Publicado em 07/04/2020 por Angry Workers e traduzido por Granamir.
Reflexões sobre “Desenvolvimento Desigual e Combinado” e “Composição de Classe”
De uma perspectiva que coloca a classe operária no assento de condutor da emancipação social nós nos encontramos em uma situação contraditória. Durante as últimas décadas, considerando-se como pessoas que têm que vender sua força de trabalho para sobreviver, a classe operária se transformou em maioria no planeta. Quando Marx, de sua poltrona, convocou os “operários do mundo inteiro” a se unir, operários eram na verdade, globalmente, uma pequena minoria, ilhas num mar de artesãos independentes, camponeses e trabalhadores forçados. Apenas hoje nós podemos falar realmente em uma “classe operária global”, mas no mesmo grau em que “ser operário” se tornou um fenômeno global, “a classe operária” parece ter desaparecido.
Algumas pessoas vão saltar para a conclusão de que essa invisibilidade se deve à sua falta de agência política, ao fato de que a classe operária não age mais como uma força política consciente. Embora isso seja verdade, é tautológico, quer dizer, isso não responde a questão de porquê os operários parecem ter perdido a coesão social e política para agir como uma classe.
Outras pessoas reagem a essa invisibilidade declarando que a classe operária de hoje é muito fragmentada para coalescer em uma força social. Eles caracterizam a classe operária largamente pelos acréscimos massivos em emprego informal, desemprego de pessoas qualificadas, empregos precários e locais de trabalho pequenos e frequentemente não industriais e por estarem em movimento entre áreas rurais e urbanas ou entre países. Eles escrevem a respeito de colchas de retalhos e separação. Mas ao invés de reconhecer que seus esforços individuais para analisar um assunto tão vasto como a “classe operária global” estão chegando a um limite, eles inventam categorias novas e estilosas como a “multidão” ou o “precariado”. Entretanto, nossa reação a esse ponto de vista é primariamente empírica. O que dizer do crescimento massivo em indústrias e cadeias de suprimentos? Ao invés de atomização, nós encontramos uma contra corrente de “concentração” industrial, a reformatação de locais de trabalho maiores e a “industrialização” do trabalho em muitos setores. Agências bancárias estão sendo substituídas por centrais de tele atendimento massivas, livrarias por armazéns da Amazon, pequenas clínicas por grandes hospitais e uma miríade de pequenas manufaturas por complexos industriais massivos como Foxconn.
A ideia de que o mundo está dominado por população excedente, que está largamente excluída da produção de valor é igualmente falha. Qualquer um que tenha um pouco de percepção do interior das modernas economias de periféricas saberá que, por exemplo, quase metade das amêndoas consumidas nos Estados Unidos são processadas em favelas no norte da Índia ou que a produção de autopeças se espraia para o interior de favelas mexicanas. Alguns vão apontar que nós encaramos uma “classe operária do norte e do sul”, dizendo que o norte global foi bastante “desindustrializado”, enquanto que o sul se tornou o chão de fábrica do mundo. Em um nível empírico isso é igualmente questionável. Nós podemos ver que centros industriais e áreas de marginalização podem ser encontradas nas duas metades do globo. Uma análise anti-imperialista que esteja baseada seja na ideia de que certas áreas operam como meras fornecedoras de matérias-primas ou de que certas áreas ganham lucros extras de trocas desiguais com regiões menos desenvolvidas faz menos sentido nos dias de hoje. Países como China, Arábia Saudita ou Índia também teriam que ser classificadas como “imperialistas” quando se trata de arrancar minerais ou terras na África, por exemplo, e a Suécia seria o país mais imperialista do mundo quando se trata de lucrar por meio de trocas desiguais.
