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04 out 2020

Melhor já ir aprendendo alguma coisa

Arte: Heloísa Yoshioka.

O Bozo venceu. Não importa o que vai acontecer com a pessoa dele, se vai ser impedido, removido, interditado, preso, etc.; isso faz pouca diferença neste momento e está longe de ser a questão principal. O país foi bolsonarizado, este é o X da questão. Várias centenas ou quase mil pessoas por dia continuam morrendo de Covid-19, e deve continuar assim por vários meses, ou até piorar. Mas as autoridades e a população em geral simplesmente decidiram que não se importam e que a vida deve voltar ao “normal”, custe o que custar, morra quem morrer. O salve-se quem puder foi legitimado e escancarado, que era o que o Bozo queria desde o começo. Isso foi facilitado, evidentemente, pelo fato de que não se apresentou nenhuma alternativa. A população tentou resistir e se organizar, muitas iniciativas de solidariedade e ação coletiva pela sobrevivência foram tentadas, mas isso não resultou em um movimento geral e organizado capaz de enfrentar a pandemia e a crise que a acompanha.

    E nenhuma das forças políticas, nem a chamada “esquerda”, se preocupou em construir um tal movimento ou formular alguma alternativa (além de fazer “lives” e agitar o “Fora Bozo” nas varandas). Na ausência de alternativa ou enfrentamento real, o Bozo pode não só sobreviver a qualquer tentativa de abreviar seu mandato, como se reeleger tranquilamente, que é o mais provável no momento. Inclusive, com a possibilidade de consolidar já em 2020 um projeto político com implantação eleitoral e capilaridade social em nível nacional. As atenções já estão todas voltadas para as eleições municipais em novembro, sobre as quais não falaremos neste texto. Ao invés de entrar neste tema, achamos que é importante deixar registrada uma avaliação do que aconteceu no país nos últimos meses. A pandemia, a crise econômica que a acompanha e o não enfrentamento de ambas vão deixar consequências duradouras, que certamente vão se refletir nas eleições, mas, muito mais importante do que isso, revelam as condições em que a luta de classes real vai se desenvolver.

    A bolsonarização do país é uma tragédia histórica, e para uma derrota dessas proporções várias explicações são oferecidas. Para alguns a derrota aconteceu em 28/10/2018, quando uma mistura de pessoas maldosas, ignorantes, omissas e mal agradecidas votou contra o PT e elegeu o Bozo. Para outros a derrota aconteceu em 2016 quando uma conspiração maquiavélica do Congresso, judiciário e mídia resultou em um golpe contra Dilma. Para outros, ainda, a derrota começou em 2013, quando grupos ultra-esquerdistas instigaram a juventude a protestar contra o governo democrático-popular e abriram caminho para os coxinhas e minions de verde e amarelo. Para nós todas essas respostas são tentativas de tampar o sol com uma peneira. A derrota começou muito antes, não tem data precisa, e consiste no longo processo pelo qual as lutas dos trabalhadores foram conduzidas para a disputa de aparatos burocráticos, cargos e eleições, ao invés de confluir para um projeto de superação do capital. Esse processo continua em andamento, e enquanto não for revertido, vamos continuar vivenciando tragédias como esta, cujo inventário apresentamos a seguir.

“É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”

Frase popularizada por Mark Fisher, mas também atribuída a Jameson e a Zizek

1.

    Um enfrentamento racional da pandemia exigiria que se batesse de frente com os interesses do capital. Seria preciso garantir que as pessoas pudessem ficar em casa sem perder seus empregos, sua renda e seus direitos, que as micro e pequenas empresas pudessem ficar fechadas sem se endividar, que o sistema de saúde pudesse ser equipado com material para exames em massa, EPIs, medicações, que os profissionais de saúde e dos serviços realmente essenciais tivessem condições de trabalho seguras, etc. Essas medidas eram necessárias desde o começo da pandemia e constituem ainda hoje um programa de ação. Esse programa exigiria um imenso volume de riqueza, que teria que ser expropriada das grandes empresas e dos detentores de grandes fortunas, e usada de maneira racional. Entretanto, o Estado é incapaz de fazer qualquer uma dessas duas coisas, pois ele existe fundamentalmente para defender a riqueza privada e a lógica do capital.

