Sempre que acontece mais um caso lamentável de assassinato de um negro nos Estados Unidos pela polícia racista e a população preta sai nas ruas para protestar e literalmente bota fogo na cidade contra o racismo, críticas ao movimento negro brasileiro aparecem como se fôssemos supostamente pacíficos demais e não houvesse luta radical contra o racismo aqui. Vamos olhar para a história do movimento negro para desmentir mais esse mito.
As populações racializadas dessa terra tem travado uma luta pela sua libertação e humanização muito bravamente, literalmente dando sua vida por isso desde que seus territórios foram invadidos e suas populações foram escravizadas no processo que veio a construir isso que hoje chamamos de Brasil.
Resistência contra a escravidão e os Quilombos:
A resistência dos povos originários contra a escravidão foi a primeira forma de resistência a violência escravocrata e racializadora, depois se somou os africanos escravizados que foram trazidos para ca. Desde o primeiro momento de escravidão estes também resistiram à violência dos escravocratas, o medo dos escravocratas de uma nova revolução de escravos como a haitiana e da expansão dos territórios autônomos quilombolas são sentimentos centrais para entender o processo de luta de classes que levou a abolição da escravatura.
É importante notar que o racismo brasileiro, desde os seus primórdios, se volta contra os africanos e também contra os indígenas (chamados na época de “pretos da terra”). A colonização portuguesa também desenvolveu métodos diferentes de segregação do que nos EUA, desenvolvendo-se no Brasil uma ideologia de assimilação subordinada e “embranquecimento” do Africano ou indígena. Para isso se realiza um processo de criminalização das culturas afro-indígenas, forçando-os a se integrarem na cultura católica portuguesa, com a miscigenação forçada, assim como a produção das ideologias da democracia racial e a mentira da harmonia entre as raças na formação do Brasil, tendo a miscigenação sido usada como política eugenista de Estado para tentar forçar o apagamento étnico no Brasil e de fato, embranquecer a população.
A luta contra a escravidão assumiu muitas formas, como fugas individuais ou coletivas, envenenamento ou assassinato de escravocratas, revoltas, conspirações e a construção dos Quilombos.
O Quilombo foi um território onde se ousava tentar criar uma outra sociedade, onde os laços comunitários de autonomia e solidariedade eram exercidos. Os Quilombos foram experiências ousadas de auto defesa, tendo por vezes capacidade armada de resistir a ataques externos ou mesmo estratégias de fuga nos casos em que a resistência era impossível.
O maior e mais famoso quilombo ficou conhecido como Quilombo dos Palmares – ou Angola Janga, “pequena angola”, como era chamado pelos negros. Ele existiu entre 1590 e 1694 – 100 anos de existência – e chegou a mais de 30 mil habitantes. Ele foi a principal experiência de auto-governo em oposição ao regime colonial em toda a história do Brasil. Estima-se que existam hoje quase 5000 comunidades remanescentes de quilombos no território nacional, que ainda lutam pela posse de suas terras e por mínimas condições de vida. As populações de origem afro-indigena seguem tendo hoje na luta territorial uma das suas principais arenas, tendo ainda hoje grandes experiências de auto-organização mesmo que a margem das principais organizações políticas.
O movimento abolicionista também apresenta um papel importante, por ajudar nas fugas de grupos de pessoas em situação de escravidão e registrar por escrito a resistência ao sistema escravocrata. Nesse sentido, Luis Gama aparece como um nome fundamental na luta pelo Abolicionismo. Assim como são fundamentais as revoltas, como as revolta dos Males, revolta do Cosme, Revolta da Chibata, etc.
O movimento negro na segunda metade do Século XX:
A segunda metade do século XX foi um período muito importante para o avanço do debate racial no Brasil. É desse período o trabalho de uma geração heróica de coletivos negros, artistas e intelectuais que em plena ditadura empresarial-militar desmascararam o mito da democracia racial, conseguindo derrubar os discursos oficiais do governo de que não existia racismo no Brasil, assim como trazendo luz aos mecanismos de Apartheid vigentes no mercado de trabalho, na educação, na saúde, na moradia, na cultura, etc. Também aí foram feitas pela primeira vez expressivas articulações internacionais do movimento negro para fortalecer a luta e denunciar o racismo no Brasil. Desse período se destacam os nomes de figuras como Lélia Gonzales, Clóvis Moura, Abdias do Nascimento, Solano Trindade e Florestan Fernandes.
Eles enfrentaram as falsas visões da história vigentes tanto na direita como na esquerda brasileira, que não conseguiam pensar adequadamente o papel do negro na formação nacional. Legaram a nós uma série de conquistas em termos de formulação e debate, de forma a tornar possível o reconhecimento social dos mecanismo de racialização na sociedade brasileira, criaram a primeira geração de pesquisas sérias sobre o racismo no Brasil e também conseguiram incluir nas pesquisas do Estado (como o censo do IBGE) o critério de raça negra, e depois também parda. Conseguiram impor a discussão sobre racismo e discriminação racial, nas diferentes instituições, como a igreja, os partidos políticos, os sindicatos, as escolas e as universidades.