Tudo isso não é uma questão de quem tem o monopólio sobre a forma correta de interpretar estatísticas. Questionar respostas fáceis tais como a “multidão” ou a divisão “norte e sul” puramente através da empiria também permanece limitado devido ao fato de que, apesar da tendência de um grande número de operários de se reunir em locais de trabalho e através de cadeias de suprimento, as lutas que temos visto demonstram sim uma certa separação. Desde o começo dos anos 2000 nós temos visto protestos de rua e ocupações de praças que são lideradas não por operários que já eram de qualquer forma organizados em grupos por trabalharem juntos em empresas e setores específicos, mas por “precarizados pobres” que criticam um estado corrupto e repressivo de austeridade. Entretanto, nós podemos ainda assim traçar uma “onda global de greves” no pano de fundo desses movimentos, primariamente nas novas indústrias na China, Índia, Brasil, mas também naqueles lugares em que os protestos de rua e ocupações de praça tiveram lugar, tais como Egito e Tunísia durante a assim chamada “Primavera Árabe”.
Essa separação entre os “precarizados pobres nas ruas” e as lutas operárias mais organizadas refletem divisões materiais reais, não apenas uma falta de consciência política. Mesmo assim, até que ambos se juntem, os dois lados continuarão sendo contidos e desperdiçados. De um lado, os protestos de rua foram derrotados com um vácuo político, pois enfrentar a polícia, ocupar espaços públicos e mesmo derrubar um governo não resolvem os problemas materiais de ser um operário pobre. De outro lado, as greves podem ter sido capazes de obter demandas materiais e impactar o poder estatal, mas não se desenvolvem em um ponto focal social. Diferentemente de ciclos revolucionários precedentes, as greves não se desenvolvem em uma escala em que a interrupção da produção possa demonstrar à classe operária ampliada que esse processo de produção poderia ser tomado de modo a mudar toda a forma como organizamos nossas vidas.
Ademais, apesar dos movimentos de protestos eclodirem em vários lugares simultaneamente, mais recentemente no Chile[1], Bolívia, Equador, Sudão, Iraque, Irã, etc., os movimentos permaneceram largamente focados em seus governos nacionais. Nem a condição global de serem um operário precário e móvel, nem a integração global da produção sozinha pareceram ter uma força coesiva suficiente para ligar esses movimentos internacionalmente[2].
A reação da esquerda a esses movimentos e sua natureza contraditória tem sido esquemática. Defrontada com o desafio de desenvolver estratégias políticas para superar os impedimentos materiais para uma unificação internacional das lutas da classe operária, muitos na esquerda buscam contornar esses desafios ao promover uma “unificação eleitoral” e uma via parlamentar rumo à mudança social gradual. Nós temos escrito extensivamente sobre as insuficiências dessa estratégia[3]. Portanto, aqui é suficiente dizer que essa estratégia não leva em conta o fato de que muitos dos movimentos recentes da classe operária aconteceram em países do “socialismo do século XXI”, onde a esquerda nos governos nacionais não foi capaz de superar os constrangimentos estruturais impostos pelo capitalismo global, e no processo, enfraqueceu os movimentos da classe operária em termos de sua independência e autonomia.
Outra reação da esquerda aos limites dos movimentos é a negação e a recusa a considerar a necessidade de debate estratégico. Aqui podemos distinguir três tendências principais: insurrecionalismo niilista, quer dizer, nós só precisamos lutar mais duramente e mais radicalmente; programatismo irrecuperável, quer dizer, nós temos que repetir nossa mensagem de unificação da classe operária até que todo mundo a entenda; e diligente “continuar militando[I]”, quer dizer, nós só temos que trabalhar mais duro em nossas vizinhanças operárias e locais de trabalho. Para os poucos camaradas que de fato tentam entender o que “a classe operária global” realmente é[4], a moldura conceitual e teórica parece inadequada para lidar com o volume da dados empíricos e múltiplas facetas das vidas e lutas da classe operária global hoje.
Nós temos abordado algumas dessas questões no último capítulo de nosso novo livro “Poder de Classe em Zero Horas”[5], mas nós queremos aproveitar o fato de que muitos de nós no momento têm mais tempo do que o usual para propor um trabalho comum em torno da questão de estratégia. Nós sugerimos quatro passos principais:
1. Revisitar as duas únicas estratégias genuínas da classe operária que vieram dos dois ciclos revolucionários de 1917-1923 e 1967-1979: “desenvolvimento desigual e combinado/revolução permanente” e “composição de classe”.
