Durante várias vezes na minha vida eu tive que pensar sobre o encarceramento em massa e parece que quanto mais eu penso e estudo sobre mais consciência do pouco que sei eu tenho. Isso, por um lado, é bom para ajudar a nos afastar da soberba mas trás também uma sensação de pressão enorme, a necessidade de conseguir refletir e compartilhar o que sabemos sobre tudo é grande mas nem sempre sabemos como fazer isso.
Como falar sobre encarceramento em massa? Como falar sobre um projeto político que afeta cerca de 860 mil pessoas, essas, as quais são a maioria pessoas pretas. Como tratar como “objeto de Estudo” sobre algo que me afeta enquanto alvo.
Como pensar sobre a marginalização e criminalização do povo preto sem sentir a dor? Como escrever numa perspectiva de superação o que meu povo ainda não conseguiu superar?
Bom, pra pensar o encarceramento em massa no Brasil, assim como qualquer outra relação e projeto político eu preciso pensar a escravidão que é a forma como o capitalismo encontrou para desenvolver países, explorando corpos pretos (Corpos, pois para eles apenas isso que nosso povo era, fomos desumanizados nesse processo).
O Brasil a tal “pátria amada” cresceu culturalmente, politicamente e economicamente explorando a mão de obra de seus filhos de pele preta, é claro, que isso não se deu de maneira pacífica a resistência e luta do povo preto então forçou a abolição, mesmo que tardia e apenas formal, da escravidão. E então se tem um golpe muito grande na branquitude e na burguesia, o capitalismo precisava se reorganizar e se esse país fosse de fato uma “democracia racial” teria nos empregado e remunerado assim como tentativas de reparação histórica pela escravidão aconteceriam sem problemas, mas é claro que não foi assim que as coisas aconteceram, muito pelo contrário.
O racismo inerente a “branquesia” não permitiu que nos remunerassem, pelo contrário, decidiram nos marginalizar, afastar dos grandes centros e nos aglomerar nas favelas espalhadas pelas periferias. Além disso, preferiram importar mão de obra estrangeira, em grande medida de comunidades de “raça superior”, como italianas, alemãs, espanhois, etc, o que cumpria duas funções principais, a primeira era a de ocupar a lacuna deixada pela população negra recém liberta e também acelerar o processo eugenista de branqueamento da população, eles acreditavam que em três gerações o nosso país seria de maioria branca, assim, a miscigenação aparecia como ferramenta para construção do genocídio negro.
Ao passo que fomos marginalizados, também nos criminalizam. Isso mesmo, nos negaram condições para estudarmos e termos emprego e depois nos prendiam por não estarmos estudando ou trabalhando numa lei que ficou conhecida como “Lei da Vadiagem” e o que seria essa vadiagem? Não ter por exemplo uma carteira de trabalho, por isso é muito comum que pessoas mais velhas de nossas famílias sempre pegarem em nosso pé para portarmos carteira de trabalho para sair na rua, ou então documento de identidade, nossos mais velhos fazem isso em sinal de preocupação, numa tentativa que mesmo que seja pouco eficiente de evitar que morramos antes da hora.
Pouco eficiente pois o genocídio negro nos atinge de diversas maneiras diferentes a cada dia e nenhuma delas tem relação com cada um de nós enquanto indivíduos mas sim com um projeto de genocídio do povo preto.
Como escrevi em uma poesia minha chamada gatilho a qual colocarei um trecho aqui:
“Mas é isso, eu sou mesmo violento
e minha maior agressão é meu próprio tormento,
É essa confusão na minha mente,
É a sensação de ser insuficiente,
É me sentir impotente,
É estar presente e me sentir ausente.
É ver a vida sem alegria
É ir dormir pensando “que eu aguente só mais um dia”
Genocídio negro não aparece na mídia,
mas aparece na minha vida de uma forma diferente a cada dia.”