    Na sociabilidade capitalista, a riqueza é produzida socialmente, mas é apropriada privadamente, e o Estado existe para impedir que haja fundos públicos a serviço das necessidades humanas. Os governantes do mundo inteiro fizeram qualquer coisa durante a pandemia, menos permitir que a sociedade se apropriasse da riqueza que ela mesma coletivamente produziu e a utilizasse em favor da sua sobrevivência. Isso seria um precedente perigoso demais, pois poderia fazer germinar nas pessoas a ideia de que pode haver uma forma de organização da produção e da vida que esteja voltada para necessidades humanas coletivamente decididas, e não para a expansão ilimitada do capital. É esse precedente que não pode ser aberto, a linha que não pode ser cruzada jamais. Mas é justamente a linha que devemos cruzar, a exigência que devemos fazer, e que não está tardando, com novas revoltas explodindo por todos os lados, dos Estados Unidos à Bielorrússia e à Colômbia, retomando o ciclo que vinha de 2018 e 2019.

    O capitalismo é incapaz de enfrentar a pandemia, a mudança climática, as crises e guerras que ele mesmo gera e que flagelam cada vez mais cruelmente a humanidade. Superar esse sistema é cada vez mais uma condição para a nossa sobrevivência. As alternativas a ele têm que ser pensadas, discutidas e construídas a partir das lutas contra os seus efeitos, dentre os quais, a própria pandemia. Não podemos contar com o Estado, não apenas no Brasil mas em termos globais, pois ele é sempre um instrumento do capital. Como antecipamos em texto anterior, em abril, o Estado iria falhar no enfrentamento da pandemia, e falhou miseravelmente. Centenas de milhares de mortes no mundo inteiro comprovam esse fracasso. Mas do ponto de vista do capital, ao contrário, não há fracasso nenhum, a pandemia foi um grande sucesso, pois nesse período as fortunas dos bilionários aumentaram ainda mais escandalosamente.

    Na tentativa de encobrir o seu estrepitoso e previsível fracasso, nos próximos meses e anos, os burocratas do Estado (e seus ideólogos de aluguel) vão inventar algum band-aid, algum cosmético para encobrir a visão das falhas mortais do sistema que defendem, coisas como uma renda básica universal ou programas de ajuda aos mais miseráveis. Vão empurrar para debaixo do tapete o aumento das dívidas públicas, para depois encontrar formas de impor essas dívidas sobre os trabalhadores, como sempre fazem. Vão tagarelar sobre uma “reinvenção” do capitalismo, vão fazer belos discursos sobre cooperação internacional, solidariedade, sustentabilidade, busca da paz e outras ideias nobres, ao mesmo tempo em que fecham fronteiras, perseguem minorias e se armam para a guerra. Vão inventar adversários fictícios, como os terroristas, as drogas, os criminosos, para manter a população mobilizada e distraída, enquanto os últimos direitos são subtraídos num esforço nacional pela “austeridade”.

    Os tons e cores dessa farsa vão variar conforme cada país, mas todos vão dançar a mesma música. Partidos de esquerda e de direita vão se alternar no palco, prometendo a salvação nacional. E agora eles têm em sua companhia demagogos oportunistas que vão apontar para a farsa e dizer, com boa dose de razão, que são todos iguais, nada muda nunca, o sistema está podre, etc., apenas para sordidamente abrir caminho para violências sádicas e pilhagens em benefício próprio. E a militância de esquerda, incapaz de influenciar seus partidos, vai se descabelar com a incapacidade de propor uma alternativa a esse sistema, aprisionada que está aos seus pressupostos fetichistas, enquanto vê as massas aderirem aos demagogos.

“Se você não está confuso, está mal informado”

Revista General, década de 1990

    2.

    O Brasil constitui um caso à parte, pois aqui não se trata de um simples fracasso em enfrentar uma pandemia, mas, como discutimos em texto anterior, da intenção deliberada de usar a pandemia para impor uma regressão social brutal e obrigar as pessoas a aceitar a disjuntiva impossível entre morrer de fome ou arriscar-se a morrer de Covid-19. Essa disjuntiva foi aceita, bem como as mortes, que agora são recebidas com indiferença (não pelas pessoas que perderam seus entes queridos, mas pela opinião pública oficial). Também foi aceito que não haveria alternativa dentro da própria economia capitalista a não ser deixar que milhões de pequenas empresas tivessem quedas drásticas de faturamento, explosões de endividamento ou mesmo que fechassem as portas, de um lado, e de outro, que dezenas de milhões de pessoas ficassem sem salário ou outro tipo de renda e expostas à fome, porque o Estado brasileiro não poderia mover uma palha em seu socorro. O Estado não poderia intervir de outra forma, a não ser através do mísero auxílio emergencial, do qual o governo federal agora conseguiu se apropriar de maneira oportunista.