2. Baseados num entendimento conceitual melhor nós queremos analisar as diferenças materiais regionais e semelhanças dos movimentos recentes na França, Chile, Sudão e a onda de greves na China. Nós achamos que essas quatro regiões podem servir como arquétipos da atual composição da classe operária e do capital global, representando diferentes estágios de desenvolvimento.
3. De modo a entender os desafios de uma “tomada” dos meios de produção pela classe operário sob as atuais condições nós queremos nos envolver em uma pesquisa teórica e empírica em a) a divisão de trabalho intelectual e manual e b) a dimensão (internacional) da cooperação, por exemplo, na forma de subcontratação e cadeias de suprimento, em algumas das indústrias essenciais, tais como agricultura, energia, produção de maquinário.
4. Finalmente, baseados em novas percepções dos desafios materiais da unificação da classe operária nós queremos discutir o que uma organização internacional da classe operária poderia significar além de ter um programa histórico comum. Nós queremos discutir como uma tal organização poderia ser útil em termos práticos e estratégicos e o que um “Programa Comunista” poderia significar em termos de medidas, em vez de demandas.
Essas são grandes questões, então não temos pressa e nós queremos tratar delas com o maior número de camaradas que for possível. Se você está interessado em participar do debate, em geral por reuniões via Zoom, mande um e-mail: angryworkersworld@gmail.com
Enquanto isso, nós começamos por marcar algumas posições no primeiro tema da lista acima: revisitar os conceitos de “desenvolvimento desigual e combinado” junto com “composição de classe”. Nós fazemos isso como uma forma de experimentar e tomar o que puder ser útil em ambas para uma moldura conceitual melhor para entender a situação crescentemente complexa de hoje.
1) Revisitando os conceitos de “desenvolvimento desigual e combinado” e “composição de classe”
A história dos movimentos da lança os mais óbvios problemas materiais de unificação, tais como fronteiras estatais, barreiras linguísticas, etc. O problema subjacente, que é frequentemente enquadrado em termos políticos pelos estados nacionais, mas também encontra expressão ideológica em formas religiosas e outras, é o desnível do desenvolvimento capitalista e as divisões subsequentes que isso cria no interior da população operária.
Durante os períodos inciais do capitalismo, o desnível no desenvolvimento significava que o movimento revolucionário tinha que encontrar ideias e práticas para unificar regiões menores ou setores de operários assalariados (industriais) com a maioria quantitativa de artesãos pobres e camponeses ou trabalhadores nas monoculturas sob o regime colonial de escravidão. Também emergia a questão de como as lutas de trabalhadores nos “regimes despóticos” menos desenvolvidos poderiam se relacionar com os movimentos mais avançados da classe operária nas “democracias burguesas”.
Com o desenvolvimento do capitalismo global, o desenvolvimento desigual se expressava largamente como uma divisão entre operários organizados em trabalho industrial e trabalhadores em várias condições fora dos centros industriais. Operários industriais experimentam mais diretamente a natureza coletiva do seu trabalho, assim como o fato de que a produtividade social sob o capitalismo se volta contra aqueles que produzem. Essa experiência é menos imediata entre outros trabalhadores, que vão ao invés disso experimentar os níveis marcantes de desigualdade, consequências do empobrecimento, repressão estatal ou marginalização (doméstica). Sendo um tanto esquemático, operários industriais terão mais probabilidade de desenvolver um senso de poder social coletivo e ideias para transcender o atual modo de produção, enquanto trabalhadores que são mais marginalizados irão mais provavelmente focalizar na necessidade de distribuição de riqueza e/ou em confrontação violenta com as estruturas de poder[6]. Enquanto essas duas experiências permanecerem separadas, não apenas as insurreições vão morrer, mas as condições materiais para a maioria dos trabalhadores estarão solapadas.
