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01 jul 2020

Estado de Bando – Apontamentos sobre a formação de um Estado miliciano brasileiro em três tempos. I – A forma-Estado

Link para II – O Estado moderno capitalista

Link para III – O Estado Bolsonarista

I – A forma-Estado

O recente vídeo da reunião dos ministros do governo Bolsonaro juntamente como a nota dos militares da reserva que apontam para um risco de guerra civil é um modo de aparição do Estado de Bando. Bando é precisamente uma relação social, mais do que simplesmente um estado de coisas. O que define o bando é a relação pela qual o que está posto fora da lei é incluído nela pela sua própria exclusão, isto é, pela sua constituição como o que é desprovido de direito. É o que Agamben denomina de exclusão inclusiva como característica do Estado de exceção como uma relação entre violência e direito ou violência e Estado que é originária do próprio Estado de Direito. O Estado de direito ou o ordenamento jurídico-político teria essa estrutura de bando que define a Soberania do Estado como uma unidade ou uma interioridade que sempre pressupõe um fora apropriável de direito, isto é, um fora que pode e deve ser incluído de direito enquanto fora. Deleuze e Guattari assinalam como a Soberania só se exerce sobre um fora, como ela “só reina sobre aquilo que é capaz de interiorizar, de apropriar-se localmente”. Entretanto, seguindo a afirmação de Hegel segundo a qual “todo Estado contém em si os momentos essenciais de sua existência”, Deleuze e Guattari acrescentam que a forma-Estado não só pressupõe uma exterioridade, mas pressupõe a si mesma, pressuposição pela qual ela interioriza o seu fora como se já pertencesse desde sempre a sua forma, pertencesse de direito. Um fora que não é aquele da política externa entre Estados, mas aquele de uma exterioridade na qual o direito não vigoraria, como uma terra sem lei, mas que, por isso mesmo, é apropriável por sua remissão ao Estado ou a Lei. Isso porque o Estado ou a interioridade da lei em sua generalidade ou universalidade só pode se aplicar originalmente lá onde ela não se aplica ou não tem vigência efetiva, ou seja, só pode se aplicar pelo Estado de exceção que consiste numa situação em que a lei está ao mesmo tempo fora de si mesma, em que lei e fora da lei se confundem paradoxalmente. Ou, dito de outro modo, a forma da lei só se realiza pela sua exteriorização que consiste, justamente, numa violência com força de lei sobre um fora que se busca capturar e submeter a esta lei.

“A afirmação segundo a qual ‘a regra vive somente da exceção’ deve ser tomada, portanto, ao pé da letra. O direito não possui outra vida além daquela que consegue capturar dentro de si através da exclusão inclusiva da exceptio: ele se nutre dela e, sem ela, é letra morta”.1

Do ponto de vista da formação do Estado é como se houvesse, assim, uma “acumulação primitiva” a partir do qual o Estado produz aquilo sobre o qual ele se exerce, isto é, cria pela violência da captura do seu fora aquilo que lhe seria de direito. Marx, ao analisar a formação do capitalismo, mostra como foi preciso um processo violento que passava pelo Estado e sua violência direta e sanguinária: expropriação das terras dos camponeses; criação de leis contra a vagabundagem com a finalidade de disciplinar a força de trabalho liberada e de fixa-la para que a relação capitalista seja possível, isto é, para que a massa da população expropriada se submetesse ao trabalho tanto física como moralmente, mesmo quando não há; endividamento público; legislação contra o roubo etc. Se trata, assim, de um conjunto de ações que passam pelo Estado e marcadas pela violência que criaram a relação capitalista: aquela entre o capitalista como proprietário das condições de realização do trabalho na forma de dinheiro e meios de produção e o proprietário da força de trabalho, isto é, aquele que só possui sua força de trabalho e que deve vende-la no mercado para sobreviver. O Capital só se forma quando essa relação entre capital-trabalho se estabelece, o que demandou uma violência para criar a realidade sobre a qual o capitalismo irá se exercer e se realizar.

