Uma das coisas que mais me intrigaram nos últimos tempos pensando nos processos das masculinidades é justamente o de perceber uma figura central na experiência do ser homem, a figura do pai. É evidente que nascemos e crescemos nos espelhando nas ações, práticas, conversas e tratamentos que nossas mães e pais dedicam a nós, afinal chegamos a esse mundo nus, uma nudez de experiências e valores que são passados pelo convívio das relações humanas. Mas, o diferente é perceber o quanto a figura do pai tem toda uma grossa camada de importância sentimental no processo de se entender e ser entendido como homem, isso é, seja relacionada com a presença, mas também a ausência da figura paterna masculina, sendo ela física ou afetiva.
Com certeza, observar a paternidade como um dos maiores eixos, e em algumas visões o principal, da formação da masculinidade, está diretamente ligada com o se perceber como uma engrenagem num sistema de reprodução de valores sociais, que na família nuclear ocidental é a reprodução de uma masculinidade centrada no patriarcalismo, com duras expressões do machismo e com uma obrigatoriedade de assumir um papel de gênero historicamente e geograficamente delimitado, e que é o propulsor de uma série de ações e memórias em muito traumáticas para todos os que compõem o núcleo familiar, o agressor e a estruturas sociais.
É nesse sentido que Franz Kafka, escritor tcheco e pequeno burocrata judeu, materializa toda a sua dor, indignação e tristeza… Emoções das duras vivências em sua relação com seu pai, que descreve em sua “Carta ao pai” de 1919. Kafka a escreveu como uma forma de possibilitar com que as palavras grafadas no papel expressassem tudo o que nunca sua garganta teve coragem de dizer à seu pai, Hermann Kafka.

Um pensamento que me ocorreu durante toda a deglutição do livro é o de que, estranhamente, as duras sentenças que Kafka dedica a seu pai poderiam ser dedicadas a uma enorme quantidade de homens, cuja paternidade parte de uma experiência heteropatriarcal, de uma certa herança cultural colonial que se expressa dentro do ambiente familiar nuclear e suas relações… De observar o quanto poderiam ser dedicadas à sujeitos como meu próprio pai, meu tio, meu avô, e por vezes, mesmo que eu ainda não seja pai, a mim mesmo, em minhas relações…
Kafka se dispõe a por essa dúzias de páginas, expressar não só a mais pura análise subjetiva e sistemática das relações desenvolvidas no seio de sua casa e da sua própria existência, mas de uma narrativa psicológica da experiência do ser filho desse homem e como isso influenciou absolutamente toda a sua vida, das mais diversas formas… No trabalho, nas relações amorosas, nas amizades, na sensibilidade… e em grande parte, de uma maneira negativa, com sentimentos muito ligados ao medo, à incerteza, à insuficiência, ao eterno medo da reprovação.
Inicialmente, o autor elabora a obra como uma forma de responder à uma indagação de seu pai, um “porque você tem medo de mim ?”. Esse se mostra uma exercício fundamental para o movimento das ideias do autor. O medo sempre foi uma entidade ligada a seu pai, e que sempre o tutelou numa série de atividades da vida adulta como um fantasma. A experiência traumática que a relação com seu pai lhe trouxe se expressou durante sua vida através do medo, do medo da autoridade soberana que o pai exalava e que se fixou no seu caráter.
Mas, é também no início do texto que o autor diz que acredita que o pai não tem culpa de todo esse processo, quando afirma: “Você só pode tratar um filho como você mesmo foi criado”, portanto que era “natural que fosse assim”, de alguma forma compreendendo o ciclo das opressões presentes na paternidade, isentando seu pai dos males a ele causado, reconhecendo seu papel dentro das instituições perpetuadas pela reprodução da estrutura patriarcal, do modelo da masculinidade dominante, isto é: todo o discurso ligado à virilidade, à força física, ao status social, ao poder sobre os outros corpos, à dominação sexual, moral, psicológica que deve exercer o homem sobre o universo.
Compreensão essa que é central no processo de autoconhecimento e questionamento das nossas formações das masculinidades… Não o de espremer as memórias e os momentos traumáticos da relação paterna, já que esse me parece um exercício diário para os que lidam com situações de confronto com a expressão da masculinidade num processo autocrítico, mas o da prática empática e necessária de entender a relação cíclica de opressões, o que não significa isentar alguém da culpa, mas é tentar afastar a necessidade da vingança e da punição como forma de compreender melhor a questão estrutural do patriarcado.
É comum ouvir o velho discurso do “meu pai me maltratava, mas eu sou diferente, não farei isso com você…” mesmo que na prática esses maltratos permaneçam estruturalmente na relação. Não basta apenas reconhecer esse processo, mas sim pensar em como ele se dá nas dinâmicas do cotidiano… O processo de afastamento do pai tóxico, por vezes, é só a mudança da roupagem das agressões, uma vez que o “O oprimido se tornou opressor” e não conhece outro modelo senão o da opressão, como Franz muito oportunamente relata no episódio em que ainda que um bebê seu pai o deixa para fora de casa por estar chorando, o que poderia ser ainda analisado sob a o discurso da educação punitivista como forma de socialização paterna, a eterna retórica do “Só assim pra aprender”.
