Por um momento eu acreditei que o meu processo de politização poderia me eximir de sofrer de forma tão profunda com as relações capitalistas. Mas logo entendi que ter consciência do que me faz sentir tão cansada na minha rotina, migração entre periferia e centro, não me faz deixar de sentir.
Eu entrei no mercado de trabalho nova, com 18 anos. Motivada por uma oportunidade de emancipação feminina, me propus a encarar o que seria uma rotina de exploração contemporânea. e que eu pensei por um momento que poderia me poupar um pouco, já que estava agarrada no meu processo de politização. Mas que na real se tornou um processo acelerado e conturbado de abuso psicológico e de percepção das nuances de exploração que o mercado de desenvolvimento e publicidade carregam.
Me inseri em uma das dezenas de Startups da Avenida Paulista, empolgada com as novas oportunidades. Mas logo eu me via trabalhando completamente insatisfeita com diversas questões e questionando a minha sanidade enquanto ficava tão incomodada com essa rotina que tantos passam. Procurei me agarrar nas novas amizades do trabalho e deixei que as situações passassem, afinal eu deveria me acostumar como “todo mundo”.
Acabou que uma pandemia assolou o mundo e eu me vi trabalhando de casa. Pensei que o desgaste poderia ser menor já que não precisava passar 4 horas do meu dia no transporte público e os meus gastos diminuíram, mas agora, o que me antes era o medo de sempre precisar mostrar proatividade por sentar do lado da minha chefe, se adaptou para o medo de ouvir minha superior gritando comigo em uma ligação no Skype enquanto eu consigo escutar ela batendo na mesa do outro lado da linha.
Então eu sento e converso com aqueles que se importam comigo e entendo… A exploração do trabalho não se afasta das startups “descoladas” da Paulista, não tem máquina de café ou dinâmicas de time que façam com o que seu salário aumente ou que seu acúmulo de funções seja reconsiderado. É complexo tentar descobrir de onde vêm a motivação para essa exploração. Seria a nova dinâmica de chefes tão novos que são motivados apenas pela possibilidade de “ser dono” que adaptam o que é comandar e fazem com que você sinta empatia e necessidade de conhecer o seu explorador já que ele senta do seu lado todos os dias?
Faz bem para o seu contratante simular essa dinâmica familiar que emite uma empatia simulada diária. Se for feito da forma correta todos os egos são massageados, mas se perder a mão dentro dessa realidade simulada, dentro de um escritório que a temperatura ambiente é 10°C, os funcionários percebem bem rápido: tem alguma coisa errada aqui… Essa coisa tem nome e é exploração, na sua mais nova forma. As relações contemporâneas também adaptaram as relações fabris. O que antes eram horas extensas de trabalho, ambientes fisicamente insalubres e de exploração infantil , agora encontrou uma nova forma de se manifestar no setor da tecnologia: através da proposta de um “time de diversidade”, se implementa uma” cultura de diálogo”, todos tem um “horário flexível”, mas “devem provar o seu melhor” e a máquina de café trabalho o tempo todo…
Enquanto isso na sua realidade significa: sempre chegar um pouco mais cedo para conseguir correr para a salinha e fazer o seu café antes do expediente começar para ninguém ficar te olhando feio; sempre chegar com um sorriso no rosto e dando um bom dia! animado para aumentar o nível de simulação do ambiente; sentar do lado ou bem próximo do seu chefe ou gerente porquê o ambiente é “horizontal”; ter que ser o mais rápido possível na hora de escolher uma música para pelo menos abafar o barulho das outras pessoas trabalhando próximo a você…. E começar a sua rotina que pode envolver abrir 30 abas de uma vez para o seu “check up” matinal.
Ao longo do dia você percebe que a sua opinião não é levada em consideração nas reuniões de “Briefing”, percebe que o que era “o que você acha?” simpático na verdade é uma cobrança de “você já deveria saber” e começa a parar de perguntar e “mostrar mais” para assim poder se encaixar nesse ambiente de novo em que todos parecem estar se dando tão bem… De vez em quando você até levanta para ir ao banheiro e pode conversar com a recepcionista na volta, de vez em quando o seu colega da outra sala pode levantar e ir para o seu lado pedir a sua ajuda, em que outro ambiente isso aconteceria?
Ao longo dos dias você fica mais próxima da recepcionista e ela descobre que você não ganha vale transporte e fica em choque. A resposta mais automática é que você “está ganhando experiência” e “logo mais vai melhorar”, e sua chefe que você já sabe até um pouco da vida pessoal também comentou sobre isso outro dia, que valoriza o seu trabalho… Então porquê não esperar um pouco mais? Talvez se você tiver a iniciativa de sempre puxar a reunião semanal a sua reconsideração salarial será espontânea. Esse é o problema dessa cultura, a meritocracia simulada desse ambiente te faz pensar o tempo todo “e se eu fizer mais um pouco?” E se eu ler mais um artigo no Médium sobre resiliência? Se eu aguentar mais um pouco, definitivamente no final do ano eu vou ser efetivada! Mas o que acontece é que você aceita ficar mais um pouco para “ajudar” e depois aceita trabalhar de graça no final de semana para acrescentar no seu portfólio… Todos os dias os estagiários se organizam para fazer todo o trabalho de uma agência de publicidade em uma semana e literalmente virar algumas noites para terminar “alguns detalhes”… Pronto! você se acostumou com esse ambiente e também começa a levar em consideração que esse é o mercado. “Indústria 4.0”, eles dizem, e você pode assinar mais um curso da Allura para abraçar mais uma frente que não recebeu orientação nenhuma, proatividade é seu sobrenome e tem cinco xícaras de café vazias na sua mesa.