Se formos tentar pensar uma definição mais precisa de encarceramento em massa uma que eu particularmente concordo é a de que ele é uma política seletiva, de controle racial para lidar com a população sobrante do capitalismo, ao passo que serve para legitimar o discurso vigilante e repressor por parte do Estado Burguês e também mantém a segregação racial na sociedade, porém, agora adota um caráter mais “velado” se é que podemos dizer assim.
uma política de criminalização de corpos e vidas que faz parte de uma lógica de higienização com o objetivo de segregar aqueles que a sociedade tem como indesejáveis. A prisão faz parte de um projeto político de encarceramento em massa da população preta e pobre, controle daqueles tidos como indesejáveis e também de alimentar uma lógica de consumo e produção superexplorada.
Quando dizemos que é uma política seletiva isso se comprova se levarmos em consideração que das mais de 860 mil pessoas presas no Brasil, mais da metade são pessoas pretas e não porque cometemos mais crimes do que os brancos, mas por sermos historicamente criminalizados e o olhar da polícia e dos sistemas de “Justiça” da branquitude está sempre virado para nós.
Essa criminalização histórica de pessoas pretas é extremamente cruel e tem forte influência da mídia e da arte na representação de pessoas pretas sempre como criminosos e um inimigo a ser combatido, a perversidade é tanta que isso não atinge e influencia somente pessoas pretas. Inclusive nós mesmos somos ensinados a temer uns aos outros.
A mesma criminalização serve aos interesses da branquesia quando se torna possível criminalizar corpos pretos que mesmo que não sejam encarcerados, se forem mortos pela polícia é só dizer que eram bandidos que ai todo mundo acredita e suas vidas roubadas perdem valor e sentido, porém, não para nós. Nossos mortos tem voz e valor, nenhum de nós pode ficar para trás.
A prisão funciona como mecanismo de controle racial no mundo todo, na Austrália a população carcerária tem a esmagadora maioria de mulheres Koori, isto é, aborígines, que, embora sendo aproximadamente 2% da população total da Austrália, constituem 30% da população da prisão.
Essa lógica prisional para ser alimentada precisa de uma fonte de recursos bem grande, para isso, ela drena recursos que poderiam ser investidos em saúde, educação, habitação, transporte e que beneficiariam potencialmente as pessoas pretas e pobres para investir nas prisões. Conforme o investimento for maior, também cresce a cobrança por resultados. E o que são os resultados? Mais pessoas encarceradas, um movimento que também se observa é o fortalecimento dos aparelhos de repressão do Estado e também um endurecimento das penas.
A mídia tem um papel fundamental na construção de uma imagem animalizada e violenta principalmente do homem negro, que inclusive é incorporada por nós mesmos e ajuda e explicar muitos de nossos comportamentos tóxicos, o que não serve como justificativa para não revermos nossas próprias masculinidades.
Somos alvos do encarceramento pois eles entendem que a prisão é uma das formas mais cruéis de exercer controle sobre a vida e a morte de um povo, como nos mostra Assata Shakur:
“Aqueles que são alvejados enquanto vítimas do Complexo Industrial Prisional são principalmente pessoas de cor. Estes são nativos americanos, africanos, asiáticos e latinos que vieram de sociedades onde não havia prisões e onde prisões eram um conceito desconhecido. As prisões foram introduzidas na África, nas Américas, Ásia como subprodutos da escravidão e do colonialismo, e elas continuam a ser instrumentos de exploração e opressão. No coração dos impérios imperialistas, prisões também significavam opressão. As prisões da Europa estavam tão lotadas que os prisioneiros europeus foram enviados para as colônias e encorajados a escravizar e colonizar outros povos. Na Inglaterra, durante o chamado período de expansão, não houve nenhuma prisão dos devedores para com os pobres, mas mais de 200 crimes eram punidos com a morte. Durante a revolução francesa, a invasão e a destruição da Prisão de Bastilha se tornou um símbolo para a libertação de toda a Europa.”
