Há duas semanas estourou uma revolta nos EUA em resposta à morte de George Floyd, um homem negro que foi assassinado por um policial que ajoelhou em seu pescoço durante 8 minutos.
Ao redor do mundo, ecos dessa revolta se manifestaram adicionando o seu tom local. Milhares de pessoas foram para as ruas de Toronto protestar contra o racismo no Canadá e no mundo. Particularmente em resposta à morte de Regis Korchinski-Paquet, uma mulher negra de Toronto que morreu ao “cair” da varanda de sua casa – onde estava sozinha com a polícia.
No dia 04 de Junho, em Guadalajara, no México, explodiu uma forte revolta por conta do assassinato de Giovanni López, que foi detido e assassinado por policiais na prisão. A população em revolta atacou o Palácio do Governo e vídeos de viaturas policiais mexicanas queimadas viralizaram nas redes sociais.
Em Israel, palestinos e israelenses protestam as mortes de George Floyd e de Iyad Hallak, homem autista palestino que foi perseguido e morto a tiros pela polícia israelense.
Nos protestos dos EUA vemos a participação de ativistas para além da comunidade negra nos enfrentamentos de rua e manifestações em cenas fortes como em Louisville, onde pessoas brancas fizeram um escudo diante do cordão policial para proteger os negros protestando.
Ao redor do mundo, a questão negra virou uma questão que transcende origem e cor de pele: é sobre a violência de Estado que se abate sobre os de baixo. É a descoberta de que, enquanto formos coniventes com essa violência, todos perdemos.

Em São Paulo, onde não vemos esboço de uma revolta massiva como nos EUA, um negro é assassinado por dia pela PM e não faltam casos absurdos de violência policial. Para citar a nota da Rede contra o Genocídio, alguns casos recentes são:
No 20/05 foi assassinado pela polícia o Rodrigo Cerqueira, 19 anos, enquanto trabalhava como vendedor ambulante.
No dia 21/05 foi assassinado o jovem Gabriel Silva Dantas, 15 anos.
No 22/05 foi assassinado o jovem Juan Oliveira Ferreira, 16 anos, na sua própria casa por um policial.
Em 17/03 Felipe Santos Miranda, 18 anos, que é negro, e Brayam Ferreira dos Santos, 16, foram mortos a tiros.
No dia seguinte, 18/03, Igor Bernardo dos Santos, 17, foi também morto a tiros na mesma região.
Cauã Alves de Almeida, 16 anos, que levou um tiro no rosto, chegou a ser hospitalizado, mas morreu.
Um grupo de policiais militares de São Paulo deixou dois jovens, Ni e Ruan, baleados sem atendimento médico na rua em Osasco. Os dois morreram. Pessoas que presenciaram a ação policial revoltadas com a falta de socorro, começaram a protestar reivindicando que os meninos fossem socorridos, a polícia reprimiu a multidão com muita violência e bombas de gás.
E David Nascimento dos Santos, 23 anos, assassinado na noite de sexta-feira (24/4), depois de ser abordado por PMs e colocado numa viatura do 5° Baep (Batalhão de Operações Especiais), moradores da Favela do Areião, no Jaguaré, zona oeste da cidade de São Paulo, sentem medo.
Há também os casos de Igor, menino de 16 anos morto pela polícia com o tiro na cabeça. O de Kawan, da Vila Alba, adolescente de 16 anos que às nove da manhã foi assassinado com o tiro na cabeça. Igor, Felipe e Kawan assassinados na Cidade Tiradentes. David que foi raptado por policiais e assassinado, quando estava esperando uma entrega em frente de sua casa, no Areião, Jaguaré. E o Adriano Mariano de 17 anos assassinado na Cidade Tiradentes.