    Não houve alternativa a isso porque nenhuma força política se atreveu a colocar em discussão um plano que realmente batesse de frente com os interesses do capital, como dissemos. Colocar um plano anticapitalista em pauta não significa desfilar na Avenida Paulista com uma faixa dizendo “ditadura do proletariado”, como fez o POR, mas mobilizar os trabalhadores para que lutassem pelas medidas concretas como as que foram listadas no início da seção anterior. A faixa do POR só serviu para encher de orgulho os seus próprios militantes, pela demonstração de sua fidelidade ao credo, mas em muito pouco contribuiu para fazer avançar a luta, nem muito menos o próprio conceito que essa faixa representa, ou em certo sentido até o prejudicou. Correndo o risco de ser injusto com o POR ao tomá-lo como exemplo, esse episódio é mais uma demonstração de que, para certos segmentos da militância, talvez para a maioria, a defesa de um nome, de uma palavra de ordem, de um texto literal, de uma bandeira, de um ícone, de um artigo de fé, de uma adesão simbólica a um discurso, a uma pura ideologia; é mais importante que as medidas concretas para a transformação da realidade, independentemente do nome que elas tomem (os autores da Ideologia Alemã, enquanto isso, se reviram nos túmulos).

    Como não houve luta pelas medidas concretas necessárias ao enfrentamento da pandemia, porque isso exigiria uma mobilização da classe trabalhadora, tivemos que contar com uma quarentena parcial implantada pelas instituições do Estado não controladas pelo Bozo. A quarentena parcial evidentemente não resolveu o problema, e a solução bolsonarista se impôs. Pouco adiantou aos governadores e prefeitos, com a cobertura do legislativo, do judiciário e da imprensa, decretarem uma quarentena parcial, que estava condenada a fracassar, porque pelo menos metade da população não pôde ficar em casa e ter sua sobrevivência garantida, como a outra metade pôde, pelo menos por um período. Meia quarentena, para o vírus, é a mesma coisa que quarentena nenhuma. Fazer meia quarentena, protegendo apenas metade da população, e abandoná-la muito antes de se tornar seguro, provocando ainda o colapso da economia, evidentemente salvou vidas, mas era algo que não tinha fôlego para permanecer, porque não tinha recursos para se sustentar. Obter esses recursos, num país pobre, que não tem como se apropriar de riquezas pilhadas de outros, exigiria medidas anticapitalistas, que nenhuma dessas forças seria capaz de adotar.

    Mas o simples fato de que essas forças tenham esboçado a intenção de combater a pandemia serviu para que os bolsonaristas pressentissem o perigo do comunismo, lá no fim do túnel. Quando os minions acusam todo e qualquer opositor de “comunista”, isso não é um simples delírio (pelo fato óbvio de que não existe movimento comunista hoje, e todas as forças políticas organizadas e instituições que hoje enfrentam o Bozo são pró-capitalistas), mas uma confissão involuntária, subliminar, produto de paranoia irrefreável, de que apenas o comunismo seria uma ameaça real ao seu projeto. O mais leve vestígio de dignidade humana recebe deles o nome de comunismo, o que deveria ser indicativo de que não há outra forma de conquistar alguma dignidade para a humanidade a não ser exatamente através do comunismo. Isso para não falar em emancipação real, que partiria de uma organização da vida baseada em necessidades humanas coletivamente decididas, superando o fetichismo do dinheiro e da propriedade privada, que os minions fanáticos defendem. Eles pressentem que essa verdade pode se tornar óbvia, e esperneiam histericamente contra qualquer possibilidade de que isso aconteça, mesmo quando seus adversários não têm a menor intenção de se mover um milímetro nessa direção.

    Os representantes das instituições do Estado, que não têm absolutamente nada de comunistas, bancaram a quarentena meia boca e uma oposição de fachada ao genocídio bolsonarista, esperando talvez que a responsabilidade pela tragédia da pandemia fosse creditada ao presidente. Esse cálculo político saiu pela culatra, pois essas instituições ficaram com a responsabilidade pela paralisação da economia, enquanto que o Bozo ficou com as mãos limpas para dizer que a vida deve seguir em frente, porque não há nada a se fazer (e ainda ficou com o mérito do auxílio emergencial ao qual se opôs!). Uma vez que tais instituições em hipótese alguma dariam aqueles passos que caberia a uma mobilização dos trabalhadores exigir (mobilização que também não houve), a sua solução meia boca para a pandemia acabou sendo pior para a sua própria imagem. Do ponto de vista dessas instituições, em sua disputa com o bolsonarismo pelo controle do Estado (e não há nada mais em disputa entre eles, não há nenhuma preocupação com as vidas humanas), meias medidas são piores que medida nenhuma. Não enfrentar a pandemia, não mobilizar os fundos públicos necessários para isso, não enfrentar o capital, coisa que de fato não poderiam fazer, resultou em que não houvesse outra alternativa a não ser aceitar que a vida tem que continuar, que é o que o Bozo defendeu desde o começo.