Assim como formularam e conquistaram as primeiras políticas públicas voltadas ao combate das desigualdades raciais, como a posse das terras quilombolas, a criação de secretarias de promoção de igualdade racial, museus e as cotas raciais. É em 1970 que se começa a organizar no dia 20 de novembro mobilizações contra a discriminação racial, que viriam a ganhar seu atual caráter nacional, e que seguem ocorrendo até hoje marcada essa data como dia da consciência negra, como uma semana do ano em que por todo país se faz tentativas de debate contra o racismo, a data virou um feriado em alguns municípios nos anos 2000.
Uma das principais organizações a marcar esse período foi o Movimento Negro Unificado (que já contamos a história inicial aqui anteriormente) que foi uma das primeiras organizações a fazer análises marxistas sobre o papel do negro no Brasil, assim como uma das primeiras a denunciar e lutar de forma sistemática contra a violência policial racista genocida e o encarceramento em massa. Na época, mostraram que o racismo e o capitalismo são indissociáveis, e que a superação do racismo só será possível com a destruição do Estado e do Capital.
Depois de um primeiro período esses movimentos negros também perderam nos diferentes níveis sua radicalidade inicial, se burocratizando ao ajudar a criar os governos ditos “democráticos e populares” ou o atual ecossistema de ONGs (organizações não governamentais), processos em que foi dissolvido profissionalmente muito do chamado movimento negro.
Esse período também foi muito marcado pela influência internacional, com o ascenso internacional das lutas de classes negras e anticoloniais, que avançaram com as lutas pelos direitos civis nos EUA, as revoluções de libertação nacional no continente africano, assim como a luta contra o Apartheid na África do Sul. Em termos simplistas, podemos dizer que no Brasil se seguiu um roteiro parecido do que foi visto no mundo, um ascenso de força e radicalidade propositiva nas décadas de 60 e 70, seguido pelo refluxo ou destruição pela repressão dos setores radicais, assim como a burocratização dos movimentos e quadros envolvidos ao ascenderam socialmente. Mas que apesar disso, deixaram um imenso legado de avanços e de formas de luta para as populações racializadas, assim como propiciou todo um legado organizativo, uma revigorada autoestima e radicalidade de proposição ao movimento negro.
Algumas mobilizações recentes contra o racismo em São Paulo:
No dia 15/06/2020, na periferia da zona sul de São Paulo foi encontrado o corpo assassinado de Guilherme Silva Guedes, de 15 anos, o laudo do IML demonstra que seu corpo passou por bárbara tortura, com tiros nas duas mãos e na cabeça. Vídeo que circula nas redes sociais mostra o momento de desaparecimento de Guilherme sendo levado por policiais. A família junto com a população da região em revolta saíram em protesto, travando com barricadas de fogo as principais avenidas da região, houve intensa repressão policial, a resistência da comunidade seguiu pela madrugada e se registra uma viatura e seis ônibus queimados.
Sabemos que esse tipo de revolta é muito frequente, o que é raro é a atual atenção midiática e mesmo a solidariedade de outros setores da esquerda que só acontecem hoje por causa do contexto internacional. No Brasil esse tipo de mobilização conta com pouquíssimo apoio da esquerda e mesmo uma maioria dos setores do chamado movimento negro raramente somam em apoio aos familiares na revolta da periferia nesses momentos. Ainda assim esse é sem dúvidas o tipo mais explícito de revolta negra contra a violência racista do Estado.
Outros exemplos de mobilizações recentes é a manifestação (anual) pela abolição do sistema prisional que aconteceu em dois de outubro de 2019 na data e em memória das vítimas do Massacre do Carandiru. Houve também o protesto contra a tortura com chicotadas de um jovem por seguranças do mercado Ricoy que uniu grande parte das organizações do movimento negro em SP. Para o próximo dia 04/07 também esta sendo convocado um Ato Vidas Negras Importam na Cidade Tiradentes, Zona Leste de São Paulo, unificando diversos coletivos da região, que tem a maioria de sua população racializada, a região registra diversos casos recentes e antigos de assassinatos de jovens pela violência policial racista, além do altíssimo índice de mortalidade por covid-19 tendo os leitos do hospital público da região lotado desde o início de abril.
Podemos ver que periodicamente a revolta contra a violência racista explode no Brasil, o que falta portanto ao movimento negro brasileiro não é meramente “radicalidade”, pois a revolta negra no Brasil é historicamente radical tanto nas suas táticas como em suas proposições, sempre batendo de frente com a parte mais violenta do Estado e das classes dominantes. O que falta é organização com independência de classe e apoio. Uma coisa que chama muita atenção aos militantes negros brasileiros é a quantidade de brancos nos protestos por Vidas Negras Importam nos EUA, o que no Brasil é muito raro de se ver, aqui a esquerda não vai até a periferia apoiar a luta contra a violência racista do Estado, normalmente só aparece de forma oportunista para aparecer nas fotos quando ocorre algum evento midiático (veja a reflexão: O que os brancos estão fazendo contra a violência racista?). Cenas como a vista em Louisiana nos Estados Unidos em que pessoas brancas fizeram um cordão para impedir a violência policial racistas no Brasil soam inimagináveis.
Os atuais acontecimento nos EUA nos enchem de questões sobre as potencialidades da luta contra o racismo e o Capital. Que a atual revolta internacional seja uma convocação e uma oportunidade de avançar nossa luta por todos os meios necessários.
Por Marcus Nascimento e Gabriel Silva
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