Contudo, quando a relação capitalista se estabelece, ela não precisa mais da violência direta, mas se reproduz como se fosse uma relação natural: trabalho, produção de mercadorias, troca, acumulação de dinheiro (ou crescimento econômico) se tornam um movimento natural e autonomizado que já pressupõem a existência do Capital como sempre estando lá. O Capital, assim, constitui intrinsecamente a realidade sobre a qual ele se exerce, de modo que o trabalho assalariado, as mercadorias, meios de produção dinheiro, tudo isso é Capital, são constituídos intrinsecamente como realidade objetiva produzida pelo Capital e já contém em si a mais-valia a ser apropriada, ou seja, são em si momentos internos da acumulação de dinheiro. O lucro do capitalista não é resultado da expropriação do trabalho assalariado como realidade que seria externa ao capital, como se trata-se de um mero “roubo”, de não se pagar o que é justo ao trabalhador, pois o próprio trabalho (trabalho em geral, abstrato, em que pouco importa se se produz bomba atômica, arma ou alimento) já é em si a expropriação, é um modo de expropriação. O lucro ou a mais-valia já faz parte, é constitutiva do trabalho, pois a própria força de trabalho, que é uma mercadoria que se vende, foi criada historicamente como realidade propriamente capitalista e é, portanto, capital. O trabalho social é o que Marx chama de Capital Variável: o trabalho é a parte do capital que gera valor, que produz mercadoria. O Capital não é, assim, somente o capitalista, mas é a totalidade da vida social, é tanto o capitalista como o trabalhador. O Capital é um todo pressuposto a todos os momentos da nossa vida social, que organiza essa vida, estrutura ela e determina uma finalidade que mobiliza todos os dias a totalidade das pessoas e condiciona as relações em que elas entram. Isso coloca para nós a necessidade de pensar a violência capitalista para além da violência direta da polícia do Estado, que é evocada em momentos “excepcionais” (revoltas, crise etc), mas pensar que o próprio trabalho, o dinheiro, a troca de mercadorias contém incorporados em si uma violência específica do capitalismo e que é exercida todos os dias.

De maneira análoga, podemos falar, assim, de uma acumulação originária do Estado pelo qual o Estado produz a realidade sobre a qual exerce seu “direito” e que ao se formar aparece como estando sempre já lá, pressuposto a própria realidade sobre a qual se exerce e como tendo direito sobre a realidade sobre a qual ele age e constitui. Por isso “a polícia de Estado ou a violência de direito” constitui um regime histórico de violência específica, pois “ela consiste em capturar ao mesmo tempo em que constitui um direito de captura. É uma violência estrutural, incorporada, que se opõe a todas as violências diretas. Definiu-se com frequência o Estado por um ‘monopólio da violência’, mas essa definição reenvia a uma outra, que determina o Estado como ‘estado de Direito’”. (Deleuze, G.; Guattari, F. Mil Platôs 13). É justamente por esse vínculo específico entre violência e direito, sendo o direito fundado por uma violência de captura ou de inclusão de seu fora, que faz com que as ações do Estado não apareçam como violência, ou, quando aparecem, aparecem como uma violência legítima, em nome da e pela Lei que responde a uma violência ilegítima que ameaça o Estado, portanto, que a violência do Estado apareça “magicamente” como violência de direito de uma forma que estaria dada ou pressuposta.

Essa violência originária, que se reproduz nos estados de normalidade e que é fundante, vem à luz ou à superfície nas situações de exceção ou de crise, mas também se verifica nos territórios de fronteira, lá onde o direito vigora pela sua suspensão e tem nessa suspensão a condição de sua realização a partir da instauração de uma ordem que se encontra, paradoxalmente, suspensa. O Estado visa, ao agir sobre um espaço não-jurídico ou fora da lei, criar uma realidade efetiva que corresponda ao direito. Lembremos, por exemplo, do discurso da implantação das UPP’s (Unidades de Polícia Pacificadora) que dizia que se tratava de recuperar territórios dominados pelo tráfico com vistas a restabelecer o Estado Democrático de Direito. É por isso que Agamben, sobre esse problema da relação do direito e vida real, dirá:

“O direito tem caráter normativo, é norma (no sentido próprio de ‘esquadro’) não porque comanda e prescreve, mas enquanto deve, antes de mais nada, criar o âmbito da própria referência na vida real, normalizá-la”.2

Ao mesmo tempo que o Estado deve criar – pela inclusão de algo que está excluído do direito – uma ordem ao qual o direito se refira, esse fora ou isso que está excluído já se refere, contudo, a uma ordem jurídica pressuposta. Assim, há uma pressuposição recíproca entre o direito e seu fora de modo que o não-jurídico que o Estado visa incluir sobre a lei já está sempre pressuposto, configurando o paradoxo da Soberania e do Estado de exceção: o Estado de exceção não é uma anomia externa à estrutura do direito, mas uma violência estrutural e interna ao próprio direito. De modo que o Estado só existe se ele se coloca fora da lei, se ele se torna periodicamente Estado ilegal, Estado “bandido”. Esse paradoxo se evidencia para Agamben quando da criação e acionamento de dispositivos jurídicos como Estado de Sítio ou de Emergência pelo qual o Estado se coloca por vias jurídicas fora do próprio ordenamento jurídico, reclamando uma situação de necessidade que ameaça a ordem de direito e que se trata de restabelecer a partir de nexo do direito e a ausência de direito, ou entre direito e violência.

