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15 jul 2020

Estado de Bando – Apontamentos sobre a formação de um Estado miliciano brasileiro em três tempos. III – O Estado Bolsonarista

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III – O Estado Bolsonarista

O Estado bolsonarista é precisamente um Estado de Bando, sendo seus ministros, deputados e demais funcionários da burocracia os membros desse bando soberano. Enquanto bando, estão ao mesmo tempo fora e dentro da lei.

O estado de abandono, abandono pela ausência de direitos e à violência do Estado, que parcelas da população estão submetidas encontra sua correspondência nesse Estado de bando ou, se se quiser, no Estado de exceção. Mas seria preciso fazer uma espécie de genealogia desse atual Estado de bando que foi fermentado em anos de políticas baseada no genocídio e no encarceramento em massa e numa racionalidade neoliberal ou empresarial que passou a fazer parte inclusive do mercado ilegal de proteção por bandos milicianos, que operam como múltiplos “soberanos”. O pressuposto do estado de coisas atual são anos de exercício de um capitalismo que suscitou pelo seu governo a formação e expansão de diversos bandos com relações umbilicais com o Estado, máquinas de guerra que não só tecem alianças com o Estado, mas tomaram conta do Estado. Assim, seria preciso ver a atual formação de bandos milicianos para além da esfera do Estado, e referi-la a uma forma muito mais universal e abstrata de relacionamento social. Quer dizer, a máquina de guerra social que as milícias compõem excedem os Estados que se tornam peça delas, até porque sua lógica não é simplesmente política num sentindo estatal, mas é também mercadológica, sendo um empreendimento econômico que excede o Estado, retira dele seu monopólio da violência e se serve dele como meio de pilhagem econômica, confundindo cada vez mais processos econômicos com a realização da guerra e a política como a continuação dessa guerra econômica por outros meios.

O que há de fascista nesse governo e seu surgimento deveria ser, portanto, buscado num nível mais molecular do que na centralização política do Estado: deveria ser buscado no trabalho sujo do carcereiro disseminado em anos pela política de expansão do parque industrial-prisional, das milícias que surgem em território “abandonados” pelo Estado (em que o Estado se faz presente pela suspensão de direitos, pela sua ação de exceção, de violência), pelo papel que os agentes militares passam a desempenhar articulados com políticas de assistência social focalizada e pela marcação biográfica e cotidiana da militarização urbana, do encarceramento e do genocídio. Como micro-buracos negros que foram germinados e agora vão sugando tudo por ressonância, a exceção se torna nexo social cotidiano, moeda de troca na sociedade brasileira.

Toda essa expansão de políticas baseadas no extermínio, na tortura, no encarceramento, na guerra às drogas, ao crime, à população pobre e negra forneceu peças de uma máquina que produz desejo: “O desejo nunca é uma energia pulsional indiferenciada, mas resulta ele próprio de uma montagem elaborada, de um engineering de altas interações: toda uma segmentaridade flexível que trata de energias moleculares e determina eventualmente o desejo de já ser fascista”. Por isso é consistente a base de cerca de 30% do Bolsonaro, é uma máquina muito eficiente que operou durantes anos num nível micropolítico, dentro das prisões, nas cidades, nos bairros, nas famílias, pelas mídias etc, realizando uma micro-gestão dos pequenos medos, da insegurança e do abandono a partir da guerra contra um inimigo interno. Máquina de produzir o desejo, de ser desejo fascista de morte ao pobre, ao vagabundo, de encarceramento etc, e que foi montada pela própria esquerda institucional.

Deleuze e Guattari localizam na Guerra Fria a formação de uma máquina de guerra mundial, que excede os Estados e se autonomiza em relação aos seus objetivos nacionais. O esboço de uma máquina de guerra autonomizada foi o fascismo, no fascismo

“trata-se de uma máquina de guerra. E quando o fascismo constrói para si uma Estado totalitário não é mais no sentido de uma tomada de poder por um exército de Estado, mas, ao contrário, no sentido da apropriação do Estado por uma máquina de Guerra. (…) Existe no fascismo um niilismo realizado. É que, diferentemente do Estado totalitário, que se esforça por colmatar todas as linhas de fuga possíveis, o fascismo se constrói sobre uma linha de fuga intensa, que ele transforma em linha de destruição e abolição puras”.9