“O insuportável é que nada é insuportável”

Arthur Rimbaud

    3.

    O governo apostou que o lapso entre a vivência empírica da grande maioria da sociedade, a sua realidade imediata, e a informação sobre essa realidade tal como é fornecida pelos meios de comunicação convencionais, seria grande o suficiente para comportar qualquer espécie de falsificação, e ganhou a aposta. Na falta de informações confiáveis, qualquer narrativa pode ser viabilizada. As mortes de centenas de pessoas por dia, equivalentes à queda de três ou quatro aviões lotados, não causaram a mesma comoção que a queda espetacular de um avião de verdade, por estarem acontecendo em ritmo de conta-gotas e em leitos de UTI e hospitais isolados. A (in)sensibilidade social foi cuidadosamente ajustada para ignorar esse genocídio em câmera lenta. Depois de mais de seis meses da chegada da pandemia ao Brasil, existe uma espécie de regressão ou recalque em massa, uma tentativa de amnésia coletiva forçada para fazer de conta que nada aconteceu e tentar reencontrar a vida “normal” que existia antes. 

    Para além de certas bolhas virtuais, não houve qualquer reflexão ou cogitação de alternativas. Não houve mudança, não houve conscientização, não houve aprendizado, não houve catarse. Todo o esforço para salvar vidas, proteger-se e proteger o próximo, que uma parte da população empreendeu, resultou em derrota, porque, no final das contas, a vida teve que voltar ao “normal”, os shopping centers tiveram que reabrir e o futebol teve que recomeçar, a despeito de que as pessoas continuem morrendo. Toda a ideia de solidariedade que chegou a ser levantada foi desmoralizada e lançada no ridículo pela volta do “novo normal”, que inclui várias centenas ou quase mil mortes por dia no país, por mais seis meses ou um ano, até que haja vacina ou cura. Fadiga de confinamento, exaustão, ressentimento e diversas neuroses proliferam entre as camadas sociais que tiveram ou ainda têm a oportunidade de ficar em quarentena, e uma frieza brutal está sendo cultivada entre os que não tiveram tal chance (na verdade já vem sendo cultivada há muito tempo, e de maneira bastante lucrativa). Como dissemos, a vida foi escancarada como uma guerra de todos contra todos, no novo Brasil bolsonarizado.

    Havia no ar por parte desses setores mais progressistas uma expectativa vaga de que algum aprendizado fosse tirado da pandemia, de que alguma reflexão fosse feita e alguma mudança fosse provocada. Apoiado nas previsões da ciência de que o número de mortos seria muito grande caso não fossem tomadas medidas necessárias, havia o raciocínio de que a não adoção dessas medidas e a ocorrência das mortes, que tragicamente acabaram se confirmando, fosse provocar uma grande comoção social, um choque insuportável. Iria se tornar óbvio que o Bozo era o responsável pelas mortes e pela miséria, e portanto as pessoas iriam exigir a sua derrubada. Mas ele não só se safou da responsabilidade pelas mortes como ficou com o mérito de ter garantido o sustento das pessoas por meio do auxílio emergencial (que agora parece ter adquirido vida própria). As coisas só são óbvias para quem as enxerga com um mesmo aparato conceitual e perceptivo. Para quem raciocina em outros termos e se preocupa com outras questões, como a sobrevivência básica, a história foi diferente.

    Por isso não houve choque nem comoção, e as expectativas daqueles que raciocinavam nesses termos se frustraram amargamente. De nada adiantou terceirizar para o vírus a tarefa de organizar e conscientizar pessoas. Sem o trabalho corpo a corpo, a luta ombro a ombro, o debate olho no olho, não existe organização e conscientização possíveis. Na ausência desse trabalho, o vírus não fez o que os progressistas esperavam dele, não provocou revolta, mobilização, vontade de agir, disposição para se organizar. Ao ter essa expectativa contrariada, restou para os que a alimentavam apenas o luto, a apatia, o niilismo. Ou pior, a indignação moral contra os comportamentos individuais dos outros, das pessoas que “insistem” em sair na rua, como se se tratasse de simples escolha pessoal delas ou indisciplina. Esses setores evidenciam assim sua completa cegueira para as causas sistêmicas da impossibilidade de que, dentro dessa sociedade, houvesse uma quarentena real e uma reorientação total da economia sem que fosse travada a necessária luta massiva para isso.

