
Da ausência
Não é hoje
Não será amanhã
Não estará no sempre
Não se afigura no aquém
O que não tem nome
O que não é formulável
O que não se deforma diante da retórica
O que não se conserva
O que não é volúvel
O que não cabe no verbo
O que transborda o sentimento
O que esteriliza a lógica
O que corrompe o pensamento
O que não se percebe
O que não é
O que não há
Caos
Há um caos , um caso
Algo como um acaso
Que ocasiona descaso
Que causa descompasso
Que precipita ocasos
Dentro de mim

Autoanálise II
Há pessoas que ocupam um lugar dentro de mim sem nem me conhecerem
Mas eu as conheço bem de minhas fantasias.
Influenciam de modo sutil minha vida
Me mostram alternativas, me mostram saídas
Que não conseguiria achar sozinho.
Elas são o sucedâneo de minhas ausências
Elas são meus interlocutores imaginários e necessários
Elas são a fuga desesperada , a projeção lançada,
De minha mesmidade em direção a Outros
Elas são o choro de meu narciso
Ao perceber o quão violento é abdicar ao mundo para olhar apenas a si.
Da poesia
A palavra é prisma
O sensível pueril
O pensamento incontido
A identidade disforme
A imagem cinestésica
A metáfora, potência do devir.
Noite
Nas noites tragadas tão dolorosamente
Sempre me vem aquela angústia de desespero mudo
O êxtase que não transcende
A vida que cai, estremece.
O pavor do próprio grito que não se ouve
Do próprio ser que em si escoa
Do próprio breu que em si silencia, escurece.
Não sei se é a morte que se presentifica
E meu rosto empalidece
Sei apenas que isso não é vida
Sensação de porosidade de mim
Que me entorpece.
No fundo da ignorância está sustentado o niilismo
A auto-aniquilação, já passou há séculos…
A górgona venceu!
E do homem pedra que se quebrou
A cabeça continua intacta
Fossilizada em sua incompetência perpétua.
E dessa realidade trincada
Restamos nós, eus – restos
Contraditoriamente se reinventando
Deixando transparecer a petrificada morte
No mofo existencial de cada verso.

Da música
Há momentos densos, em que a melodia dilata a vida.
De um arrebatamento tal
Que o eu se dilui , se prisma
E mergulha, de súbito
Num grande sono diáfano
Na porosidade de um sonho que fere
Que, para durar por mais um leve instante
Tem se nascer do breu, de fontes inacessíveis
E revelar-se como ausência
Devastadora, inescapável.
Os músculos, a face e a força se crispam
Não sabem mais, desaprenderam a existir.
Já fui poeta
Já fui poeta
Já contive versos na boca
Metros no pensamento
Tinha sempre uma vaga melodia no fundo dos abismos
Uma tristeza esparsa e serena na face
Uma lucidez débil e inútil sobre a vida
Sabia-me incomunicável
Demorava-me em aporias imensas
Contemplava-me diante de espelhos imaginários…
Silenciava-me na angústia negra da madrugada
O que é preciso
É preciso descer pra rua
Nadar com os loucos no asfalto
Dançar com eles no céu.
Gutto – Sobrevivente do extremo sul de SP, observador da vida que como tinta teima em colorir as esquinas desbotadas das bordas do capital; amante das palavras e sofredor, logo poeta; preocupado com a alquimia das ideias, me fiz filósofo, por diversão e por necessidade; incomodado com a nossa subalternização diária, sou mais um daqueles pretxs, pobres e putos que dizem não.
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