Mas o fascismo era apenas o início disso que viria a ser uma máquina de guerra que se autonomiza em relação ao Estado e devém guerra total. Por isso, na guerra fria:

“não havia mais necessidade do fascismo. Os fascistas tinham sido só crianças precursoras, e a paz absoluta da sobrevivência vencia naquilo que a guerra total havia falhado. Estávamos já na terceira guerra mundial. A máquina de guerra reinava sobre toda a axiomática como potência do contínuo que cercava a ‘economia-mundo’, e colocava em contato todas as partes do universo”.10

A guerra fria seria uma guerra total travada mundialmente pela paz e contra um inimigo disperso. Promover essa guerra, que era uma guerra contra a possibilidade do comunismo, contra as guerrilhas e processos de independência seria exigida pela continuação da economia-mundo capitalista que demandava para sua realização o investimento num complexo tecnológico-militar-financeiro. Tal guerra total se caracterizaria: 1) por ser uma mobilização total do investimento do capital em capital constante e variável para constituir uma economia de guerra. 2) por um aniquilamento total que não visa apenas o exército inimigo, mas a população inteira e sua economia. 3) pela constituição de uma máquina de guerra que já não se restringe as determinações do Estado, pois o objeto é uma guerra ilimitada, isto é, que não tem um horizonte restrito e determinado de realização. Nesse aspecto, quando a guerra enquanto objeto se torna ilimitado, seus fins já não se restringem as determinações políticas, o fim se torna a própria permanência da guerra. É na transposição desse limiar político de determinação dos fins da guerra que começara a se constituir uma máquina de guerra autonomizada e mundial, que traça as novas ordens, os fins, de modo que os “Estados não passam de objetos ou meios apropriados para essa nova máquina”11 A guerra fria, ao fazer da paz o objeto da guerra, ao desfazer a distinção entre tempo de paz e tempo de exceção, consolida, assim, a autonomização da guerra ilimitada que excede os Estados e suas decisões sobre a guerra com objetivos limitados. Nesse sentido: “é a política que devém a continuação da guerra, é a paz que libera tecnicamente o processo material ilimitado da guerra total.”

Desse ponto de vista, a guerra da ditadura militar brasileira contra o inimigo interno fazia parte dessa mudança histórica da noção de guerra e da constituição de uma máquina de guerra mundial permanente e autonomizada, que continuaria na democracia como guerra ao crime e guerra às drogas.12 Essa guerra, por ser permanente, é travada mesmo lá onde não há revolução no horizonte, insurreição ou ameaça ao Estado, como se fosse uma “contra-revolução preventiva” permanente. O general Golbery do Couto e Silva foi um dos principais teóricos e disseminadores da Doutrina de Segurança Nacional no Brasil e um dos quadros da ditadura militar. É ele que nos fornece uma concepção de guerra, que seria própria a Guerra Fria: a guerra é fria, pois não é possível mais distinguir tempo de paz e tempo de guerra; é permanente, sem um horizonte para acabar; e é multiforme, abarcando campos além do estritamente militar, como o econômico, político, cultural e psicossocial. A Segurança Nacional, assim, não se restringia a uma medida meramente militar de defesa, mas seria uma estratégia de guerra que incluía o próprio planejamento estatal, isto é, o desenvolvimento econômico, a produção cultural e o tratamento da questão da miséria e bem-estar social, vistos como catalisadores das revoluções nas periferias por inimigos que agem misturados na vida civil. Essa concepção de guerra dos militares brasileiros, aliás, teve como influência a Doutrina militar francesa sobre a guerra formada a partir da guerra contra a Revolução da Argélia na década de 50.13

Percebe-se, assim, que a ditadura trava uma guerra permanente que é concebida como mundial. Assim, o Estado militar se constitui como peça de uma máquina de guerra de uma guerra mundial que deve ser travada e que escapa ao próprio Estado, mesmo quando não há nenhuma revolução ou insurgência real em curso. Essa nova forma de guerra configura, assim, uma guerra irregular contra os próprios civis. Como argumenta Achille Mbembe em Crítica da Razão Negra, as novas formas de guerra operam sem distinção entre interno e externo, nacional e transnacional, legal e ilegal:

Face à transformação da economia da violência no mundo, os regimes democráticos liberais consideram-se agora em estado de guerra quase permanente contra novos inimigos fugidios, móveis e reticulares. O palco dessa nova forma de guerra (que exige uma concepção total da defesa e uma construção dos princípios de tolerância para exceções e infrações) é simultaneamente externo e interno. O clássico paradigma de combate que opõe duas entidades num campo de batalha delimitado, e onde o risco de morte é recíproco, é substituído por uma lógica vertical com dois protagonistas: a presa e o predador”14

    Lembremos que é essa concepção de guerra – que transforma a cidade em um estado de sítio, e que é uma guerra travada contra os pobres, pessoas negras e periféricas, visando, justamente, pessoas que são cada vez mais “abandonadas” pelo Estado no mesmo passo que são excluídas da ordem mercantil centrada no trabalho, sem, entretanto, poder sair dessa forma de sociabilidade de fato15, tornando-se cada vez mais supérfluas do ponto de vista do sistema capitalista – que apareceu no discurso do então secretário da justiça de Michel Temer, em 2018, a respeito do combate ao tráfico de drogas no Rio de Janeiro:

“A guerra moderna não é a que lutamos em 1945, que você tinha terreno inimigo, inimigo com uniforme, estruturado, com batalhão, pelotão, companhia etc. Você não sabe quem é o inimigo, a luta se dá em qualquer ponto do território nacional. Você não sabe que arma virá, não sabe quantos virão. O seu inimigo não tem linha de comando longamente estabelecida, tem duas ou três linhas e acabou. Você não tem um centro nevrálgico para atacar, combater e desmontar o batalhão. O Exército não tem sede, está esparramado em qualquer lugar, qualquer ponto do território nacional.”16

Evidentemente, o recurso aos expedientes “extra-econômicos” de violência não é uma novidade na história do capitalismo, mas deve ter ai uma mudança pela qual podemos entender a mudança da violência de direito do capital em sua crise permanente a partir da década de 80. Tal crise, marca assim, o encerramento de uma guerra que poderia ser feita juntamente com “desenvolvimento social”, isto é, acumulação de capital, característico do binômio Segurança e Desenvolvimento da ditadura, sendo o desenvolvimento integrante da própria estratégia de guerra. Agora se trata de uma guerra sem acumulação real (resta a acumulação por especulação imobiliária, endividamento dos Estados e em ações nas bolsas de valores), sem geração de emprego, crescimento econômico e promoção de bem-estar.

Não sendo mais uma violência de imposição da forma de acumulação e de suas territorialidades numa história ascendente de acumulação de fluxos monetários, deve ter algo de uma violência de desintegração da nossa vida social que deve ser realizada para manter o jogo de formas de relações sociais que já não podem ser estabelecidas em seu desdobramento lógico-histórico “normalizado”, mas que tem na própria anomia, ou na própria irregularidade a maneira de mantê-lo, formando, assim, bandos soberanos executores das relações capitalistas em crise e que concorrem entre si. Stephen Graham em Cidades Sítiadas – O novo urbanismo militar, demonstra que um outro aspecto das guerras realizadas a partir da década de 80 pelas grandes potências aos países do oriente médio transformados em inimigos é conduzir a uma “desmodernização” a partir da destruição de sua infra-estrutura, fazendo-os voltar “à idade da pedra”. Efeito semelhante produz as políticas de austeridade articuladas com as guerras aos pobres que se conduz há anos no Brasil: elas levam a uma destruição das infra-estruturas sociais que permitem a socialização da riqueza (saúde, educação, previdência), ao mesmo tempo que submete as pessoas a uma violência cotidiana nas periferias própria de zonas de guerra. Ou seja, se a modernização significou um processo de integração ascendente de toda a humanidade no interior da ordem social capitalista, a desmodernização significa a sua desintegração sem que nada seja posto no lugar, eliminando Estados e regiões inteiras. Assim, por exemplo, se antes para travar a guerra contra o comunismo e a União Soviética, os EUA promovia o desenvolvimento de países subdesenvolvidos a partir de uma “Aliança para o Progresso”, agora ele simplesmente destrói Estados inteiros. Se na ideologia militar o combate armado à subversão comunista era articulado com o desenvolvimento econômico, agora é a própria população pobre que é alvo militar dissociado de qualquer desenvolvimento ou bem-estar social.