    No feriado do 7 de Setembro, houve uma revolta generalizada nas redes sociais progressistas com a aglomeração das pessoas nas praias. É verdade que toda aglomeração deve ser evitada e que há muito de irresponsabilidade e negligência nos que se reúnem por diversão. Mas o problema é que essa irresponsabilidade ganha um destaque muito maior do que as aglomerações no transporte público. A revolta contra as praias lotadas não existe quando se aceita, em silêncio conivente, que uma boa parte desses mesmos banhistas estão sendo obrigados a se aglomerar diariamente e em condições mais perigosas no aperto do transporte público para trabalhar. Para esses revoltados as questões decisivas são as opções de comportamento individual, dentro das quais eles podem estar assegurados de que fazem o “certo” enquanto os outros é que agem “errado”, e podem assim exercitar a sua indignação moralista contra esses outros e se sentirem devidamente recompensados em sua vaidade vazia de pessoas “politizadas”. Não lhes passa mais pela cabeça que as opções de comportamento possam estar determinadas por relações sociais estruturais, que possam ser conhecidas e combatidas. Raciocinam com base na premissa de que “o pessoal é político”, desconsiderando porém que o “político” não é apenas o pessoal e se compõe de muitas outras dimensões. Não entendem mais o que é o capitalismo e a luta contra ele, ou desistiram completamente dessa luta.

    Na impossibilidade de atuar sobre as causas sistêmicas e estruturais dos problemas, essas pessoas se refugiam nas suas convicções ideológicas. Mas de nada adianta ostentar as credenciais da defesa da democracia, da cidadania, dos direitos humanos, da tolerância, do politicamente correto, do progresso, da razão, do bom senso, da ciência, da universidade pública, dos serviços públicos, etc. Tudo isso se torna um conjunto de palavras vazias se carece da força social organizada para os transformar em realidade. Essa força social já não existe, porque bateu em retirada há muito tempo, e não tem substituto à vista. A defesa mínima de patamares civilizatórios de sociabilidade, antes tidos como básicos ou desejáveis, está ameaçada pelo agravamento das condições materiais em meio a uma crise societal gigantesca, e pela ausência de uma força social disposta a lutar por eles. Aferrar-se a essas palavras com a convicção de que a sua mera defesa verbal confere superioridade moral automática fornece um espetáculo deprimente de impotência e deslocamento por parte dos seus adeptos.

“A política não é uma grande cogitação de guiar nossos destinos;

porém uma vulgar especulação de cargos e propinas”

Lima Barreto

    4.

    Não existe oposição de fato ao bolsonarismo. Do ponto de vista da estrutura do Estado, existem os demais poderes, o legislativo (Congresso), o judiciário (STF), e os demais níveis da federação (governos estaduais e prefeituras), e do ponto de vista político existem os demais partidos e a imprensa, os quais se limitaram a uma oposição de fachada. O Bozo declarou guerra a todos eles, atacou-os sistematicamente desde o começo do mandato, e não foi diferente durante a pandemia. Em uma aposta negacionista arriscada, mas coerente em sua brutalidade, ele mobilizou permanentemente sua base pessoal de apoio por meio das mentiras e falsificações mais escabrosas e delirantes nas redes sociais, visando deslegitimar o chamado “consenso sanitário” das demais instituições e sabotar o enfrentamento da pandemia em todos os seus aspectos. A despeito dessa postura desonesta do presidente e seu núcleo fiel na disputa, essas forças políticas não se decidiram a pôr freios na destruição do Estado e da sociedade. Fizeram os seus cálculos oportunistas e buscaram cada uma a seu modo uma maneira de conviver com o Bozo e dividir com ele alguma fração da gestão do poder.

    Nenhuma dessas forças construiu o movimento necessário para remover o Bozo, por mais que ele tenha cometido crimes de uma profundidade muito mais grave e num volume infinitamente maior do que aqueles que foram pretexto para remover Dilma alguns anos atrás. O amontoado de pedidos de impeachment na mesa da presidência da Câmara só serve para que Rodrigo Maia aumente o preço a ser cobrado por sua facção para colaborar com o Bozo. Isso deveria servir como lição de que processos como impeachment, cassação de chapa, julgamentos do STF, etc., não dependem de uma leitura técnica e fria do texto da lei, não dependem de existir ou não provas, não dependem de um conceito abstrato de certo ou errado; mas na verdade se baseiam na força política para travar a disputa. Para que houvesse força política para remover o Bozo, um movimento nessa direção teria que ser deliberadamente construído para tanto, mas não houve o mais remoto vestígio de algo nessa direção.

