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03 maio 2020

Bolsonarismo, Orwell e Coronavírus

         Em 1949, vinha ao mundo o romance “1984”, uma narrativa distópica do saudoso escritor indo-inglês, George Orwell, que lançou ao mundo um dos romances mais vendidos na história da literatura moderna. Em 2020, 71 anos depois da publicação do livro em sua primeira versão, e 36 anos depois do ano de 1984, vemos, não nas terras britânicas, mas nos trópicos brasileiros, um governo e uma sociedade capaz de deixar Orwell de cabelos em pé. As conexões entre a ficção 1984 e a realidade de 2020 no Brasil, são tão assombrosas que ao observar um discurso que domina as mentes à partir de uma narrativa inconsequente, que nos vai tirar tantas vidas, começamos a nos questionar se estamos vendo os jornais ou assistindo a um comercial do governo de 1984. 

Distopia é Sobrenome 

          No Bolsonarismo a distopia é sobrenome, é o endeusamento de uma cultura de ódio explícito, que na configuração da política brasileira extrapolou em muito os dois minutos de incitação à violência orwellianas. Numa visão de mundo simbólico dos objetos fálicos, de armas, munições e reafirmação da masculinidade como sinônimo do ódio ao diferente, junto de um reavivamento dos ditos “valores tradicionais”, é na polarização entre um bem absoluto de uma identidade patriota contra uma posição ideológica em crise, o petismo, que a narrativa fantástica do bolsonarismo se instala no seio da política brasileira, pautando sua série de absurdos institucionais, teóricos e práticos naturalizados.

          Evidente que a narrativa bolsonarista não nasce do nada, foi muito bem construída juntando uma série de interesses obscurantistas e mercadológicos da ala mais inescrupulosa das instâncias de poder do país. Mas, para se sustentar e vencer as eleições presidenciais teve grande apoio popular, contrariando a visão romântica dos proletas de Winston. Nesse Brasil de 2020, as camadas mais baixas ainda substancialmente apoiam o Estado necropolítico colocado em plena execução aos nossos olhos, sob a justificativa da guerra interna contra a criminalidade e a crise econômica, seduzidos por uma proposta de restauração de uma mitologia tradicional que nunca existiu. A piora nas condições de vida, as precarizações e privatizações são recebidas com ojeriza, mas vistas como muito distantes de qualquer reivindicação popular, de forma que os movimentos sociais perdem cada vez mais voz, são barrados pelas forças militares e as narrativas oficiais prevalecem, fazendo crescer as instituições de pregação das verdades que mudam a todo momento, de certezas incertas, do gabinete do ódio e da manipulação dos dados.

          Muito sintomático de como se estabeleceram as relações de comunicação na última década, onde o número de telefones celulares ultrapassaram e quase dobram o número de pessoas que existem sobre a superfície da terra, o bolsonarismo se aproveita das ferramentas de compartilhamento e dispersão de conteúdo massivo para fazer sua propaganda revisionista. Documentários que questionam a história oficial, que reabilitam sujeitos inescrupulosos e desviam o foco dos problemas estruturais através das nossas “teletelas”, instrumentos em que viciaram as mentes num processo complexo de auto alienação para a servidão voluntária de um bem maior, o combate ao um “petismo e ao comunismo” que se espalhariam no falido Estado Brasileiro.

          Mas para além de todos essas características, parece que uma das maiores aproximações do governo Bolsonaro com a obra de Orwell vem justamente se manifestando em suas posições durante a pandemia mundial de Covid-19, pois uma vez assumida a retórica de “guerra interna contra o vírus” os discursos, os posicionamentos e a ações do governo federal; dúbias, duplas, obscuras, negacionistas, populistas e totalitárias, são quase que vindas da mente perversa de O’Brien, do interior do calabouço político brasileiro. 

