O mundo vive hoje uma das maiores crises da história, um evento de proporções que as atuais gerações jamais presenciaram, e que só tem paralelo comparável na II Guerra Mundial. Nos 75 anos depois do fim daquele conflito, construiu-se uma narrativa da história na qual o mundo seguiria o rumo do progresso, da democracia e da liberdade (e do capitalismo, especialmente depois da queda da URSS) e grandes tragédias como aquela jamais se repetiriam. Essa narrativa está redondamente errada, pois o progresso é sinônimo de destruição, a democracia é um grande embuste e a liberdade existe apenas para o capital em sua ação incontrolável de explorar a humanidade e destruir o planeta. A pandemia de Covid-19 é apenas a última das catástrofes provocada pela relação do capitalismo com a natureza e pela incapacidade de sequer estruturar sistemas de saúde necessários à nossa sobrevivência.
Enquanto os políticos e grandes empresários estudam maneiras de sair dessa crise preservando as suas instituições e a ditadura do capital, nós trabalhadores lutamos para sobreviver em meio a grandes incertezas. Os que estão empregados não sabem se manterão os empregos, os salários e os direitos. Os subempregados, precarizados, informais e desempregados, que são a maioria, não sabem sequer como vão sobreviver ao dia seguinte, como vão conseguir comida, como pagar as contas, como proteger a si e seus familiares. Enquanto o vírus invisível circula à espreita fazendo seu trabalho nefasto de destruição, o sistema de saúde vai entrando em colapso, sem leitos, sem respiradores, sem medicações, sem EPIs para os trabalhadores, sem exames para que se possa minimamente conhecer a propagação real da doença.
O governo, por sua vez, retarda ao máximo as medidas mínimas necessárias para a sobrevivência da população, atrasando o pagamento da mísera ajuda de R$ 600, deixando milhões sem resposta à solicitação, colocando todos os tipos de obstáculos burocráticos para que os mais vulneráveis entrem no sistema, expondo todos ao risco de contaminação em filas intermináveis e agências bancárias sem mínima estrutura, etc. E os patrões, com suas carreatas da morte, defendem a reabertura imediata dos negócios, exigindo que os trabalhadores voltem ao serviço o quanto antes para que suas empresas não sejam prejudicadas. Com a cegueira característica da burguesia brasileira e sua obsessão pelo curto prazo, não percebem, ou fingem não perceber, que é necessário um investimento massivo no sistema de saúde e nos exames para mapear a doença, sem o quê a propagação do vírus será incontrolável, o número de mortos será o de um verdadeiro holocausto e os seus prejuízos diante de uma quarentena endógena muito mais severa seriam verdadeiramente incalculáveis.
Governo e patrões não se preocupam com nossas vidas e querem nos conduzir a um massacre. Diante disso, cresce a revolta e a vontade de agir, de fazer algo, de lutar contra esse sistema e seus agentes. Multiplicam-se se os encontros, as conversas, as reuniões virtuais, videoconferências, transmissões ao vivo, as articulações e iniciativas de organização visando elaborar planos e estratégias de ação. Para além das medidas imediatas, de tentar organizar os bairros, os locais de trabalho, as próprias famílias para a sobrevivência, muitos se perguntam: como agir depois? Como ir além, como sair dessa defensiva? Como questionar o próprio sistema que nos colocou nesse beco sem saída? Por onde começar a lutar? Pelas questões de sobrevivência, como empregos, salários, auxílios, sistema de saúde? Ou atacando diretamente os governantes, os poderes do Estado, as instituições que nos aprisionam?
Que fazer?
As organizações militantes tradicionais, aquelas orientadas à conquista do poder do Estado, seja por eleições ou por qualquer outro meio, sempre têm respostas prontas para essas questões. São as famosas “palavras de ordem”, coisas como “Fora Temer”, “Lula Livre”, “Greve geral”, “Assembleia constituinte”, “nenhum direito a menos”, que as organizações tiram da cartola para trazer aos trabalhadores. As organizações se esmeram em “competir” para criar as palavras de ordem mais “revolucionárias”, mais “radicais”, as que mais “mobilizam”, e debatem freneticamente as palavras de ordem umas das outras, como se aí estivesse o segredo que vai provar que uma é mais revolucionária que a outra, mais militante que as suas “rivais”, que não passam de “pequeno-burgueses”. E no esforço de cada uma de mostrar que somente ela está correta, acabam mostrando assim que de certa forma todas estão erradas. Ainda assim, vamos partir do debate com essas organizações antes de chegar a uma formulação própria.