    Esse movimento que não houve ficou emparedado entre a impossibilidade de que essas forças políticas convocassem a massa da população para a luta, de um lado (porque a população poderia colocar em pauta demandas materiais que atacassem os interesses do capital), e a impossibilidade de que os militares que dão sustentação ao Bozo se descolassem realmente dele (para além de algumas fricções superficiais) e concordassem com a sua remoção (por mais que tivessem a opção de usar o vice-presidente e que, ao não fazê-lo, atraíssem sobre si as consequências de um possível fracasso do Bozo, com cujo destino vincularam seu projeto), de outro. Sem essas forças materiais e sem disposição para se chocar com a sua base de apoio (que se mantém minoritária, mas fiel apesar de tudo, independentemente das flutuações mais gerais da popularidade), a oposição institucional ao Bozo se limitou às patéticas notas de repúdio.

    O movimento para a remoção do Bozo não foi construído, e as razões fundamentais para isso não têm a ver apenas com as disputas internas entre as forças participantes do sistema, as quais ocupam a pauta diária da imprensa. Não se trata apenas de que os titulares dos cargos dessas instituições ou os integrantes dos partidos que a elas postulam se preocupam de maneira imediatista e fisiológica com a fatia do bolo que poderão obter com os acordos e o acesso a verbas. Não se trata apenas de que os líderes políticos dessa oposição presumida, mas ainda inexistente, foram incapazes de chegar a um acordo devido a vaidades e disputas de ego para saber quem lidera os “70%” (embora isso exista). Não se trata apenas do ressentimento mútuo entre tucanos e petistas, que se expressa na intransigência para perdoar o PT, como foi sugerido pela Globo, de um lado, e de outro, para incluir no arco de alianças figuras como Dória, Gilmar Mendes, Reinaldo Azevedo, Felipe Neto, Luciano Huck, etc.

    A questão é que a oposição carece de uma plataforma viável, porque essa plataforma exigiria medidas que nenhuma dessas forças é capaz de tomar, seja aquelas que citamos como básicas para enfrentar a pandemia, seja as que serão requeridas para reativar a economia na monumental crise em desdobramento. Um tal movimento não foi construído, porque as forças políticas em disputa não podem contrariar os interesses de classe que determinam a sua própria existência. Não podem defender o confisco da riqueza que seria necessário para manter a vida das pessoas durante a pandemia. Por isso, precisam defender coisas abstratas e completamente inúteis como a “democracia”, a harmonia entre as instituições, a separação entre os poderes, a constituição, etc. O mínimo denominador comum da oposição é tão mínimo que se mostra inútil e irrelevante na prática. Aderir a essa plataforma vazia é mais uma demonstração da impotência dos setores que citamos na seção anterior.

    Essas instituições, seus ocupantes, postulantes e defensores nunca serviram para nada quando a população estava sendo flagelada pela pandemia, pela crise econômica e pela repressão estatal. Agora, é muito tarde para que queiram trazer a população a seu favor. Essas forças sabem disso e não estão realmente querendo mobilização nenhuma, ademais porquê, como dissemos, sabem que a população mobilizada iria colocar em discussão demandas próprias, opostas às do capital. Diante desse perigo, é melhor encontrar formas de conviver com o Bozo. No seu conjunto, não querem confronto e preferem tentar digerir o bolsonarismo, rebaixando-se aos seus padrões, aos seus métodos, para que cada facção siga abocanhando alguma fatia do bolo, enquanto apunhala as outras pelas costas.

“Havia um trabalho importante a ser feito e todos tinham certeza de que alguém o faria.

Qualquer um poderia tê-lo feito, mas ninguém o fez.

Alguém zangou-se porque era um trabalho de todos.

Todo mundo pensou que qualquer um poderia fazê-lo, mas ninguém imaginou que todo mundo deixasse de fazê-lo.

Ao final, todos culparam alguém quando ninguém fez o que qualquer um poderia ter feito.” Anônimo, afixado em quase todos os escritórios

    5.

    As facções políticas que compõem o tal sistema, naturalmente, incluem o próprio PT, que está tão somente interessado em faturar eleitoralmente com o eventual desgaste do atual governo, para tentar voltar ao comando do Estado. O PT dirige diretamente os principais movimentos sociais do país (CUT, MST, UNE, ONGs, veículos de comunicação, acadêmicos, etc.). Além disso, conta também com o apoio de outros movimentos sociais (MTST, movimentos de minorias), e daquelas organizações que eram a “oposição de esquerda”(sic) ao seu finado governo, como PSOL, PSTU, PCB, PCO, além de outros que surgiram depois ou que não são eleitoralmente legalizados, como UP, PCR, MRT, POR, e uma miríade de organizações menores. Praticamente todas, na disputa eleitoral, aliam-se ao PT ou lhe declaram voto crítico (até mesmo alguns anarco-petistas). São politicamente satélites e incapazes de qualquer mobilização independente. Todas essas forças em torno do PT não serviram para constituir uma oposição real ao Bozo, distinta da oposição institucional que discutimos acima.