Nos perguntamos, perplexos, por quê, apesar de novas histórias aterrorizantes dia após dia, não acontecem explosões de revolta como nos EUA. Estariam os negros lutando o suficiente? Teriam eles medo da repressão? Seriam suas condições materiais extremamente desfavoráveis que impedem a luta? Assim novamente colocamos a responsabilidade nos oprimidos pela própria opressão, enquanto assistimos sem nos mover.
Apesar da intensa repressão que sucede um assassinato da polícia na periferia, protestos, ônibus queimados e barricadas de fogo são gritos frequentes das comunidades. No entanto, ao invés de verem nessas revoltas periódicas um chamado para a construção da luta, elas são ignoradas sumariamente. O envolvimento tanto de indivíduos como de organizações externas às comunidades afetadas é muito raro.
Criamos discussões infinitas sobre o que é ou não “identitarismo” e “luta de classes” que, no final, parecem servir apenas ao propósito de nos distrair do problema real: no Brasil, nós, não-negros, não nos envolvemos nas lutas negras. Nós assistimos dia após dia noticiários ensanguentados sem nem pestanejar. Às vezes soltamos uma lágrima, quando quem é assassinada é uma menina de 8 anos de idade ou uma vereadora, mas logo voltamos a nossa rotina e esquecemos disso.
A verdade é que somos muito racistas.
Fomos feitos racistas, fomos acostumados muito cedo com a presença daquela mulher negra que limpa nossa sujeira, com jovens negros sendo sumariamente executados, com as prisões superlotadas, moradores de rua, crianças morrendo de fome, mulheres sendo violentadas diariamente no mundo todo. Aprendemos a não sentir e não pensar muito sobre o assunto, aprendemos que discutir isso vai gerar conflito e conflito é ruim e deve ser evitado. Não enxergamos que o conflito está aí há 500 anos e não vai passar enquanto nós não fizermos algo.
A violência do Estado historicamente teve a política racial como uma de suas principais raízes: o mesmo braço armado que mata diariamente jovens nas periferias é o que nos matará se isso for necessário para manter sua existência. No fundo, sabemos disso, por isso buscamos desesperadamente analisar se estamos vivendo uma transição fascista ou não. Nós já temos nosso próprio holocausto, por que importa o nome? Porque, se for fascismo, brancos também serão torturados e assassinados, se for democracia, são só os negros, periféricos e indígenas, está tudo certo.
Enquanto nos EUA as pessoas protestam pelo fim dessa “democracia”, em São Paulo, fazemos protestos pedindo ela! Ela mesma! A democracia que aumentou o encarceramento em massa de 90 mil para 800 mil presos, a democracia que nos reprime com bombas, balas de borracha e tanques de guerra, a democracia que escorre sangue negro e indígena diariamente enquanto cidades inteiras desaparecem em desastres ambientais. E para garantir que o protesto peça apenas essa democracia e nada melhor do que ela, porque não policiar manifestantes (como se alguém precisasse de mais polícia) e agredir antifas e black blocs?
E então nos surpreendemos! O povo deve ser muito burro mesmo para não perceber que “democracia” é tudo o que precisamos agora, não é mesmo? Nosso racismo arruína nossa leitura da realidade, nossas tentativas de ação são frustradas pela nossa cegueira. Estamos batendo de cara com o mesmo muro há anos, quando vamos finalmente enxergá-lo?
Um exemplo de participação de não-negros nessa luta é a Rede de Proteção e Resistência contra o genocídio. O coletivo também é composto de ativistas brancos e pessoas que moram fora das quebradas, que potencializam muito as lutas, mas fortalecendo para que as comunidades sejam protagonistas. Nas palavras de uma militante, “nós somos os escudos”.
Nossa participação nas lutas muda a correlação de forças entre o Estado e a comunidade, seja criando laços de solidariedade, fazendo material de divulgação, participando e cobrindo atos, ajudando na organização, materialmente ou legalmente.
Nós, não-negros, precisamos urgentemente debater e atuar sobre a violência racial no Brasil. Chega de silêncio do nosso lado enquanto os negros gritam tanto e tão alto. Não agimos bem até agora, mas vamos aproveitar esse momento para mudar, porque enquanto nós acharmos que o problema do Brasil está nos negros, estaremos ignorando o maior empecilho para a união de classe: nós mesmos.

Por Heloisa Yoshioka – Militante anti-racista, feminista e anti-capitalista no Quilombo Invisível e na Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio.
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