Tais organizações têm suas concepções teóricas arraigadas, seus métodos de ação esquematizados, seus baús com manuais de política, que mobilizam quando precisam criar suas palavras de ordem para se dirigir ao movimento. Não há como fazer um inventário de tudo isso antes de debater as propostas do que fazer, por isso, para não nos estender em debates intermináveis, vamos classificar as palavras de ordem que as organizações produzem em dois tipos, com nomes atribuídos para fins meramente didáticos. Assim, pedimos ao leitor que desconsidere a carga pejorativa com a qual esses nomes didáticos normalmente são usados: “economicistas” e “politicistas”. Ao usar esses termos, portanto, não vai aqui nenhum juízo sobre as organizações que os produzem, o que temos é apenas uma intenção de simplificação. Isso porque, como veremos, ambos tipos de formulação inclusive podem ter de fato alguma utilidade para a luta e, ao mesmo tempo, ambas concepções compartilham o mesmo tipo de erro, que será objeto de crítica na parte final.
Os “economicistas” entendem que a prioridade tem que estar em palavras de ordem que dizem respeito às questões imediatas de sobrevivência da classe: manutenção dos empregos, dos salários, dos direitos, renda de sobrevivência para quem não está empregado, proteção especial para quem está nos serviços essenciais, emprego massivo de recursos públicos (via impostos sobre grandes fortunas ou não pagamento da dívida pública) no sistema de saúde, etc. Ficariam de fora palavras de ordem voltadas para a direção política do Estado, do tipo “Fora Bolsonaro” ou “assembleia constituinte”, seja pelo entendimento de que os trabalhadores não têm força para impor a sua realização no momento, seja por entender que palavras de ordem desse tipo reproduzem clivagens eleitorais e podem dividir ao invés de unificar o conjunto dos trabalhadores.
Os “politicistas” entendem que tem que haver uma articulação entre palavras de ordem do tipo econômico e palavras de ordem políticas, para expor aos trabalhadores a relação entre os interesses de classe e suas respectivas representações políticas. Por isso, é preciso dizer “Fora Bozo”, mas ao mesmo tempo, também, de alguma forma, demonstrar que não há apoio ao vice Mourão ou a algum dos agrupamentos políticos burgueses em disputa. Isso corresponderia à necessidade de fazer com que os trabalhadores desenvolvam uma ação política independente, diferenciada dos dois grandes blocos políticos que lutam para se agarrar ao poder e remover o outro.
Hoje esses blocos são o bolsonarismo de um lado e um de outro um amplo leque de forças de oposição, que inclui: a) ex-aliados oportunistas do governo de plantão (Doria, Witzel, Mandetta, e agora até Moro); b) dirigentes dos demais poderes do Estado (Maia pelo Congresso, ministros do STF); c) os partidos do chamado Centrão; d) órgãos de imprensa que representam os interesses do grande capital (Globo, Folha); e) e como apêndice mais vacilante nessa frente, os chamados partidos de “esquerda” (PT, seus satélites e movimentos sociais sob seu controle). O papel dos trabalhadores que querem ir à luta seria então o de apresentar uma oposição ao governo Bolsonaro, mas de forma independente das demais forças políticas, sem se colocar como apêndice do apêndice, que são os partidos de “esquerda”, denunciando a conivência de todas essas forças com os ataques e a pauta econômica do bolsonarismo e seu desinteresse em revogá-los.
Como dissemos antes, é possível reconhecer a utilidade de algumas das formulações das duas posições para a luta e a validade parcial de alguns de seus argumentos: a) é preciso partir das condições de vida imediatas da classe para pensar nas tarefas capazes de mobilizar o maior número de pessoas para a luta; b) a classe trabalhadora não tem no momento um grau de organização e mobilização suficiente para derrubar o governo; e c) é preciso denunciar os interesses de classe dos dois blocos que disputam o controle do Estado, tanto o bolsonarismo como a ampla frente de oposição.