O Controle da Consciência é Poder 

          “A realidade está dentro do crânio. Aos poucos você vai aprender, Winston. Não há nada que não possamos fazer. Levitar, ficar invisíveis – qualquer coisa”. Esse trecho de 1984 corresponde a fala de O’Brien para Winston nas dependências de um dos ministérios do Partido. O’Brien, membro do núcleo desse Partido, há dias torturava o protagonista em busca de extirpar deste qualquer “pensamento-crime”, qualquer desvio do pensamento dominante. Embora os métodos para a tal extirpação sejam variados, essa fala que inaugura esse parágrafo é um dos métodos mais eficazes.

         Quando O’Brien afirma para Winston, simplificadamente, que “a realidade está dentro do crânio”, ele está querendo negar a existência de uma realidade objetiva. Tudo que existe só existe a partir da consciência humana. Não há um mundo material fora da interioridade da consciência. E uma vez que não há um mundo material, que tudo é fruto da consciência e que essa mesma consciência é passível de ser manipulada, O’Brien passa a ter domínio sobre a realidade (interior) de Winston. O membro do núcleo do partido é capaz de levitar, de ficar invisível caso queira.

         Como isso pode se relacionar com a crise do Covid-19 no Brasil? Tal como O’Brien é capaz de manipular a realidade de Winston e, de maneira geral, tal como o Partido é capaz de manipular a população da Oceania, Bolsonaro e sua trupe parecem ser capazes de manipular a realidade de alguns de seus eleitores. A crise do novo coronavírus existe, ela já matou, no Brasil, mais de 5.000 pessoas (até o momento que este texto foi escrito) – isso sem contar a possibilidade de subnotificação dos casos. Dezenas de países estão adotando as medidas de isolamento social , uma das formas mais eficazes de combate à contaminação e à doença para a qual ainda não existem vacinas.

         No entanto, apesar das evidências, das mortes – cruéis e dolorosas, vale dizer -, muitas pessoas estão saindo às ruas, apoiadas pelo presidente Bolsonaro, para protestar contra as medidas de isolamento que estão sendo adotadas. Essas pessoas estão negando a seriedade do vírus, as mortes, os números de contaminados. E essa negação só é possível por causa, entre outras coisas, da possibilidade de manipulação da realidade a partir do pressuposto de que a realidade é simples produto da consciência. Aceitar ou não as medidas de isolamento e a realidade cruel do novo coronavírus, passa a ser uma questão de opinião subjetiva, uma vez que qualquer nível de objetividade, qualquer fenômeno externo à consciência, não existe. 

A Narrativa é Poder 

          O poder de controle mental emanado pelo discurso Bolsonarista significa e tem o controle das mentes daqueles que a consomem. Cada vez mais é evidente que para além dos recursos tecnológicos, políticos e financeiros é uma ideologia baseada num discurso, que pode moldar qualquer um desses elementos para favorecer a reprodução e perpetuação das crenças propagadas pelo grupo como forma de reprodução da ideologia, o que  cada vez mais tem se tornado necessário frente à uma crise que coloca a narrativa à prova material. 

            A narrativa bolsonarista encontra-se aliada em uma nova forma que a linguagem política adquiriu com uma mudança nas estruturas sociais e econômicas, a da globalização e do modelo neoliberal e a difusão dos meios de comunicação em massa. Nessa nova linguagem, em muito o compromisso político, que antes era parâmetro da confiabilidade, se desfez; não há compromisso com a verdade, ciência e nem com um suposto plano de governo, de forma a também ressignificar o discurso político, dotado do que alguns chamam de “pós-verdade”. Quem  historicamente detém o poder, detém também o rumo das narrativas e o Bolsonarismo se utilizou de uma narrativa sórdida, cheia de mentiras, para chegar ao poder, assim como utiliza da mesma para manter as aparências, mesmo de um governo totalmente desgastado, com baixas ministeriais caríssimas, frente à uma crise mundial, para continuar a favorecer o interesse de seus grupos dominantes.