Enquanto o desenvolvimento desigual possui um conteúdo político e é administrado pelos estados nacionais até um certo grau, ele é largamente determinado pelo processo de acumulação capitalista e pela luta e classes no seu interior. A tendência geral rumo a concentração urbana e industrial cria os sertões. A reação às lutas operárias pela relocalização e desmantelamento das fortalezas industriais cria os cinturões de ferrugem. O constrangimento geral para encontrar condições mais lucrativas significa que a colcha de retalhos de desenvolvimento e subdesenvolvimento muda constantemente através do globo. Isso tanto impõe barreiras como ritmos conflitantes aos movimentos de classe.
Os revolucionários têm sido capazes de denunciar o absurdo do desenvolvimento e da produtividade sob o capitalismo bem facilmente: os ganhos na produtividade social, por exemplo, através da implementação de novas tecnologias, conduzem ao subemprego para muitos e à exaustão para aqueles que têm trabalho. O subemprego coloca pressão sobre os salários, o que por sua vez significa que apesar do potencial para “trabalhar menos e ter um melhor nível de vida” os operários trabalham mais e são relativamente pobres – relativamente em comparação com o que o estágio de desenvolvimento poderia nos prover, mas frequentemente também relativamente em comparação com as gerações precedentes. Isso é uma propaganda materialista que demonstra que uma sociedade melhor não é apenas uma utopia, mas uma possibilidade real.
Isso é bom como propaganda, mas até um certo grau, não apresenta esperança de realização. Se os dois polos da contradição revolucionária – um aumento na produtividade social por um lado leva a um aumento na pobreza relativa por outro – se encontrarem em uma experiência singular, o sistema explodiria.. O problema é que essa experiência, ao invés disso, é diluída numa classe operária global (quer dizer, diferentes grupos a experimentam em diferentes momentos e de diferentes modos) e mediada pelas medidas dos estados nacionais e ideologias. Essa mediação pelo estado nacional, por sua vez, se tornou o foco da “estratégia” revolucionária, na forma de anti-imperialismo, terceiro-mundismo, movimentos de libertação nacional, etc. Ao focalizar no nível do estado-nação, essas “estratégias” ajudaram a disfarçar as contradições revolucionárias subjacentes do sistema.
Os revolucionários têm sido menos prolíficos quando se trata de forjar estratégias para que os movimentos da classe operária ultrapassem as barreiras (regionais) de desenvolvimento desigual – para além de convocar os operários a se unificar nessa ou naquela organização ou exército do povo. Para falar sem rodeios, o movimento só levou adiante duas diferentes estratégias. Não é nada surpreendente que essas estratégias tenham sido formuladas nos dois principais ciclos revolucionários do século XX.
1. Apoiando-se grandemente em trabalhos precedentes de Parvus/Helphand, a experiência da revolução de 1905 na sequência da derrota contra o exército japonês levou Leon Trotsky a elaborar o conceito de “desenvolvimento desigual e combinado” como base material para uma “revolução permanente”. Sua principal preocupação seria se uma revolução socialista seria possível na Rússia subdesenvolvida e que significação teria a relação com as lutas operárias nos países europeus mais industrializados. Refletindo sobre os resultados da Revolução de Outubro na Rússia em 1917 e os levantamentos revolucionários na China em 1925-1927, Trotsky desenvolveu o conceito mais adiante.
2. O fermento para as erupções sociais de 1969 a 1977 foi a rápida industrialização do norte da Itália nos anos 1950, junto com a migração em massa vinda do sul e a nova organização da produção baseada na linha de montagem que se chocaram com uma classe operária “qualificada” estabelecida com uma experiência histórica profunda de organização comunista. Em seus esforços para entender os relacionamentos entre os núcleos industriais no norte e o papel do subdesenvolvimento no sul da Itália, assim como os novos operários da linha de montagem e a nova geração de engenheiros técnicos, camaradas em torno de jornais como Quaderni Rossi e grupos como Potere Operaio desenvolveram o conceito de “composição de classe”.
Na sequência nós damos uma breve perspectiva de ambos os conceitos e seu contexto histórico. Nós então queremos observar as suas similaridades e diferenças e finalmente discutir em que grau eles têm valor de uso sob as condições globais modificadas do capital e da classe hoje. Nós não temos conhecimento de esforços similares de contrastar esses dois conceitos historicamente, o que primariamente demonstra o quão isoladas as duas tendências políticas – trotskismo e o assim chamado “operaísmo” – permaneceram uma da outra, apesar do fato de que os dois conceitos encontraram um destino muito similar uma vez que foram tirados de um contexto revolucionário e se tornaram fórmulas sociológicas e antropológicas vazias.