O desacordo que apresentamos em relação a essas duas posições tem um caráter mais transversal, estando direcionado a uma unidade metodológica comum às duas. Nos parece que ambas posições parecem partir de uma postura de tutela paternalista em relação aos trabalhadores, ao não explicitar os pressupostos nos quais se baseiam suas formulações, na suposição de que os trabalhadores não os entendem ou não precisam entendê-los. Como são os portadores da “ciência revolucionária”, não precisam apresentar ao debate suas premissas e o desenvolvimento do raciocínio, apenas as conclusões prontas para que os trabalhadores as adotem. Precisa ser assim, segundo reza a sua “ciência”, porque os trabalhadores são incapazes de desenvolver por si mesmos o conhecimento necessário para luta e ele deve ser trazido “de fora” da própria luta.
Sendo assim, é como se houvesse um roteiro pré-estabelecido de como se desenvolve a consciência e a organização da classe para a ação: primeiro os trabalhadores vão lutar por pautas econômicas relacionadas à sua sobrevivência imediata; depois vão perceber que o governo do partido A é um obstáculo para o atingimento dessas reivindicações; depois vão perceber que os representantes dos partidos B, C, D, etc. e o conjunto das instituições do Estado e do poder burguês (judiciário, imprensa, igrejas) também são seus adversários e assim, finalmente, vão desenvolver uma posição política independente.
Desse modo, segundo essa postura comum tanto a “economicistas” como a “politicistas”, as palavras de ordem deveriam então ser calibradas de acordo com o estágio desse roteiro no qual se pressupõe que os trabalhadores estão: se se entende que eles estão na “primeira fase” do roteiro, as palavras de ordem têm que ser limitadas à questão da sobrevivência para mobilizar o maior número (é a avaliação em que se fundamentam os “economicistas”); se se entende que já existe suficiente grau de maturação da revolta popular, ou que é necessário martelar insistentemente a necessidade da independência política num cenário de confusão e desorientação geral para forjar um núcleo programático de referência, é possível desenvolver palavras de ordem que coloquem os trabalhadores em oposição a todas as forças do sistema político, expondo os interesses de classe do governo de plantão e de sua oposição (avaliação em que se baseiam os “politicistas”).
Faça você mesmo
O desacordo que apresentamos é que nos dois casos a condição de avaliar em qual “estágio” do “roteiro” os trabalhadores estão é reservada somente aos próprios militantes, que são os formuladores das palavras de ordem, e não é partilhada com os próprios trabalhadores. Os militantes se colocam assim num patamar diferenciado, como os verdadeiros sujeitos do processo, porque detém as condições para tomar as decisões, e remetem os trabalhadores a uma posição mais passiva, na qual cabe apenas acatar formulações que dizem o que é melhor fazer em cada momento.
Mas como poderia ser diferente? Afinal os militantes, que estão mais acostumados a travar esse tipo de debate, não estão de fato num patamar diferente em relação aos demais trabalhadores? Não possuem um conhecimento mais aprofundado sobre a sociedade capitalista, a lógica do capital, os meandros da dialética entre essência e aparência, etc.? Os militantes não estão em melhores condições de formular posições sobre isso, pelo simples fato de entender a amplitude das tarefas a serem desenvolvidas? Sim, é verdade que os militantes estão numa posição diferenciada, mas isso não pode ser pretexto para que reproduzam uma divisão entre dirigentes e dirigidos, entre trabalho intelectual e trabalho braçal.
Manter essa separação significa manter o fundamento da divisão da sociedade em classes. Romper com esse fundamento tem que ser uma preocupação constante a cada passo da luta. A alternativa que estamos propondo a isso que chamamos de tutela paternalista sobre os trabalhadores é negar que haja um roteiro pré-estabelecido para o desenvolvimento da consciência e negar que esse rol de tarefas (que vai das lutas econômicas à luta contra todos os poderes do Estado) esteja estruturado tal qual um gradiente, em que algumas sejam consideradas mais elevadas que as outras. Não há palavras de ordem “mínimas” e nem “máximas”, e sendo assim, não há também uma ponte transicional entre elas. O que há é uma compreensão de que o fundamental é fazer com que os trabalhadores se coloquem como sujeitos da luta, qualquer que seja o “estágio” ou o conteúdo das tarefas, sejam elas “econômicas” ou “políticas”.
