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17 maio 2020

Domingo

É domingo, é noite. Domingo sombrío, translúcido, turvado por afetos que se conversam, que se mesclam. Domingo de nuvens grossas , de céu silencioso, sem chuva. Mas tudo parece estar úmido, encharcado por algo que não se vê. 

É por volta de dez da noite, faz frio, faz vento…faz um silêncio imenso. A rua também se cala, se recolhe, se anula. Vou até o portão receber o motoboy que traz nosso jantar, o “luxo” da semana: uma pizza, metade frango metade brócolis. O entregador se desculpa porque a coca-cola não veio. Ele se vira e pega o celular, vai falar sobre o imprevisto com alguém da pizzaria em que trabalha. 

Eu estava distraído com a cena, impressionado com o vento, com o escuro, com o frio… não percebi que um sujeito havia desfeito o pacto tácito de silêncio e ausência que o pôr do sol selara com as esquinas. Seus passos vagos, tímidos, sonantes, fizeram o asfalto vibrar levemente, fizeram com que a rua, antes tão calada, falasse com a linguagem dos estalos breves. 

O homem se volta para mim, traz sacolas nas mãos, tem um semblante opaco, rosto magro e exausto, olhos apagados, molhados, banzos. Ele me pede algo para comer, para alimentar seus filhos – me explica macarrão seria ótimo, porque é rápido para preparar, o que a esta hora importa bastante. O homem vem do trabalho, traz o cansaço tatuado no rosto, a humilhação circulando nas veias – tal qual um veneno que cotidiana e imperceptivelmente vai-lhe roubando o futuro; traz o corpo retraído, mas fortalecido por longas jornadas; traz na voz uma melodia simples, uma mensagem em lá menor, típica daqueles que cantam pra não chorar. 

É domingo, é noite, por volta de dez horas. Mas a fome parece não compreender a contagem do tempo e nem se importar com as intempéries da natureza. Dou ao homem um litro de leite e o pacote de macarrão que havia pedido. Ouço suas palavras de gratidão, penso na noite, penso em suas crianças…negras como o céu, independentemente da cor que tenham. Olho em seus olhos, pensativo, lhe desejo uma boa noite, um bom fim de domingo – não me vieram palavras melhores no momento. Na verdade vieram, queria lhe falar para que fosse com deus, mas não acredito nele e não sei sobre as crenças desse homem; queria lhe desejar esperança, mas eu mesmo já não tenho muita; queria pedir para que entrasse, tomasse um café, me contasse um pouco de sua história, mas sabia que em algum lugar não longe daqui outras pessoas precisavam mais de sua presença do que eu – e também do que levava nas sacolas. 

É domingo, por volta de dez da noite. O homem cruza a rua, dá meia volta e retorna por onde viera: seu caminho é sua sina, sua vida é sua luta, e sua luta sua vida.

Texto por Gutto – Sobrevivente do extremo sul de SP, observador da vida que como tinta teima em colorir as esquinas desbotadas das bordas do capital; amante das palavras e sofredor, logo poeta; preocupado com a alquimia das ideias, me fiz filósofo, por diversão e por necessidade; incomodado com a nossa subalternização diária, sou mais um daqueles pretxs, pobres e putos que dizem não.

Designer Por: Emily Barbosa – Moradora da Vila Formosa, Zona leste de São Paulo, Feminista interseccional, desenvolvedora web, estudante de relações internacionais e militante do coletivo quilombo invisível. “ A interseccionalidade do mundo é o que me move e o que me faz construir de forma ativa”.

Fotografia Por: Kaique Menezes – Morador do Grajaú- Extremo sul de SP, Militante do Quilombo Invisível, estudante de Geografia e nas horas vagas poeta marginal.

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