* Desenvolvimento desigual e combinado
Marx lançou os fundamentos para o conceito de “desenvolvimento combinado”. Em 1847 ele escreveu (em seu estilo ainda “humanista”):
“Sustentar que cada nação passa por esse desenvolvimento [da indústria na Inglaterra] internamente seria tão absurdo quanto a ideia de que toda nação está obrigada a passar pelo desenvolvimento político da França ou pelo desenvolvimento filosófico da Alemanha. O que as nações fizeram como nações, elas fizeram por toda a sociedade humana[7]”.
Marx estava agudamente ciente do fato de como o desenvolvimento desigual impacta as lutas da classe operária. Nós podemos ver isso em seus escritos sobre a economia escravista dos estados do sul dos Estados Unidos antes da Guerra de Secessão ou sobre a significação das lutas operárias contra o despotismo britânico na Irlanda para os movimentos operários na área colonial central. Enquanto esses escritos podem ainda ser interpretados como mero endosso na “libertação nacional”, esvaziado de conteúdo de classe, Marx foi mais além em sua correspondência com a revolucionária russa Vera Zasulich. Em suas cartas ele estabelece a possibilidade das estruturas coletivas remanescentes do interior da Rússia, a assim chamada Mir ou Obchina, interagindo com as revoluções nas regiões industriais avançadas da Europa ocidental, sendo o melhor de dois mundos convergindo, e o interior russo poderia evitar ter que atravessar o lodaçal do desenvolvimento capitalista. A ideia de que diferentes experiências ou estágios que existem no interior da classe, tais como o desenvolvimento industrial avançado e formas de coletividade horizontal simples, possam se fundir e de que algo novo possa sair disso, é complexa e se perdeu em muitos nas gerações seguintes de “marxistas”. O próprio Marx pode ter contribuído para isso, por exemplo, ao retratar o desenvolvimento do capitalismo na Inglaterra como um arquétipo para o desenvolvimento de outras nações no Manifesto Comunista.
No começo do século XXI, com certas exceções como Kautsky ou Rosa Luxemburgo, a liderança oficial da social democracia “marxista” aplicava uma análise insular à situação na Rússia. Eles viam o atraso geral da Rússia, a forma não democrática do Estado e a predominância de relações semifeudais no interior, apenas no contexto dos confinamentos das fronteiras dos estados nacionais. Assim, eles chegaram à conclusão de que a sociedade russa teria que submeter-se a desenvolvimentos capitalistas adicionais de modo a amadurecer para uma revolução socialista. Essa análise contribuiu para severas consequências políticas e práticas. Plekhanov, o líder da social-democracia marxista na Rússia, continuou seus esforços para forjar uma aliança com a “burguesia democrática”, que enfraqueceram as forças revolucionárias da classe operária quando esses “democratas” se tornaram reacionários durante a revolução de Outubro. Líderes do SPD na Alemanha podiam justificar seu apoio à máquina de guerra alemã em 1914 argumentando que uma guerra contra o regime czarista na Rússia ajudaria a superar o atraso do país e assim constituía um passo na direção do socialismo. Além de pessoas como Parvus/Helphand ou Trotsky não havia muitas vozes que questionavam esse ponto de vista nacional ou etapista. Entre os anarquistas eram aqueles que emigravam ao exterior que desenvolviam um horizonte mais amplo sobre as perspectivas de revolução social. De outra forma os anarquistas também não conseguiam superar dos socialistas revolucionários russos e sua visão provincial de que a revolução estaria centrada no campesinato e no seu alegado desejo de voltar às boas e velhas formas russas de arar um campo. No melhor dos casos eles sugeririam uma aliança operária e camponesa, falhando em abordar a questão do atraso e isolamento.