Outro nuance fundamental expresso na relação do autor e seu pai, é a grande influência que esse tem sobre a visão de mundo global do outro. “ [… para mim, você era a medida de todas as coisas.” E é partindo dessa régua chamada pai, um ser que observado da sua perspectiva de filho, de baixo pra cima, parece fisicamente com sua reflexão no espelho. O que tem o papel social de sustentação da sua vida (mesmo que materialmente, o trabalho de reprodução seja socialmente realizado pelas mulheres, fato que surpreendentemente Kafka explora adiante). É através dos laços de afeto, sendo eles amorosos ou odiosos, desse sujeito em relação a você e ao mundo, que se formam muitas das métricas que regem a sua vida subjetiva, com elementos que vão desde os padrões de beleza(estéticos,artísticos,corporais) até as formas com que se expressa a afetividade.
Influência essa que para Kafka não se expressava só pela entidade de seu pai, ou sua presença, mas às próprias ações desse, dentro do núcleo familiar, como o expresso na metáfora: “Da sua poltrona você regia o mundo, sua opinião era certa, todas as outras disparatadas.” De forma que finalmente olhando na mesma altura de seus olhos, já adulto, tem a liberdade de acusar em seu pai o exercício pleno de “tirano, cujo direito não está fundado no pensamento, mas na própria pessoa.” Isto é, a expressão da paternidade não só pelo controle psicológico e simbólico, mas pelo próprio controle da vida cotidiana, das micro relações familiares, através dos comandos, que mesmo sem fundamento lógico ou relacional, têm ampla legitimidade social do patriarcado e do pai como sustentador e protetor da família, como o portador de toda a racionalidade inerente à mente do sujeito masculino.
E é evidente que essas ações e esse modelo de desenvolvimento das relações familiares é insustentável, uma vez que mesmo quando os filhos tentam se adaptar aos requisitos do tirano, como a irmã de Kafka, Ottla, que depois de muitos conflitos com o pai, se mudou para o interior na busca de uma experiência parecida com que a pai tanto se gabava e que foi entendida como uma fuga dos conflitos, mas que que na realidade era um processo de aproximação do pai com base em seu discurso…
O que dentro do debate das masculinidades me faz muito pensar no olhar interseccional das questões e conflitos de todas as esferas, de como a expressão dessa masculinidade heteropatriarcal e da família nuclear, tem em muito a ver com a estruturação do sistema de produção capitalista dentro de uma sociedade moderna, de controles e autoridades.
De como toda a experiência de masculinidade que tanto Kafka, como eu próprio, Kaique, recebemos vem como uma forma de nos preparar para essa sociedade de disputa, competição e controle, onde o núcleo familiar deve ser o único lugar de afetos, mas que convergem para as vontades do ser masculino, que é referendado como o pilar de toda a família ao passo que apaga todos as outras pessoas e suas funções… Que trouxe a Kafka, por sua carta, no início do último século, tantas tristezas, tantos conflitos internos, tantas incertezas, medos, inseguranças e instabilidades e que traz também a mim, Kaique, um século depois.
Mas, definitivamente, muitas coisas separam Kafka e Kaique… Não só o tempo histórico, muitas das configurações sociais do ser masculino, as revoluções da identidade, o contexto social e político, o gradual esvaziamento assim como a maior possibilidade de observação das contradições do núcleo familiar tradicional e claro, o charme de latino-americano bonitão que compete à esse último, mas também a capacidade de não centrar minha crítica ao sujeito e sim nas estruturas.
E é nesse sentido que escrevo esse texto, de que o díficil e avançado exercício de autorreflexão e a porosidade sentimental de Kafka devem ser reconhecidos, nos limites do tempo que escreve. Mas também, de que enquanto homens do século XXI, nos mais diferentes contextos de existência, temos que nos dedicar ao exercício contínuo de desnaturalizar nossos sentimentos e agressividades, de observar as nossas relações paternas, analisando seus reflexos em nós mesmos e que temos de ter um horizonte de discussão e disputa política.
Enquanto esses sujeitos que queremos nos construir, temos de fazer frente aos conservadorismos que contaminam as mentes de jovens como nós, mas também ter o compromisso de construir espaços saudáveis de conversa, de troca, de poder pautar afetividade, sexualidade para fora dos padrões cisheteronormativos e coloniais.
Que possamos pensar na masculinidade como o exercício da liberdade, não só dos nossos próprios corpos, dominados ideologicamente, mas também o de contribuir nas lutas contra o atores de reprodução desse sistema, onde nos cabe entender nosso lugar, enquanto pessoas sob o filtro do masculino, em nossos diferentes contextos… na luta feminista, antipatriarcal, anticolonial, antirracista, antiLGBTfóbica, antifascista… Para que assim, possamos nos dedicar na construção não só de uma nova forma de expressão da masculinidade, mas propriamente, que possamos nos aproximar e cada vez mais materializar a discussão do ser homem em outra forma de organização social, para além do capitalismo, sistema que produz as diferenças de gênero e nos limita em nossa compreensão sobre nós, os outros e o mundo através das relações colonizadas e mercantilizadas. A masculinidade resinificada também é revolucionária.
E assim,
Quem sabe um dia…
Numa dessas manhãs… Numa dessas tantas utopias sorridentes,
Possamos ver “Carta ao pai” como só mais um relato dos tempos de antigamente,
De um passado antigo que em nada tem haver com o presente.
Por Kaique Menezes, um garoto periférico, do extremo sul da cidade dos extremos, geógrafo em formação e poeta marginal.
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Tema de necessária e oportuna reflexão individual e coletiva.