Quando eu era menor eu tinha um medo enorme do escuro, eu achava que apareceriam monstros ou então que a morte viria para me pegar. Confesso, que esse medo e o fato de associar o escuro a morte foi algo que me perseguiu durante a vida toda.
Porém, quando eu cresci, percebi que a morte também vinha de dia. Quando eu vi meus amigos e conhecidos, pretinhos igual a mim morrendo por “bala perdida” ou por violência policial a luz do dia eu tive noção de que a morte também vinha quando estava claro. A morte não era uma velha senhora de capa preta, a morte era um homem branco de farda.
Durante grande parte da minha adolescência, por mais que eu gostasse de sair de casa eu tinha medo de andar na rua, mesmo com uniforme da escola as pessoas atravessavam para o outro lado e seguravam suas bolsas, eu sentia que tinha algo de errado em mim. Por qual razão aquelas pessoas tinham medo de mim?
Talvez fosse porque eu estava de touca, talvez porque estava de blusa, talvez porque estava com a mão no bolso. Eu tinha certeza de que algo estava errado em mim, não fazia sentido, eu não representava mal algum e mesmo assim era tratado como um perigo.
Eu tinha entre doze e quatorze anos quando levei meu primeiro enquadro. Eu estava andando na rua, com uniforme da escola com um amigo branco do meu lado e ele estava mexendo no celular, eu parei para amarrar meu tênis e quando percebi ele estava andando mais na frente, corri para alcançá-lo. Quando cheguei perto dele vi uma viatura, na minha frente. Naquele momento, eu senti uma sensação horrível, era como se eu sentisse o que estava por vir. Então os policiais desceram do carro, com as armas na mão, me mandaram por as mãos na cabeça e encostar na parede, me revistaram completamente, abriram minha mochila, perguntavam o que eu estava fazendo na rua como se isso fosse errado, me feriram e machucaram tanto com as suas palavras quanto com as suas ações, aquilo foi extremamente doloroso para mim e desde então eu passei a ter medo de polícia e isso se somou com o medo de andar na rua, cada vez que eu encontrava com uma viatura meu coração acelerava, a cada notícia que eu lia de policiais forjando ou matando alguém eu me reconhecia na pessoa que tinha morrido.. sempre se parecia comigo, preto e jovem.
Na minha vida, eu sempre gostei de falar muito, mas na hora de discutir algo mais sério, algum assunto relacionado a política eu me calava. Apesar de sempre ter me interessado por pesquisar e estudar alguns temas mesmo que eu tivesse bastante conhecimento simplesmente não conseguia falar, sentia que nunca teria a mesma propriedade que meus colegas brancos. Eles falavam entre si e somente, eu era apenas um ouvinte das suas amplas discussões, queria participar mas sentia que aquele não era o meu lugar, eu nem deveria estar ali, eu não merecia estar ali. E é justamente isso que o racismo faz com a gente, a branquitude tem um pacto narcísico como nos ensinou a professora Cida Bento em sua tese de doutorado. Eles se apoiam, protegem e estimulam uns aos outros e qualquer preto que tente romper com isso vai ser duramente reprimido. Mesmo antes de ter acesso a esse conceito (pacto narcísico da branquitude) eu já experienciava o que era ser silenciado nos espaços da branquitude, nós estudavamos juntos, riamos juntos, brincávamos juntos, jogávamos bola juntos mas eu nunca fiz realmente parte do grupo deles, era como um acessório.
O racismo, me fazia ter medo de ir para a escola, nunca foi um espaço que me fez sentir seguro. Eu era diariamente ofendido, chamado dos termos racistas mais dolorosos que uma criança poderia escutar.
Um dia, um garoto fez uma maquete de uma fazenda escravocrata e me mostrou dizendo que tinha feito a mim e a minha família. Aquilo me feria, me fez sentir um lixo, eu sentia raiva mais não conseguia responder, eu simplesmente me calei naquele primeiro momento, eu não tinha forças para falar nada. Eu me sentia inútil pois uma coisa era mexer comigo, mas desrespeitar assim toda a minha família era inaceitável. Como pode? Como podemos viver em uma sociedade que nos violenta e machuca de formas tão cruéis assim? Como podemos simplesmente permitir que nossas crianças pretas cresçam num mundo tão racistas e sejam tão violentadas desde pequenas? Eu tinha apenas 11 anos. Eu não merecia aquilo, ninguém merece.
Outro dia, eu estava me preparando para ir embora da escola quando um grupo de garotos do ensino médio me pegou na porta da saída, todos os dias eles mexiam comigo mas nunca tinha de fato passado das palavras. Mas algo foi diferente aquele dia, por algum motivo eles estavam com raiva, eles queriam alguém para descontar e um corpo preto para um grupo de brancos era o melhor alvo. Eles me bateram muito, deram com os pés de uma cadeira de ferro nas minhas costas, bateram a minha cabeça na parede algumas vezes e tudo isso na frente da escola toda, ninguém fez nada. Na hora, eu não consegui me defender, não tive reação, tentei lutar e me defender mas foi em vão, eram muitos, eu não conseguia, eu cai no chão e só conseguia escutar as vozes “mas o que será que ele fez?” é claro, para uma pessoa preta ser linchada por um grupo de pessoas brancas, em público, com toda certeza deve ter feito algo para ter merecido aquilo, na cabeça da branquitude.
Hoje eu entendo que aquilo não feriu só a mim, era também um recado a todas as outras pessoas pretas que ousavam estar naquele espaço “esse lugar não é para vocês”.
Mais de uma vez tive que ver minha irmã chorando na escola, estática, paralisada de medo porque estavam batendo no irmão dela. Sempre homens brancos, em grupo, geralmente bem mais velhos. Eu não tinha como me defender.