Sendo bem clara: o mercado brasileiro também não soube evoluir de forma saudável com as tecnologias e isso é totalmente previsível. Nunca tivemos boas relações de trabalho, nós já somos terceirizados em todas as relações, a reforma trabalhista já é a rotina de muitos antes mesmo de ser proposta. Nascem 10 startups por dia, as grandes mídias fazem questão de plantar um “chove vagas” no mercado de tecnologia e, sendo sincera, realmente existem vagas. 90% delas com regimes como esses que eu acabei de detalhar. A exploração vêm na nota de rodapé logo após “frutas toda quinta-feira”.
Katie Way é certeira: “ Funcionários não precisam respirar fundo e fazer ioga de cubículo – precisamos de salários decentes, ser pago em dia, benefícios, licença maternidade e uma boa separação de trabalho e vida.”
Em uma pesquisa realizada pela Forbes, 76% dos funcionários declararam que as suas relações de trabalho estressantes impactam nos seus relacionamentos pessoais. Eu mesma já fui chorando diversas vezes para o meu namorado implorando por apoio e constantes perguntas de “será que eu estou louca?”. Nessa mesma pesquisa, 66% declararam que dormem menos por conta do stress do trabalho, o que é uma fantástica combinação para uma saúde frágil. Se ver obrigado a consumir vitaminas, anti alergicos e analgésicos, no final do dia também deveria estar na descrição da vaga : auxílio para remédios, já que vamos te deixar louco.
Byung Chul-Han já deixa bem claro pra nós que estamos na sociedade do cansaço. Nós não temos mais referências de estruturas de planejamento de vida tradicionais, a nossa vida é uma eterna adaptação do que não queremos ser. O tempo corre de forma alucinada enquanto ainda tentamos descobrir qual é a nossa identidade dentro dessa simulação. Por muitas vezes o nosso ambiente de trabalho é a única coisa de fato certeira na nossa vida, as coisas ali apesar de exaustivas são claras: todos os dias você chega, dá o seu melhor e vai embora. Além disso tem uma sociedade nova e totalmente assustadora que te faz sentir desamparada, é óbvio que a gente se apega nessas relações de abuso, pelo menos é alguma forma de amparo nessa vida totalmente confusa.
E esse é o ponto: acreditar que o trabalho é a sua melhor opção no meio desse caos é mais uma adaptação capitalista para ampliar a exploração. Os dias continuam passando e você chega em casa infeliz, pensando se o seu salário pode bancar um convênio médico para aguentar mais um pouco, se o seu dinheiro pode ser investido para o escritório… Eu mesma já pensei inúmeras vezes em comprar uma cadeira melhor (que você passa o dia todo sentada) para diminuir as minhas dores nas costas, já pensei em contribuir com o dinheiro do café… Mas, no final, essas atitudes são uma eterna tentativa de tentar fazer com que o ambiente de exploração seja mais confortável. Você enquanto funcionária feliz traz mais lucro para a empresa, e isso é pensado! Essa estrutura de simulação psicológica faz com que o chegar em casa ganhe um peso, faz com que as perguntas de “como foi o seu dia?” sejam estressantes – até quando isso faz sentido? Assim sai mais uma matéria na EXAME exibindo as “unicórnios” (Startups que começam a valer pelo menos um US$ 1 bilhão no mercado) do ano enquanto você continua ganhando um salário de estagiário que cumpre funções de três pessoas. A sua felicidade dentro do ambiente de trabalho é porque realmente existe uma cultura de escuta ativa ou é uma pressão para postarem uma foto da empresa mais feliz no Instagram?
Por uma trabalhadora de uma Startup na Av. Paulista.
Referências e indicações:
Níveis de stress no trabalho têm crescido :
Mindfulness também pode ser exploração: https://www.vice.com/pt_br/article/43k7bm/atencao-plena-nao-e-a-resposta-pro-seu-ambiente-de-trabalho-infernal
Como o call center não escapa da automatização dos sentimentos dos funcionários: https://www.vice.com/pt_br/article/ne7emg/como-manter-funcionarios-felizes-em-empregos-de-merda
como o mercado de publicidade adoece todo mundo : https://medium.com/@lecovilela/o-doente-que-ningu%C3%A9m-quer-ver-c305f82aa5c3
vídeo do Caio Braz sobre fritação trabalhista:https://www.youtube.com/watch?v=oZKqh92HRng&t=214s
O facebook obriga seus funcionários a ficar 100% logados: https://www.vice.com/pt_br/article/z3beea/facebook-obriga-seus-moderadores-a-logar-cada-minuto-de-seus-dias-trabalho-ate-idas-ao-banheiro
ir pro centro todos os dias é um processo capitalista: https://www.efdeportes.com/efd177/desenvolvimento-capitalista-a-relacao-centro-periferia.htm
O que são unicórnios? https://acestartups.com.br/quais-sao-os-unicornios-brasileiros/
As fotos que ilustram esse artigo são do anime Aggretsuko .
2 Comentários
Muito legal esse depoimento. É a pura verdade.
Precisamos de uma nova Lei Áurea.