    Isso que se chama de “esquerda” virou um reles puxadinho do PT, que por sua vez virou um puxadinho da oposição burguesa, que é centralizada pela Globo. Por fora da pauta imposta pela grande burguesia, não existe força independente. Os órgãos da imprensa determinam a pauta e decidem o que é aceitável discutir, e a “esquerda”, de maneira passiva e reativa, aceita debater essa pauta, porque não é capaz de impor nenhuma outra. O editorial da Falha de São Paulo sobre o teto de gastos ou a capa da Veja contra a extensão do auxílio, evidenciaram o programa do capital e as margens de ação que se concedem para quaisquer forças políticas. Dentro dessas margens, o Bozo representa uma espécie de repaginação degradada das formas de gestão da pobreza desenvolvidas nos mandatos petistas. O fato de que não tenha surgido uma oposição unificada contra o governo atual, por mais que haja discursos exaltados contra o fascismo(sic), mostra que não há nenhuma barreira fundamental, nenhuma diferença de qualidade entre as forças em disputa. O Bozo não foi expulso do jogo, como muitos torciam, ele foi assimilado como mais um dos jogadores. O partido da grande imprensa se presta ao papel de tentar separar o programa do governo (dilapidação do Estado e espoliação voraz da população pelo grande capital) da pessoa do Bozo, imaginando que pode ficar só com o primeiro e descartar o segundo.

    Se havia algum setor do qual se esperava que pudesse partir algum tipo de ação ou mobilização, ou mesmo um discurso no sentido do enfrentamento da pandemia e da crise, era desse campo da “esquerda”(sic) na órbita do PT. Não houve. As torcidas organizadas chegaram a tentar impulsionar alguma mobilização, que gerou alguma repercussão e discussão, mas foi rapidamente administrada e extinta pelos bombeiros de plantão, que a transformaram em comícios eleitorais de Boulos, até que definhassem por si mesmas, como era de se esperar. Além das tentativas embrionárias de ajuda mútua e auto-organização que mencionamos no início, o único vestígio de lucidez e inovação no contexto da quarentena foi o dos setores que impulsionaram a luta dos entregadores de aplicativos, traçando uma linha de enfrentamento de classe que expõe a brutalidade dos novos regimes de exploração (ver aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aquiaqui, aqui e aqui,).

    Não existe organização dos trabalhadores hoje no país. A reforma trabalhista de 2017 acabou com o financiamento dos sindicatos via imposto sindical. Com isso, sua arrecadação caiu em cerca de 96%. Qualquer empreendimento que perca 96% do seu faturamento está falido e condenado a desaparecer. É o que vai acontecer com a estrutura sindical no Brasil. A autópsia dessa morte por definhamento vai revelar que antes de falecer essas estruturas já não passavam de uma casca vazia. Aparatos completamente inúteis do ponto de vista da luta, parasitários, destinados a sustentar uma camada de algumas centenas de milhares de burocratas. O fato de dependerem do imposto sindical mostra que não tinham respaldo dos trabalhadores para se financiar de maneira independente. Isso foi demonstrado pela inexistência de qualquer ação concreta desses trabalhadores, seja para defender os próprios sindicatos, seja para apoiar as pautas vazias dos seus dirigentes (“não vai ter golpe”, “Fora Temer”, “Lula livre”, etc.). Se houvesse a tentativa desses aparatos de mobilizar, não haveria adesão, porque há muito tempo essas instituições voltaram as costas para a classe que supostamente deveriam representar, mas que na verdade parasitam. Os trabalhadores não reconhecem essas estruturas como suas, como espaços de participação, de organização e de luta, mas como prestadoras de serviços, pilotadas por profissionais pouco ou nada confiáveis, os “sindicalistas”.

