de Estado

    Esse é o segundo aspecto pelo qual nos parece deslocado falar em fascismo para designar as tendências reacionárias em ação no Brasil atual. Essas tendências nada mais são de que uma atualização e desrecalque de traços atávicos de violência e autoritarismo que marcaram a história do Brasil desde sempre. Olhar para o fascismo europeu e se escandalizar com suas crueldades, usando seu nome como grau máximo de ofensa e desqualificação, chega a ser um escárnio num país que foi construído, vamos repetir, sobre o extermínio de índios e a escravização de negros. A classe dominante brasileira e seu Estado se construíram sobre uma herança persistente e sistemática de massacres, assassinatos, torturas, espoliações, pilhagens, devastação, estupros, agressões, insultos, silenciamentos, difamações, etc., contra a grande massa das populações. 

    Os burgueses de hoje são herdeiros dos senhores de engenho do passado, estão aqui para saquear e usufruir predatoriamente de uma terra “em que se plantando tudo dá”, remetendo o grosso da riqueza para seus amos colonialistas e imperialistas e embolsando as comissões que sobram para ostentar o seu luxo cafona em condomínios à la Miami (ou na própria Miami). Os PMs e milícias de hoje são os herdeiros dos capitães de mato que asseguram a obediência da grande massa condenada de negros, índios, mestiços e brancos pobres. De Palmares a Canudos, do Carandiru a Eldorado dos Carajás, da Candelária ao Cabula, de infinitos e nunca esquecidos Amarildos, Cláudias, Rafael Braga, Agathas, Lucas a Marielle Franco, o Estado brasileiro não faz mais do que punir com a morte aqueles que ousam levantar a cabeça ou simplesmente atravessar o caminho dos agentes da “lei e da ordem”. Sem a brutalidade cotidiana e sistemática de PMs, milícias, jagunços e mercenários de todos os tipos, não seria possível manter sob controle uma população seviciada por uma elite tão feroz, mesquinha e patética.

    É essa a formação social brasileira que é preciso estudar e conhecer em detalhe para identificar corretamente os inimigos de classe e seus agentes armados, bem como os protagonistas em potencial de um processo de enfrentamento capaz de romper essa história secular de exploração e de opressão odiosas. Quando falamos que não há fascismo no Brasil, não é para dizer que o bolsonarismo não é tão ruim quanto o fascismo histórico, mas para dizer que se trata de algo novo e específico do nosso tempo histórico, e ao mesmo tempo, algo arcaico e característico da nossa formação social, reciclado em roupagem do século XXI, e que pode ser tão ruim quanto ou pior que seus congêneres históricos. O que temos aqui é uma forma especificamente brasileira de terrorismo de Estado contra a população pobre e trabalhadora. Essa forma específica de terror de estado precede no tempo e em certo sentido ultrapassa nos métodos o fascismo. 

    É desnecessário falar em fascismo no Brasil, porque temos algo que é ancestral e estrutural. O terror de Estado lançado sistematicamente sobre índios, negros e pobres em geral é a forma por excelência de controle de populações usada pelos governantes brasileiros. Os integrantes do aparato repressivo, com a PM na linha de frente, são os agentes diretos desse terrorismo. A milicianização das PMs em curso no Brasil atual aponta para uma radicalização dos métodos de controle social em face da crise do capital. As crises capitalistas somente se resolvem por meio da luta de classes, da destruição de capital e do aumento de exploração, que  requerem o emprego da força armada do Estado contra os trabalhadores. O Brasil é o país em que a brutalidade do Estado sempre foi cruelmente eficiente em impedir que as lutas e as revoltas ameaçassem conseguir o que foi obtido em outros países, fazer rolar as cabeças dos poderosos.     Nos momentos mais agudos de crise, esse Estado brasileiro dispensa as fantasias benevolentes e expõe sua face implacável. Para uma imensa maioria da população nas periferias e nos rincões do país, não existe Estado, lei, direito, serviço público, etc., a não ser sob a forma de uma viatura da PM, que em um grande número de casos, é tão brutal, violenta e corrupta quanto qualquer criminoso. Para enfrentar essa escalada autoritária de violência de classe da burguesia, é preciso responder com a violência dos explorados, organizados com seus métodos, sem ilusões no Estado e nos seus aparatos.

[Todas as fotos utilizadas nesse artigo são da greve/motim policial do Ceará em fevereiro de 2020]

Por Granamir

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