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II. O Estado moderno capitalista
Se é verdade que há na fundação do Estado uma violência originária a maneira de uma acumulação primitiva pela qual o Estado cria aquilo sobre o qual se exerce e pelo qual a relação social própria à forma-Estado é reproduzida, é preciso, entretanto, analisar mais especificamente como isso se dá no capitalismo. Questão a partir da qual podemos pensar, de uma maneira muito sumária, a questão da historicidade do Estado. A violência originária, no que diz respeito a formação do Estado moderno e do direito público Europeu, no interior do qual os Estados Soberanos se reconheciam, se territorializava justamente na América. O fora do ordenamento público europeu, que pacificava a relação entre os Estados na Europa, era a América e a África saqueadas. A América era esse fora que deveria ser capturado, incluído pela colonização. A exceção ou a violência originária do Estado tem de se especializar espaço-temporalmente. De modo que Clastres pode falar que todo Estado é uma força etnocida: pressupõe a subjugação das formas de vida diferentes, mesmo quando ele permite uma autonomia relativa, é fazendo delas minorias estatais.5
A colonização consistia justamente nessa espacialização da exceção onde a Lei do Estado só aplicava ou vigorava se suspendendo a partir dessa captura do seu fora. Agamben mostra, assim, como a América aparecia para a consciência de teóricos modernos do direito, como John Locke e Thomas Hobbes, como um estado de natureza no qual tudo é lícito, espaço “livre e juridicamente vazio”. Essa consciência só é possível porque tal espaço já se refere ao direito Europeu, sua exceção tem um nexo estrutural com o espaço jurídico estabelecido na Europa e que disciplinava as relações entre os Estados. Desse modo, o estado de natureza nos ajuda menos a entender as sociedades ameríndias, do que as próprias sociedades modernas estatais e sua violência originária: “o estado de natureza é, na verdade, um estado de exceção”.6
A concepção moderna das sociedades indígenas como sociedades “sem fé, sem lei, sem rei” é, primeiramente, uma concepção que toma como ponto de referência ou de positividade as próprias sociedades ocidentais estatais, monárquicas e católicas. As sociedades indígenas seriam entendidas pela falta, pelo que elas não possuem e, por isso, seriam inferiores. Mas, mais do que isso, é uma concepção ou uma consciência que se forma já pela relação de exceção própria as formações estatais e pelas quais estas buscam incluir, pela exclusão, o seu fora, legitimando, assim, a violência do Estado sobre um espaço de exceção colonial. É a colônia, assim, o fundamento, a verdade e a origem do Estado de Direito da modernidade, antes do próprio campo de concentração nazista, como queria Agamben. É nessa relação de fronteira, entre externo e interno, metrópole e colônia, que se dá a historicidade do Estado moderno.
Esse processo de formação dos Estados modernos é, além disso, o da formação da máquina capitalista. Como argumentamos, se o Estado desempenha um papel na formação do capitalismo, contudo é na formação de uma máquina social que o excede e que o determina. O Estado é ultrapassado por uma forma de relação social baseada na acumulação de dinheiro. Para Deleuze e Guattari, os Estados “mudam de forma e assumem um novo sentido”, que é o de serem “modelo de realização” de uma acumulação mundial de dinheiro a partir da produção e troca de mercadorias. Sendo a exigência de acumular dinheiro o determinante da nossa sociedade, o Estado passa a ser, portanto, um modelo de realização dessa acumulação ou, dito de outro modo, formas de territorialização do Capital mundial ou social total. Podemos pensar, assim, no papel constante na história do capitalismo que o Estado teve de fixar a força de trabalho, de garantir que ela se encontre, no mercado, com os capitalistas. Uma dessas formas de territorialização se dá a partir da nacionalização, como ocorreu no Brasil na Era Vargas. Constituir um Estado-nação pressupõe a força de trabalho na forma da população, ou seja, é sobre uma massa homogênea e abstrata resultada da expropriação das terras que a nação se constitui, de modo que a “população” como realidade “não se separa do Estado moderno que dá uma consistência à terra e ao povo correspondente. É o fluxo de trabalho nu que faz o povo, como é o fluxo de capital que faz a terra e seu equipamento”. O Estado se constitui, justamente, delimitando um território para um povo sem terra, que foi expropriado da terra, que é a força de trabalho, mas ao mesmo tempo que faz desse território espaço de acumulação econômica, ou seja, faz da territorialização um processo de realização da mercantilização da própria terra.
O que diferencia o Estado moderno dos Estados pré-capitalistas, portanto, é justamente o fato do Estado não ser mais propriamente territorial, isto é, de não ter mais como objeto a terra como propriedade de um Rei ou Soberano, mas ser um Estado de população, que é um Estado que tem como objeto a população como fluxo abstrato e quantificável de força de trabalho e de dinheiro, de pessoas e de mercadorias que devem ser governados a partir de ciências do Estado (Estatística, criminologia, medicina, economia etc) e por um processo crescente de tecnização da arte de governar. O Estado está agora preocupado com as condições da vida e da morte: governar de maneira racional o nascimento, a educação, a saúde, a mortalidade, que são fatores constitutivos da população e da sua força de trabalho, tendo em vista que tais condições estão diretamente ligadas a capacidade dessa população de produzir crescimento econômico.