Duas experiências históricas levaram Trotsky a questionar a crua visão nacionalista e etapista do marxismo oficial: a derrota do exército russo por forças japonesas em 1905 e sua participação na insurreição da classe operária na Rússia. O Japão venceu a guerra devido ao poder industrial do país, que foi capaz de produzir uma máquina de guerra moderna. O rápido desenvolvimento da indústria local contrastava agudamente com o “atraso” geral da sua forma de Estado. Essa desconexão entre a forma estatal e desenvolvimento industrial colocava em questão a visão predominante de que cada país atravessaria a mesma mudança gradual de uma formação social agrária feudal/monarquista para uma industrial capitalista/democrática. A insurreição operária de 1905 nos centros manufatureiros da Rússia demonstrou que a tensão objetiva entre uma estrutura industrial desenvolvida dentro de um Estado, e uma estrutura administrativa ainda dominada por uma aristocracia de proprietários de terras, poderia criar uma oposição revolucionária subjetiva. Trotsky analisou o “desenvolvimento desigual e combinado” da Rússia dentro do sistema internacional de estados da qual ela dependia.
Ele apontou corretamente a contradição de que o atraso do regime czarista era, até um certo grau, fortificado por relações internacionais com os estados mais desenvolvidos na Europa ocidental. De modo a assegurar sua posição no sistema de estados, a partir do início dos anos 1860, o regime czarista foi forçado a construir uma moderna indústria (bélica), sendo compelido pelo que Trotsky chamou o “açoite da necessidade externa”. Dado que o estado era dominado por uma classe de proprietários rurais que se oporia à taxação de um setor agrário já subdesenvolvido, a industrialização foi financiada primariamente por empréstimos de capital estrangeiro da França e outros países ocidentais.
“O atraso histórico não implica uma simples reprodução do desenvolvimento de países avançados, Inglaterra e França, com o atraso de um, dois ou três séculos”, notou Trotsky. “Ele engendra uma formação social ‘combinada’ inteiramente nova na qual as últimas conquistas da técnica e estrutura capitalista se enraízam em relações de barbarismo feudal ou pré-feudal, transformando-as e sujeitando-as e então criando relações de classe peculiares”[8].
Enquanto intensificava o intercâmbio e interdependência com o sistema de estados capitalista, o processo de industrialização também agravava as tensões internas dentro da sociedade russa, primariamente através da criação de uma classe operária industrial moderna. O desenvolvimento industrial na Rússia tinha características peculiares. Ele acontecia mais rapidamente, mas mais importante, ele saltava a etapa da pequena manufatura e produção artesã. Isso significava que unidades industriais em cidades como São Petersburgo seriam em média muito maiores e equipadas com tecnologia mais moderna do que suas contrapartes ocidentais e empregariam operários que eram também, mais frequentemente, não arremessados diretamente dos campos para um processo industrial moderno de produção. Ademais, a nova classe operária industrial concentrada não estava tão cercada de “instituições burguesas” como sua contraparte ocidental. Pular o estágio artesanal significava que sindicatos tradicionais jogavam um papel menor em mediar e canalizar as iniciativas operárias. Aparte o fato de que a estrutura econômica não comportava o desenvolvimento de uma grande classe média, o regime czarista também suprimiu “liberdades burguesas e associações”. A classe operária cresceu mais rápido do que a sua contenção.
Esse poder estrutural se combinou com os resultados sociais de um processo de industrialização financiado em endividamento. Para sustentá-lo o Estado precisava exportar grãos de modo a servir os pagamentos de sua dívida externa. Quando os preços internacionais de grãos caíam, isso levava a uma pressão maior sobre o campesinato para entregar mais grãos sem provê-lo com os meios para aumentar a produtividade. Inquietações camponesas se tornaram mais frequentes e teriam seu impacto sobre o novo operário-camponês. Essa situação explodiu em 1905, quando a nova classe operária demonstrou que poderia desenvolver avançadas formas políticas de organização, tais como os conselhos. Trotsky disse que na Rússia:
“O proletariado não se ergue gradualmente através das épocas, carregando consigo o fardo do passado, como na Inglaterra, mas em saltos que envolvem mudanças agudas de ambiente, laços, relações, e um corte agudo com o passado. Foi apenas isso – combinado com as opressões concentradas do czarismo – que fez os operários russos hospitaleiros às conclusões mais ousadas do pensamento revolucionário, assim como as indústrias atrasadas eram hospitaleiras à última palavra em organização capitalista”[9].
