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20 jun 2020

Diário da Pandemia

Acho que as crianças estão vendo muito TV, agora que as escolas estão fechadas. Não consigo entreter eles com outras coisas. 

Não posso sair de casa para trabalhar sem máscara, preciso comprar álcool em gel para as crianças e produtos de limpeza. Aqui em casa somos em três: eu e meus dois filhos. Não sei como vamos sobreviver em meio a essa pandemia. Na TV vejo a notícia: 47 mortos no Brasil. 

O presidente pronuncia-se: 

“No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado com o vírus, não precisaria me preocupar. Nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho” 

“O vírus chegou, está sendo enfrentado por nós e brevemente passará. Nossa vida tem que continuar. Os empregos devem ser mantidos. O sustento das famílias deve ser preservado. Devemos, sim, voltar à normalidade.” 

Dia 30 de março, amanhã preciso pagar o aluguel, ainda não tenho todo o dinheiro. Estou preocupada com a saúde das crianças, o menino acordou fraco e com dor de garganta. Preciso me acalmar um pouco, tento me distrair com a televisão. Escuto a notícia: 167 mortos no Brasil. Mas logo desligo. 

– O que não estava no jornal? 

David Nascimento vendedor ambulante de 23 anos. Cantor, sonhava em tomar os palcos com sua voz, foi morto depois de uma abordagem policial. Parece que para David a normalidade não funcionou, e nem seu emprego foi mantido, já que o mesmo era ambulante. 

Dia 01 de abril, antes de ir ao banco receber meu auxílio passo na casa de minha mãe e do desocupado do meu pai. Fui levar limão, gengibre e um pouquinho de mel pra ela fazer aquele chá de sempre. Acho que ela se resfriou por causa da virada do tempo. Quando chego, me pega de surpresa o maldito jornal que tanto fujo: 244 mortos no Brasil. 

E o que diz o presidente sobre o Brasil ter passado o número de mortos da China: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre.” 

Fui na fila do banco receber o dinheiro em papel. 600 reais. A fila do banco tava enorme, era tanta gente precisando desse dinheiro. Voltei pra casa depois de muito tempo. No caminho peguei caixotes de feira. Comprei banana, maçã, laranja, mandioca, batata, repolho, alface, tomate e gengibre. Liguei a televisão e coloquei a comida para as crianças no prato. Comecei a preparar uma horta com as crianças no quintal. Para ver se eles se interessam com a terra e permanecem em casa. 

Enquanto eles mexiam na terra eu fui limpar a casa. Depois voltei para trabalhar na rua, fui vender máscara de algodão – agora com toda essa coisa de pandemia não posso mais montar minha barraquinha de acarajé. O pobre tem que fazer de tudo pra sobreviver até mesmo durante a pandemia. 

Trabalhei apreensiva e agitada. Nas favelas as crianças e os jovens estão todos na rua. Estão jogando bola no terreno da escola. Empinando pipa em cada morro… Parece que nada está acontecendo. Trabalhei depressa para voltar pra casa e cuidar do meus filhos. 

Dia 20 de abril, aproveitei o sol para estender a roupa, depois fui na vendinha da esquina comprar um pouco de fermento para fazer um bolo pra Maria. A bichinha faz aniversário hoje e não pode comemorar com as crianças da rua. Chegando lá, seu Luiz da venda me diz: Oi dona Lourdes, como a senhora tá hoje? Cê viu na TV? mais de 2.575 mortos no Brasil e 113 em 24 horas. Tamo perdido com esse governo. 

Nesse mesmo dia, em Monte Alegre: 

Corpo de jovem de 21 anos encontrado baleado e não se sabe o que aconteceu. E não há interesse em saber, até porque é só mais um corpo, que agora já não produz mais. 

Dia 25 de abril, a Dona Dalva e suas irmãs começaram a gritar pra todo mundo ouvir: O pastor Soares trouxe a cura para o vírus! Aos domingos vai nos atender na sua Igreja. No vídeo que ela me mostrou no celular, o pastor está fazendo uma oração ao copo de água, enquanto isso pede dinheiro aos fiéis. Eu já vi esse pastor na televisão, pensa que o povo é besta. Por que todo esses ricos gostam de ganhar dinheiro em cima do povo? Acho que é assim que eles fazem riqueza. 

Dia 26 de abril, …O maior desafio do pobre da atualidade é não passar fome. 

Dia 30 de abril, hoje o bairro acordou triste, seu Ramón, um dos fundadores aqui do Limão morreu. Não sabe se foi de coronavírus, mas o pobre homem estava sofrendo de pneumonia e hoje, aos 88 anos, faleceu. Sua família mal pode se despedir, só deixaram três pessoas entrar no cemitério, não teve nem velório. Quando essas coisas acontecem assim, tão perto da gente, sentimos mais. Deus me livre eu morro, o que ia ser dos meus filhos? Hoje em dia a vida do pobre tá valendo menos que os testes de coronavírus, você morre e nem sabe do quê. E a triste notícia da TV 5.901 mortos no Brasil e 435 em 24 horas, será que seu Ramón está entre esses números? 

Enquanto isso em Osasco: 

2 jovens foram assassinados pela polícia na Ocupação Esperança. Um deles suplicou pela vida enquanto recebia os impactos de bala em seu corpo, e toda a comunidade foi aterrorizada para ficar em silêncio. Essa é a normalidade? 

Dia 01 de maio, …Liguei a televisão e estava no programa da Ana Hickmann. Ela nos desejou “um ótimo dia” e disse “parabéns a nós trabalhadoras”. Pergunto o que ela quis dizer com o “nós”. 

Dia 19 de maio, ontem mais de 734 pessoas morreram. Pessoas que eram crianças, jovens e também adultos. Pessoas que tinham uma história. Pessoas que sequer puderam ser veladas pelos familiares. Fora toda essa tristeza, a fila dos hospitais tá lotada, tem um monte de gente morrendo sem ter a devida atenção. 

Hoje estava trabalhando na rua quando vi uma fila daquelas, pegava três quarteirão. Perguntei pra uma senhora que tava descendo naquele ponto porque a fila, ela me disse que era pra distribuição de cesta básica. Não pensei duas vezes, como sempre anda faltando coisa em casa eu desci junto! Parecia uma ONG ou coisa assim, chamada Rotary Clube. Tinha até polícia, vai ver eles pensava que pobre é animal ia sair brigando, então colocaram lá quatro jagunço. Por sorte fui a última a receber. Fiquei com pena de todo aquele pessoal atrás de mim, pediram pra eles voltarem na semana que vem. Será que a fome aguenta tudo isso? Já passei dois dias quase sem comer, e é de deixar tonto, pior que a cachaça. 

Hoje no final do dia: 17.971 mortos no Brasil e 1.179 em 24 horas. Quantas pessoas mais será que tem que morrer na mão dessa doença? Queria vê se eles contassem o tanto de gente que morre todo dia de fome. 

E assim enxerga o presidente: 

“o Estado não tem como zelar por todo mundo, não” 

“É a nossa vida. Daqui a pouco é natural, né, a minha mãe de 93 anos vai embora. É a vida. É a vida, porra. Não façam teatro em cima disso.” 

Até parece um jogo, entre as palavras e nossas vidas, que morrer é natural, só que não falamos de morrer aos 93 anos, mas sim aos 14 como João Pedro. Se morre tão jovem na favela, de fome, de frio, de doença, de tiro! No peito, na cabeça, dito sem querer, mas sempre fatal. Essa, já sei, é a normalidade, que pros de cima parece tão natural, mas pros de baixo é mortal. 

Por uma sobrevivente da periferia norte de São Paulo

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