E isso se repetiu muitas vezes, não importava se eu mudasse de escola. O ambiente continuava sendo majoritariamente branco e eu sempre seria preto, numa sociedade racista, eu sempre tinha um alvo nas costas.
Até que em 2017 eu levei o pior enquadro da minha vida, me machucaram muito e me ameaçaram de morte. Aquele foi o momento que tudo mudou. Sempre tive consciência de que poderia morrer, mas aquele foi o momento que eu entendi aos 15 anos que eu podia facilmente morrer por ser preto e que isso não dependia da minha postura e nem onde eu estava, eu era preto numa sociedade racista que sente ódio por nós pretos e quer nos matar. Aquela tomada de consciência foi extremamente dolorosa para mim, fez eu me arrepender muito de várias das escolhas que tomei, mas o que mais doeu em mim foi ter ficado calado em vários momentos, doeu em mim ter que rir enquanto zoavam e puxavam o meu cabelo, doeu em mim ter ficado quieto quando as garotas brancas zoavam o tamanho do meu nariz e as minhas orelhas, doeu em mim não ter gritado aos quatro cantos as dores que eu sentia. Doeu por perceber que o silêncio não me protegeu, eu continua alvo.
Audre Lorde, em “Irmã Outsider” nos diz: “Eu ia morrer cedo, tivesse falado ou não. Meus silêncios não tinham me protegido. Tampouco protegerá a vocês.”
E é justamente sobre isso, ter me calado não evitou violência, mas talvez, falar, lutar, pudesse me ajudar. Então eu decidi que precisava falar e mais que isso, precisava agir e me movimentar. Fui me aproximando dos movimentos sociais e ali percebi uma oportunidade de mudar a minha vida e a de outras pessoas, pretas iguais a mim. Eu tinha plena certeza de que não acabaria com o racismo assim, mas ver outras pessoas, iguais a mim, lutando por uma sociedade melhor me dava forças para continuar. A gente ia pra rua, apanhava, gritava e no outro dia fazia uma manifestação maior ainda, com mais gás e mais força. Eu me fortaleci e fortaleci a luta daquelas pessoas, aprendi que juntos somos bem mais fortes, aprendi o poder do cuidado, aprendi que eu podia e deveria falar, que eu podia sim escutar outras palavras que não fossem de dor. Aquilo mudou a minha vida.
Quem acompanha meu trabalho sabe que eu praticamente todos eles, seja em vídeos, palestras, podcast ou meus próprios textos com uma frase: “Só a luta muda a vida”. Pra mim, essa não é apenas uma frase pronta para enfeitar os meus textos, é uma forma de me lembrar e tentar passar a vocês uma mensagem. De que a vida é difícil, vivemos em uma sociedade machista, patriarcal, misógina, racista, lgbtfóbica, xenofóbica e extremamente desigual, vivemos em um sistema que gera e se aproveita das desigualdades por ele geradas e ele não vai mudar tão fácil. Quando pensamos em militância política nós não fazemos isso para sermos famosos ou para parecer intelectual como a militância branca de centro esquerda universitária faz. Nós militamos para mudar o mundo, nós militamos para salvar vidas, não só a nossa, não só a dos nossos amigos, mas de todos aqueles que assim como nós tem um alvo nas costas. E se não é fácil mudar o sistema, vai ser preciso o enfrentamento e esse enfrentamento é a luta. Se mudarmos esse sistema, com uma revolução completa ou cada dia um pouco, salvamos vidas. E é por isso que eu sempre digo que só a luta muda a vida.
Dizer, falar, berrar, contar, escrever, desenhar. Todas as formas de linguagens podem ser utilizadas como instrumentos para a nossa luta,para romper com o silêncio que nos foi imposto pela sociedade racista, para dar a voz a quem a teve roubada, para dar vazão aos nossos sentimentos. Essa batalha é necessária ser travada. Que nossa fala inspire outros a falarem. Que nossa luta dê força e apoio para que outras lutas sejam realizadas.
Sejamos fortes para lutar, tenhamos coragem de romper o silêncio.
A verdade, é que a branquitude não aprendeu e nem quer nos ouvir e para isso não vamos falar mais claro, vamos escurecer o debate, falar dos nossos e para os nossos. Não importa onde chegarmos vamos ter consciência de que toda conquista não é só nossa, é vitória para o nosso povo. Entender que o topo não faz sentido se os nossos não estiverem lá. É preferível estar na base, acolhido, com sua família e amigos do que num topo inexistente, com discurso de Wakanda, tênis da nike e esquecendo dos pretinhos que te deram suporte no começo.
Se tentarem nos calar, gritaremos. Se não conseguirem nos entender então eles que aprendam. Não nos calaremos mais, não voltaremos para o armário, para cozinha, senzala ou para o toco. Nossas crianças vão ser criadas para não se calarem diante do racismo, nossas crianças vão ser criadas sabendo que são descendentes de guerreiros e guerreiras. A revolução virá e ela será preta e favelada, assim, de quebrada, cabelo na régua e de bermuda, do jeitinho que a sociedade racista adora criminalizar e desprezar.
Vamos ultrapassar as barreiras que colocaram nos nossos caminhos juntos e sempre vamos seguir lutando, pois para nós, a luta não é uma opção, é necessidade, afinal, só a luta muda a vida.
Por Marcus Nascimento, militante preto, anticapitalista e estudante de serviço social na Unesp.
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Muito forte esse tema. A mesma história de sempre, sempre se repitindo. Havemos de encontrar a forma de reescrevê-la, mas com uma conclusão feliz. Já sabemos que não podemos nos calar. Não podemos esperar complacência. Precisamos construir projetos, alicerces, estruturas que sustente e edifique a mudança da realidade do povo preto. Luta e resistência sempre!