          Parece pitoresco observar que as mentiras estruturadas pelo bolsonarismo tenham alcançado tamanho nível de importância na pauta nacional, isto é: existe uma dinâmica única, para além de o presidente soltar notícias falsas, da gripezinha, da cloroquina, do “Isolamento Vertical”, os seguidores sustentam através da criação de narrativas ficcionais. “Meu tio que era porteiro e morreu trocando pneu foi enterrado com diagnóstico de coronavírus”, “beba água tônica com quinina, parte da cloroquina, para ficar imune ao vírus.” histórias estapafúrdias, mas que dentro da lógica do discurso bolsonarista são viáveis, pois não se precisa mais de uma só verdade, as verdades podem coexistir, mesmo que verdades-mentirosas, sendo o único critério o que os favoreçam… Assim como pregava o ministério da verdade de Orwell.  

          É na pior crise humanitária dos últimos cem anos, que esse discurso entra mais ainda em contraste com o universo criado por Orwell. Seja se apropriando mais intensamente de alguns recursos linguísticos como o duplipensamento – no qual a pessoa acredita em duas ideias totalmente opostas que se caracteriza não como verdades e mentiras mas duplas verdades, como quando o presidente diz “não acreditar na farsa que é o coronavírus” e ao mesmo tempo, defender ferrenhamente o uso da cloroquina para o seu tratamento. Não se trata de ideias opostas, mas duplas verdades nesse malabarismo operado pelo presidente. Porém a contradição que esse malabarismo contém, parece estar afetando sua popularidade diante do povo brasileiro que vem se radicalizando a cada dia entre blocos pró e contra o governo de Bolsonaro, o que não significa uma oposição efetiva no jogo do poder, mas que o duplipensamento ainda é visto como negativamente contraditório.

          Essa radicalização abre o segundo ponto dos contrastes entre o orwelliano e o Bolsonarismo – a classificação da oposição em um bloco único, como inimigos do governo e numa máxima, inimigos da família, dos bons costumes e da nação. Assim como em 1984, onde a língua criada abarcava o máximo de conceitos da chamada velhafala para reduzir gradativamente o nível de transgressão no socing inglês, Bolsonaro e seus apoiadores têm aberto cada dia mais o leque dos chamados “inimigos da nação”. Desde antigos apoiadores, agora declaradamente contra o governo, grandes antigos aliados políticos, como ministros e deputados, chegando até mesmo a burguesia liberal que apoia as formas de isolamento social como uma forma de retardação da disseminação do vírus. Dentro da Crise todos que se afastam do discurso oficial e que não são contraditórios, são inimigos da Nação: Mandetta, um ministro privatista, quando apoia um discurso minimamente científico foi expulso, os governadores quando tomam medidas pró isolamento são comunistas e assim o ódio que sustenta o discurso se retroalimenta. 

          Parece que como em 1984 a ideologia dominante utiliza de todos os artifícios e instrumentos discursivos, práticos e psicológicos para poderem se perpetuar. O Bolsonarismo vem se perpetuando, e sobre a crise da pandemia mundial tem mostrado muito do seu potencial destrutivo, sustentado ideias inescrupulosas, privilegiando os grupos dominantes sobre o peso da morte daqueles que são substituíveis aos olhos do poder.

         Enquanto pensar não for um crime, nos parece uma obrigação denunciar, mais do que isso, não só fugir da distopia, mas lutar para que ela não aconteça, afinal, os corpos que alimentam as máquinas distópicas, são sempre os nossos: pobres, pretos, favelados, colonizados e marginalizados. Os que curiosamente são os últimos a carregar uma fagulha do germe da esperança na utopia.

Imagem Por: Emily Barbosa – Moradora da Vila Formosa, Zona leste de São Paulo, Feminista interseccional, desenvolvedora web, estudante de relações internacionais e militante do coletivo quilombo invisível. “ A interseccionalidade do mundo é o que me move e o que me faz construir de forma ativa”.

 Texto Por: Kaique Menezes – Morador do Grajaú- Extremo sul de SP, Militante do Quilombo Invisível, estudante de Geografia e nas horas vagas poeta marginal.

Texto Por: Lucas Arruda – Morador do extremo leste de São Paulo, militante do Quilombo Invisível, estudante de letras, militante Anticapitalista, Anti-racista e amante de futebol.

Texto Por: Rafael Junker – Estudante de Filosofia, militante anticapitalista e entusiasta de distopias.

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