Na nossa concepção, o avanço revolucionário e emancipatório estaria não na radicalidade das palavras de ordem, mas na radicalidade de se colocar os trabalhadores no controle do próprio processo de luta. A alienação econômica (o capital) e política (o Estado) se sustentam justamente na separação entre essas duas esferas. A superação da alienação só pode se dar com o fim dessa separação. Quando a política revolucionária é entendida como política direcionada à luta pelo controle do Estado (esse entendimento é comum tanto à posição “economicista” quanto à “politicista”, sendo a diferença entre elas apenas a avaliação do grau de maturação mais avançado ou não para essa luta), ela está reproduzindo essa separação e deixando intacta a alienação. Se os trabalhadores não estão em uma posição em que a gestão de todos os aspectos da sua vida, desde a reprodução material até as relações com outras comunidades humanas, com o meio ambiente, etc., pode ser feita por eles mesmos coletivamente, então algum tipo de estrutura alienada de controle está colocada acima deles.
O antídoto contra o surgimento de qualquer forma de controle alienado, seja da reprodução econômica, seja da decisão política, tem que ser pensado a cada passo da luta. O tipo de organismo de luta e de consciência a ser construído tem que refletir a cada passo a necessidade de acabar com todas essas especializações e socializar ao máximo as decisões. O que estamos rejeitando aqui é a herança da tradição bolchevique, com qualquer feição com a qual se apresente (seja ela leninista, maoísta, trotskista, guevarista-guerrilheirista, etc.). A posição que estamos apresentando é uma tentativa de síntese particular nossa das contribuições de diversas tradições heterodoxas (anarquistas, conselhistas, autonomistas, situacionistas/insurrecionalistas, marxismo ocidental, crítica do valor, etc., mesmo sabendo das contradições entre elas e que não seria reconhecido como representante “puro” de nenhuma delas), tentativa ainda repleta de lacunas e imprecisões, mas que pode ser resumida na frase lapidar de um representante de uma dessas várias tradições: “a auto-gestão da sociedade começa na auto-gestão das lutas” (João Bernardo).
Como isso seria aplicado então à formulação das tarefas para a luta? O primeiro passo seria entender o papel dos militantes não como o de sujeitos que detém o conhecimento necessário sobre qual é o “estágio” da luta em que estamos, mas como sendo de indivíduos que têm condições de fazer circular toda a informação necessária para que as decisões sobre a luta sejam tomadas. Não é apresentar uma análise da realidade como produto de um certo tipo de ciência que só nós possuímos, mas adotar a postura de quem traz ideias para o debate que podem ser entendidas por qualquer trabalhador e que podem ser contestadas/retificadas no todo ou em parte no curso do debate.
Se achamos que o governo atual é um obstáculo para as medidas necessárias ao enfrentamento da pandemia, e que quanto mais tempo ele permanecer no poder mais vidas se perderão, devemos dizer exatamente isso. Se achamos que todos aqueles elementos que estão se colocando como oposição ao governo vão descarregar o peso da crise econômica sobre os trabalhadores, intensificando a exploração, e não vão revogar nenhuma das medidas do Bozo, devemos dizer exatamente isso. Se achamos que as medidas necessárias nesse momento são a defesa dos salários, dos direitos, da renda dos desempregados, etc., devemos dizer exatamente isso. Se achamos que as burocracias sindicais e os partidos não estão organizando a luta por todas essas questões, mas que os trabalhadores devem se organizar eles mesmos como puderem, por local de trabalho, por bairro, etc., devemos dizer exatamente isso.
Devemos dizer tudo isso não como um roteiro preestabelecido de tarefas que nós dizemos que necessariamente deve ser seguido com base numa ciência que só nós militantes possuímos (quase sempre é isso que está nas estrelinhas); mas como um conjunto de questões com as quais os trabalhadores estão defrontados e para as quais somente a sua ação coletiva e organizada poderá encontrar solução. As conclusões sobre o que fazer a partir dessa informação, sobre como devem ser hierarquizados os passos da luta, as tarefas, devem ser deixadas para que o próprio movimento concreto da classe as concretize. E seguir no debate e na ação, acompanhando o movimento da realidade e ao mesmo tempo sendo parte dele. Se achamos realmente que a classe trabalhadora é o sujeito da sua emancipação, devemos dizer exatamente isso, pois a nosso ver a frase de João Bernardo citada acima é somente uma forma diferente e mais contemporânea de dizer a mesma coisa que “a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores” (Marx).
Por Granamir.
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