Essa análise dos fatores objetivos, a interdependência internacional das relações de classe na Rússia, o desenvolvimento combinado de indústria moderna em uma moldura política subdesenvolvida e em uma sociedade rural, e sua experiência com a expressão subjetiva durante a insurreição de 1905 levou Trotsky a romper com a posição social-democrata predominante de que a Rússia estava “madura” apenas para uma revolução democrática, não uma socialista.
“A posição de vanguarda da classe operária na luta revolucionária; o vínculo direto que ela está estabelecendo com os revolucionários no interior; a habilidade com a qual ela está subordinando o exército a si mesma – todos esses fatores a estão levando inevitavelmente ao poder. A vitória completa da revolução significa a vitória do proletariado (…). O anterior, por sua vez, significa o aprofundamento de uma revolução ininterrupta. O proletariado está completando as tarefas básicas da democracia, e num certo ponto a própria lógica de sua luta para consolidar seu domínio político coloca à sua frente problemas puramente socialistas”[10].
Ele contestou o argumento de que a classe operária industrial na Rússia era numericamente muito pequena para liderar uma revolução socialista ao quebrar a moldura de pensamento nacionalista. Ele sustentou que a Rússia era o elo mais fraco no sistema internacional de estados e que uma insurreição revolucionária da classe operária industrial local poderia ser a faísca para uma reação em cadeia internacional. Dado o vasto e subdesenvolvido interior rural da Rússia, uma revolução socialista no país necessariamente dependeria de revoluções em países mais avançados para sobreviver. O pequeno núcleo de operários industriais urbanos na Rússia precisaria se conectar com os núcleos desenvolvidos no ocidente e usar seu suporte para construir cabeças de ponte no mar de miséria agrária russa. Assim como a transição global para o capitalismo industrial tinha sido desigual e combinada, da mesma forma seria a transição seguinte para além do capitalismo.
Nós pensamos que neste momento histórico o conceito de “desenvolvimento combinado” e suas conclusões na forma de uma “revolução permanente” constituía a estratégia política mais avançada e internacionalista da classe operária. Neste ponto da argumentação qualquer camarada sério iria se perguntar se e como essa “posição avançada” se relaciona com o papel bastante problemático, se não contrarrevolucionário, que Trotsky iria desempenhar no curso da Revolução Russa. Antes da revolução ele delineou as mais básicas medidas que os trabalhadores teriam que tomar.
“Abolição do exército permanente e da polícia, armamento da população, eliminação do mandarinato burocrático, introdução de eleições para todos os cargos públicos, equalização de seus salários e separação entre igreja e Estado – essas são as primeiras medidas que devem ser implementadas, seguindo o exemplo da Comuna”[11].
Entretanto, durante a revolução, Trotsky iria ao ponto de se tornar o principal promotor no reestabelecimento de um exército permanente e em reintroduzir uma hierarquia salarial e gerencial nas fábricas. Este artigo não é sobre a derrota interna e externa da revolução na Rússia, mas nós queremos levantar essa contradição flagrante para discussões futuras. Neste ponto nós nos limitamos a descrever brevemente a progressão e degeneração futuras do conceito de “desenvolvimento desigual e combinado”.
Durante a vida de Trotsky o levante revolucionário na China em 1925-1927 parecia provar a validade do conceito. Trotsky viu aqui uma chance para a independência política e organizacional da classe operária, baseada na combinação de rápida industrialização e crescente inter-relação da China com as potências industriais, tais como o Japão. Durante o levante, usando o seu controle sobre o Comintern, Stalin ordenou à seção local na China, o Partido Comunista, que subordinasse sua própria organização e demandas aos dos nacionalistas burgueses do Kuomitang, para formar uma aliança antifeudal para a “revolução nacional”. Como resultado, os operários insurgentes mas desarmados, que tinham formado conselhos nas fortalezas industriais, e os próprios militantes do Partido Comunista, foram massacrados pelos seus “aliados da burguesia progressista”, que entendiam melhor a dinâmica revolucionária das lutas operárias do que a liderança partidária na pátria mãe do “movimento comunista” internacional.