Assim, aquilo que o Estado busca incluir na forma jurídica é justamente a vida da população como realidade biológica que, entretanto, não é um dado preexistente ao direito: a vida nua, a vida matável, sujeita ao risco iminente da morte é justamente a vida sem direito, isto é, a vida biológica como resultante da sua inclusão na ordem político-jurídica a partir da sua suspensão (o que se realiza a partir de critérios raciais, de gênero e classe). Seguindo nossa argumentação, a biologização da política e politização da realidade biológica (a raça e o sexo como objetos biopolíticos que remetem a acumulação primitiva, com a imposição pela escravização do corpo negro, indígena, e camponês ao trabalho) pressupõe, entretanto, o trabalho abstrato, como trabalho vivo nu, que faz do corpo individual e da população mero corpo abstrato, quantificável e mensurável em seus fenômenos vitais, e o dinheiro como forma geral da riqueza ou como capital.
É Foucault que mostra, em Segurança, Território e População, que a população como espécie, isto é, como fato biológico, surge no século XVI como objeto da economia política como ciência de governo e dos governos dos Estados quando, simultaneamente, a economia surge como realidade social específica sobre a qual o governo dos Estados se exerce:
“É graças à percepção dos problemas específicos da população e graças ao isolamento desse nível de realidade que se chama economia, que o problema do governo pôde enfim ser pensado, refletido e calculado fora do marco jurídico da economia”. 7
Que a população surja como objeto de governo, que se trate de governar as condições da população, da sua saúde, da sua vida e que a vida biológica da população seja pensada em relação à riqueza econômica é o que redefine o papel do Estado e da sua soberania, e que faz com que a soberania da lei seja determinada por uma relação social que a ultrapassa e não esteja mais centrada em garantir a vontade de um soberano absoluto, de um imperador ou monarca. Lembremos, assim, como políticas higienistas e eugenistas mobilizam a ideia da saúde da população nacional e vinculam esse problema, que seria visto como biológico, com a grandeza da Nação, da sua prosperidade, que é uma prosperidade econômica. Assim, essa mudança do Estado marca uma mudança de uma sociedade que tinha no Estado sua síntese social, sua forma determinante de organização, centrada na figura da Soberania, para uma sociedade baseada na produção de riqueza monetária:
“Creio que temos aqui uma ruptura importante, enquanto a finalidade da soberania está em si mesma e enquanto ela tira seus instrumentos de si mesma sob a forma da lei, a finalidade do governo está nas coisas que ele dirige; ela deve buscada na perfeição, na maximização ou na intensificação dos processos que ela dirige”8
O Estado passa ter a função, portanto, de regular e garantir o processo interminável de acumulação de riqueza abstrata quantitativa. Regular um processo, portanto, no interior do qual o Estado já não tem nenhum papel determinante. Sendo determinante a acumulação de dinheiro, o Estado é compelido, enquanto aparelho de regulação ou administração de fluxos quantitativos de dinheiro e de pessoas, a uma tecnização crescente pela qual regula os fenômenos populacionais e econômicos, amparando-se em um conjunto de ciências ou saberes do Estado que permitiriam controlar tais fenômenos em suas leis próprias, e, consequentemente, conduzido a uma impessoalidade do poder característico da modernidade e que foi assinalada por Foucault. Com essa mudança, o poder do Estado passa a ser limitado com vistas a torná-lo o menos oneroso possível – normalizado e disciplinado – e surge o problema dos custos econômicos da ação do Estado tendo em vista os objetivos da sociedade burguesa.
Isso faz com que a relação de Bando ou o Estado de Exceção tenha que ser compreendido a partir do seu nexo com o processo de acumulação econômica: a violência soberana ou de bando passa a estar ligada não mais a figura do soberano, mas a do Capital e sua história: a exceção é a violência de direito pelo qual se faz valer o direito da acumulação capitalista. É por isso que no capitalismo, apesar da soberania do Estado já não desempenhar nenhum papel determinante, há uma nostalgia constante de um Estado todo poderoso, sobretudo quando o que se está em jogo é a expansão da imposição do Capital (por exemplo, nos processos de colonização) ou em momentos de crise em que se trata de garantir a realização das relações econômicas ameaçadas a partir de “golpes e ditadura mundial, de ditadores locais e de polícia toda-poderosa”.
Por Danilo Augusto de Oliveira Costa.
Notas:
5 CLASTRES, P. Do Etnocídio. In: Arqueologia da Violência.
6 AGAMBEN, G. O Homo Sacer. Op. Cit., p. 115.
7 FOUCAULT, M. Segurança, Território, População. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 138
8 Ibidem p. 132.
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