E diante das condições de marginalização que estamos expostos, uma série de opressões e ainda assim uma necessidade de auto-afirmação e alimentação o crime, aparece para muitos, como uma única opção. O discurso moralista dos que pregam lei e ordem descolado do investimento em educação, trabalho e alimentação nos soa como um doloroso sarcamo, uma risada que machuca quando ressoa em nossas cabeças, como viver dentro da lei e da ordem se são elas mesmas que nos excluem e marginalizam? Como fazer “sucesso” dentro do mundo branco ao mesmo tempo que esse mundo não é pensado para nós.
Novamente resgatamos um trecho de Assata Shakur:
“Aqueles que institucionalizaram o rapto de africanos, aqueles que orquestraram o genocídio contra os americanos nativos, aqueles que saquearam os tesouros do mundo e que são responsáveis pelos crimes mais hediondos do planeta querem nos pregar a lei e a ordem.Aqueles que lucram com a miséria humana e nos negam educação, ação afirmativa, cuidados de saúde, moradia decente, querem nos dar lições de moralidade.
Muitos de nós assistimos impotentemente, enquanto nossas crianças imitam e internalizam a ganância, ostentação, cultura do consumo conspícuo, praticadas por aqueles que nos oprimem. Nós assistimos às mesmas pessoas que importam drogas para o país, que as distribuem em nossas comunidades, travarem uma guerra contra nós com nome de guerra às drogas.”
Não podemos deixar de considerar que também há por trás de todo projeto político uma viés econômico de lucro. A pessoa presa também consome, sem escolha, logo as empresas vão lucrar com isso de alguma maneira “prestando serviços ao sistema prisional” de alguma maneira. Além disso, em muitos casos, a pessoa presa também produz, geram riqueza para o Estado e para as empresas, fazendo isso sem equipamentos de proteção individual, sem remuneração adequada e sem possibilidade real de organização em sindicatos, não há lei trabalhista que proteja quem está encarcerado. Não existem direitos humanos que resguardem quem foi sendo historicamente desumanizado. Na verdade, grande parte da luta do movimento negro gira em torno da nossa busca por humanização.
Inclusive, isso ressoa também nas produções de pessoas pretas na academia. O primeiro movimento quando acessamos um espaço que supostamente é um espaço de construção de movimento é procurarmos mais sobre nossa história e questões sobre negritude pois além desse ser o espaço que a branquitude destinou para nós, também é uma busca para preencher o vazio causado pelo “não lugar” que o racismo cria em cada um de nós.
Esse sistema punitivo é extremamente seletivo pois uma pessoa preta com um baseado é presa e a pessoa branca com uma suástica não, lembrando que apologia ao nazismo é crime.
O encarceramento em massa pesa principalmente contra a juventude preta não porque nós cometemos mais crimes do que os brancos, mas por sermos considerados indesejáveis ao Estado ao mesmo tempo que isso também é uma forma de manutenção de privilégios da branquitude.
Lutar contra o encarceramento em massa é também lutar contra o racismo mas é se permitir pensar uma outra sociedade, que resolve seus conflitos de outra maneira.
Para isso, acho que é necessário discutir o desencarceramento e também o fim das prisões. entendendo que se o encarceramento em massa é um projeto político de criminalização de corpos e vidas, ao passo que você também produz corpos matáveis. É preciso denunciar que se há um projeto político de encarceramento em massa, todo preso é um preso político.
Não, esse texto não é mais um texto que vai propor respostas e soluções. Proponho questionamentos: Será que as prisões são a única forma de lidar com as situações problemas da vida em sociedade? A prisão atinge a todos da mesma forma?
O fato é que a prisão não é um efeito da criminalidade, ao drenar os recursos da educação, saúde e habitação que poderiam diminuir potencialmente o número de crimes ela retira também a chance de não cometer crimes de grande parte da população preta e pobre desse país. Enquanto existirem prisões, existirá encarceramento em massa. As prisões, são uma forma de controle racial sobre vidas historicamente desvalorizadas, lutar contra isso é imperativo. É preciso força, coragem que só encontraremos uns nos outros para lutar, afinal, só a luta muda a vida!
É abolicionismo ou barbárie.
Por Marcus Nascimento, militante preto, anticapitalista e estudante de serviço social na Unesp.
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