Comumente, se pensa que a violência que a polícia exerce sobre a população pobre, negra e indígena, violando um conjunto de direitos previstos na constituição, é uma espécie de desvio de caráter ou de corrupção institucional que deveria ser corrigida por um bom funcionamento da lei, como se essa violência fosse oposta à lei e não lhe pertencesse estruturalmente. Kafka representou no conto Diante da Lei esse nexo entre fora e dentro da lei: um camponês se encontra diante da Lei, que é protegida por um guarda. A porta da Lei, entretanto, não está fechada. A lei está aberta e nem mesmo o guarda impede o camponês de entrar. Contudo, o camponês não entra na lei, não consegue. O paradoxo é que o camponês não está totalmente fora da Lei, pois a Lei está ali, aberta em sua totalidade diante dele. Nessa impossibilidade de entrar naquilo que já está aberto diante dele, o camponês morre de esperar. O dilema do camponês é o mesmo de qualquer pessoa pobre, negra e que mora nas periferias do Brasil e que se deparam diante da polícia militar como estando diante da Lei, ao mesmo tempo que estão fora. É o dilema da população carcerária brasileira, que esperam, como o camponês, adentrar na Lei, que seus julgamentos sejam realizados, que a lei prescreva pelo que serão ou não condenados, esperando diante da Lei já estando sob seu jugo, incluídos na lei pelo seu abandono de todo direito.

Deleuze e Guattari argumentam, portanto, que a Forma do Direito é justamente esse nexo ou esse laço que faz da violência do Estado um regime próprio e estrutural de relação social. O que significa, assim, que o Estado deve ser pensado não como um instrumento externo às classes sociais que seria apropriável por grupos sociológicos cindidos e que visam exercer, pelo monopólio, seus interesses de classe. Desse ponto de vista, seria possível pensar que o problema não está no Estado, mas no caráter mais ou menos universal dos interesses das classes sociológicas que ocupam o Estado, e que impedem que as leis e o direitos se realizem de fato em sua universalidade, que corrompem o Estado ou usam a Lei, que deveria ser igual para todos, para fins privados. Historicamente se pensou, assim, que a burguesia, estando apenas interessada nos seus interesses privados, isto é, no seu enriquecimento pessoal, era incapaz de realizar a igualdade do Estado democrático e das suas leis. A classe trabalhadora, sendo portadora do interesse objetivo daqueles que fundam a sociedade e que são expropriados, seria, ao contrário, apta, ao tomar o Estado como instrumento por um partido que representasse sua vontade de maneira consciente, de realizar uma sociedade realmente justa, pois o Estado expressaria a vontade realmente da classe que produz a sociedade pelo seu trabalho. O que ocorreu, foi a criação de novas divisões de classe: entre os trabalhadores e a burocracia que pretende representa-los.

Na medida em que se trata de uma relação estrutural constitutiva do próprio Estado, o Estado produz uma ordem que corresponde a ele a partir de uma relação de captura ou de monopólio que é ela mesma hierarquizada. O Estado assim, como forma social, é pressuposto aos seus processos concretos que o realizam e aos objetos sobre o qual se exerce e constitui intrinsecamente suas relações de dominação: entre Soberano e súditos, governantes e governados, sujeitos de direito e de não direito. É uma lição que os autores tiram de Clastres e suas reflexões sobre as sociedades ameríndias, que são sociedades contra o Estado, que recusam a existência do Estado. Estas se caracterizam justamente por um modo de relação social em que não há divisão hierárquica, em que não há ninguém que ocupe a posição análoga a um Chefe de Estado ou agende de Estado. O surgimento e a existência do Estado não pode ser, assim, explicado como um instrumento de dominação de classes que já estariam pré-estabelecidas, como se a estrutura de relações sociais existisse antes mesmo da própria forma ou modo de produção ao qual elas pertencem. Ao contrário, o aparecimento do Estado marca uma ruptura qualitativa nas relações: o Estado cria a divisão de classes e a relação entre interior e exterior, dentro e fora da lei. Aliás o Estado é a forma mesma dos diversos tipos de monopólios: monopólio da renda da terra, do imposto, da violência e do sobreproduto do trabalho público.3

É tendo isso em vista, que Deleuze e Guattari poderão seguir uma análise do Estado como forma fetichista de relação social que constitui uma realidade objetiva, que é “um movimento objetivo aparente”, isto é, uma natureza ou realidade produzida pela forma do Estado e seus modos de captura monopolista e que aparecem como natural. É o que assinala Sibertin-Blanc: “Nesse sentido, o monopólio tem uma estrutura fetichista. Ele é o efeito principal do ‘movimento objetivo aparente’ da forma-Estado. Fetiche estático, o fato monopólio é o fetichismo de base”.4 Quando nos deparamos com o direito, quando se está diante da Lei ao mesmo tempo que se está fora, estamos diante de uma relação social sobre a qual perdemos o controle, como se o Estado tivesse vida própria e qualidades naturais.


Por Danilo Augusto de Oliveira Costa.

Notas:

    1     AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo     Horizonte: Editora UFMG, p. 202.

    2     Ibidem, p. 33

    3     CLASTRES, P. A Sociedade Contra o Estado. In: A sociedade Contra o     Estado.   

4     Blanc–Sibertin. Politique et     Etat chez Deleuze e Guattari: Essai sur le matérialisme     histórico-machinique

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