Agamben, assim, pode falar de uma tendência histórica em que a exceção adentra cada vez mais no primeiro plano da vida social. Esse processo, como indicamos, está estruturalmente ligado com uma crise absoluta do capitalismo que se inicia na década de 80. Tal crise consiste no tornar estruturalmente obsoleto, em decorrência das revoluções tecnológicas, o dispêndio de trabalho como fundamento da riqueza socialmente produzida, o que, operando como uma “emancipação negativa” tem resultados catastróficos e necropolíticos. Trata-se da centralidade da relação de Bando que é não só uma relação político-jurídica, mas como vimos, econômica e que faz com que cada vez mais as relações sociais baseadas na mercadoria e no dinheiro só possam se estabelecer pelo recurso a violência e a pilhagem social: manter o jogo econômico só é possível, cada vez mais, pela expropriação urbana a partir da remoções para garantir a especulação financeira, pelo recurso ao uso das armas para realizar empreendimento como: venda de segurança, fornecimento de gás, energia e transporte. E uso do Estado para enriquecimento, transformando o próprio Estado em objeto de pilhagem de bandos ou de máquinas de guerra.

A nota dos militares é assinada por indivíduos que formam um agenciamento muito distinto da própria instituição militar, o que implica um outro agenciamento enunciativo, que não é aquele do exército, é um agenciamento próprio de bando, extra-institucional, apesar de perpassar as instituições. Daí que tal nota também indica que o problema não é a tomada do governo pelo exército como instituição do Estado, mas por um bando cujo seus membros foram formados em anos de um fascismo molecular. É um bando com tendência de englobamento de agrupamentos heterogêneos (civis, milicianos, militares de baixa patente, militares de reserva, empresários) e com objetivos distintos de objetivos “nacionalitários”, pois baseiam-se na suspensão não só da lei do Estado com vistas a sua conservação, mas de uma anomalia permanente da capacidade do dinheiro criar dinheiro enquanto corpo social e que conduz a uma desintegração da própria instituição do Estado, do aumento do desemprego, da eliminação da própria população, de desregramento cada vez maior do desmatamento e expropriação de territórios indígenas etc. O nexo das categorias sociais: mercadoria, trabalho, dinheiro etc, não se faz mais sem a exceção, a ilegalidade, a violação de direitos, a violência armada e sua extensão como numa metástase social em que a conservação da forma social só é possível pela pilhagem, pelo banditismo que não tem coerência interna, mas é marcado por alianças provisórias, por concorrência interna aos próprios bandos que se eliminam na medida em que o buraco da socialização se torna mais curto na expropriação da riqueza social.

Por Danilo Augusto de Oliveira Costa.

9     Deleuze, G. Guattari, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia     2, vol.3. São Paulo: Editora 34

    10.     Deleuze, G. Guattari, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia     2, vol.5. p. 182

    11     Sobre os aspectos da guerra total, ver Deleuze, G. Guattari, F. Op.     Cit., p. 115.

    12     Gabriel Feltran mostra assim como a guerra não só se torna central     para entender nossa democracia, mas como. a guerra é muito     lucrativo: a guerra entre policiais e crime, a reprodução mútua     entre governo e crime, é lucrativa: ela gera um aumento das     empresas de segurança privada, ampliação da política de     encarceramento em massa a partir da construção de prisões,     ampliação do mercado de drogas trasnacional que se serve das     políticas baseadas na criminalização crescente da pobreza etc :     São Paulo, 2015: Sobre a Guerra. Blog da BOITEMPO.

    13     Baseio-me aqui na pesquisa da Letícia Maria sobre a obra de Golbery     e seu papel na Escola Superior de Guerra. Ver Os     discursos na Escola Superior de Guerra: conceitos     e influências para uma Doutrina de Segurança Nacional.     Revista Ensaios de História 20 (1). P. 85-100.

    14     MBEMBE, A. Crítica da Razão Negra.

    15     Mbembe dramatiza assim     nossa situação histórica: “Se, ontem, o drama do sujeito era     ser explorado pelo capital, hoje, a tragédia da multidão é não     poder já ser explorada de todo, é ser objeto de humilhação numa     humanidade supérflua, entregue ao abandono, que já nem é útil ao     funcionamento do capital”. (Mbembe, A, Crítica da Razão Negra).

    16     “Não há guerra que não seja letal”, diz Torquato Jardim ao     Correio Braziliense.

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