    Na verdade, a frase inicial do parágrafo anterior requer, portanto, uma retificação: há muitas décadas já não existe organização dos trabalhadores no Brasil. Mesmo nos momentos de ascenso das lutas, os sindicatos no Brasil nunca deixaram de ser estruturas para-estatais, destinadas a facilitar o gerenciamento da força de trabalho, impedindo a sua organização autônoma. Já tivemos a ocasião de examinar essa estrutura em outro texto. Dois anos depois daquele texto, a esterilidade e inutilidade de tal estrutura se apresentam a olhos vistos. A ilusão de que o PT tinha “bases” se desfaz na realidade de que possui apenas um eleitorado (volúvel e em definhamento). A ilusão de que conquistando aparatos se organiza a classe deixou as organizações da finada oposição de “esquerda”(sic) a ver navios quando os aparatos deixaram de existir ou de ter qualquer relevância. Agora, quando se trata de organizar a classe para a luta, não conseguem imaginar como fazer isso sem uma estrutura burocrática que possam aparelhar.

Arte: Heloisa Yoshioka.

“O Brasil tem um grande passado pela frente”

Millor Fernandes

    6.

    Voltamos ao período pré-Vargas, em que a questão social era apenas um “caso de polícia”, nas palavras cristalinas de um presidente de então. Ainda não havia a poderosa máquina de cooptação constituída pelos sindicatos para-estatais financiados via imposto sindical, com dirigentes estáveis e profissionalizados, composta de federações, confederações e centrais, com participação em câmaras setoriais e estruturas de gestão tripartite, com acesso aos fundos de pensão, aos conselhos e cargos públicos, etc. Foi essa máquina que o PT dirigiu e aperfeiçoou por décadas, que a “oposição de esquerda”(sic) mesquinhamente ambicionou poder capturar ao menos parcialmente, e que serviu de modelo para a profissionalização (burocratização) de todos os demais movimentos sociais no país. Essa estrutura de gestão auxiliar da força de trabalho foi dispensada pelo capital, assim como o projeto de nação que foi esboçado na era Vargas.

    O “projeto” para o Brasil agora é que sejamos uma fazenda de soja para exportação, movida a grilagem de terras, genocídio indígena, derrubada de florestas, destruição ambiental, trabalho semi-escravo, açoite de jagunços e milícias, exortações de pastores e recortada por imensas favelas. Neste projeto de país não há lugar para sindicatos e movimentos sociais, pois não há necessidade deles. Essa estrutura de aparatos burocráticos que está sendo descartada é parte da maquiagem civilizatória que derreteu sob o impacto das crises econômicas sucessivas que atravessamos e à qual a opinião pública progressista se apega ainda como distintivo derradeiro da sua auto-imagem em acelerado desfazimento. A nova estrutura de gestão será operada diretamente por milícias (fardadas ou não) e pastores. Não é coincidência que aqueles partidos eleitorais da “esquerda” estejam também recrutando esses quadros da repressão como candidatos, o que evidencia o seu papel de instrumento auxiliar da gestão da força de trabalho e contenção das lutas.

    Outra retificação neste ponto é necessária: a questão social nunca deixou de ser caso de polícia. Assassinato, encarceramento em massa, tortura e agressão são os métodos de gestão de populações excedentes, executados por forças armadas e principalmente polícias, que foram se aperfeiçoando desde a redemocratização, atravessando imperturbável e indistintamente os mandatos tucanos e petistas, e que se mostram com toda crueza agora que a ilusão de um projeto de país se desfez. Mas se o projeto varguista existiu e com ele a estrutura de cooptação representada pelos sindicatos, isso foi resultado de uma luta de classes que também sempre seguiu existindo. A cooptação do movimento dos trabalhadores na forma de uma estrutura sindical para-estatal é uma evidência de que existia um movimento de trabalhadores a ser cooptado. Existia um movimento de trabalhadores que era um obstáculo para a burguesia, que tinha que ser enfrentado de diversas formas, inclusive a cooptação, porque apenas a repressão policial não era suficiente para contê-lo.

    Mesmo enfrentando a polícia da época, a classe trabalhadora existia e lutava. Antes que fossem criados os sindicatos para-estatais varguistas, havia sindicatos independentes, classistas, combativos, havia fundos de ajuda mútua, caixas de assistência e instituições de previdência geridos pelos próprios trabalhadores, havia publicações, jornais, círculos de leitura e socialização. Havia um projeto de organização da classe, que buscava desenvolver a solidariedade e a consciência, que lutava por melhorias e pela transformação da sociedade. Ao contrário da mitologia do velho Partidão e do PT, havia luta de classes no Brasil antes que seus “brilhantes” dirigentes nos levassem a derrotas fragorosas com seus projetos de conciliação. Podemos repensar a luta de classes no Brasil e redefinir um projeto, desde que os setores que ainda têm alguma lucidez dentro disso que se costuma chamar “esquerda” estejam dispostos a aprender alguma coisa.

Por Granamir.

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