Com a desaceleração do ciclo revolucionário após a I Guerra Mundial o conteúdo de classe do conceito de revolução permanente ficou secundarizado mesmo no interior do movimento trotskista. O foco não era mais a produção e comércio globais e como elas conectavam a classe operária em regiões com diferentes estágios de desenvolvimento econômico e político. A teoria se tornou um roteiro esquemático para a revolução. Não foi surpreendente então que apenas umas poucas organizações revolucionárias foram de alguma forma críticas dos representantes oficiais dos “movimentos anticoloniais e de libertação nacional” no sul global (vietcongues, liderança revolucionária cubana) durante o último levantamento global em 1968. Embora fossem críticos da liderança política, a degeneração da teoria da revolução permanente significou que a maioria das organizações trotskistas não foram capazes de desenvolver uma estratégia prática independente para a classe operária além de convocar uma “liderança verdadeiramente revolucionária”. Um estratégia operária classista teria mudado o foco da expressão política dos levantes para o seu bojo material: como conectar a militância da classe operária nas democracias industriais, o “bloco socialista” industrializado e os poucos elementos operários no sul global majoritariamente agrário, numa fase em que o sul global ainda era largamente um fornecedor de matérias-primas para o norte manufatureiro?
Ao levar o conceito para fora do seu contexto histórico específico, a sua natureza explosiva foi desarmada. Enquanto os grupos políticos podiam usá-lo como um roteiro para denunciar ou encorajar alianças políticas, a declaração do “desenvolvimento desigual e combinado” como uma “lei da história humana” a transformou numa fórmula pronta para o campo acadêmico. O próprio Trotsky facilitou esse tipo de apropriação por declarações tais como a seguinte:
“O privilégio do atraso histórico – e um tal privilégio existe – permite ou mesmo compele à adoção do que quer que seja mais avançado em uma data específica, pulando toda uma série de estágios intermediários. Da lei universal da desigualdade então deriva uma outra lei, a qual, na falta de um nome melhor, nós podemos chamar de lei de desenvolvimento combinado – pela qual nós queremos dizer uma confluência de diferentes estágios da jornada, uma combinação de passo separados, um amálgama do arcaico com formas mais contemporâneas”[12].
Hoje nós podemos encontrar milhares de artigos antropológicos e sociológicos em que o autor pensa que está dizendo algo profundo quando usa o termo “desenvolvimento desigual”, meramente para descrever o fato de que as sociedades humanas influenciam umas às outras.
Todavia, de um ponto de vista que esteja buscando a auto-emancipação da classe operária internacional, o conceito ainda pode ter valor de uso. Trotskistas contemporâneos mais sérios, como Neil Davidson, questionam a tentativa de transformar o conceito em uma lei eterna. Davidson declara que o conceito de “revolução permanente” só é aplicável a situações em que as lutas operárias revolucionárias têm lugar sob regimes despóticos não burgueses e dessa forma contém tanto um potencial democrático como socialista. Nesse sentido o conceito seria antiquado, a não ser que fosse estendido, por exemplo, para a relação entre as lutas anticoloniais em Angola e Moçambique e a Revolução dos Cravos em Portugal em 1975. Neste caso, greves e atividades de guerrilha nas colônias forçaram o estado português a apertar o cerco em vista da classe operária “em casa” em Portugal. A mobilização e os motins de recrutas na maioria operários que combatiam os levantes anticoloniais foi a gota d’água, levando à insurreição popular que encerrou a ditadura em Portugal. Entretanto, desenvolvimentos subsequentes tanto em Angola como em Moçambique (com as guerras civis e ditaduras que se seguiram) colocam em questão se havia realmente um núcleo socialista e operário no interior da luta anticolonial.
Para Davidson o conceito de “desenvolvimento desigual e combinado”, enquanto confinado a sociedades capitalistas historicamente, ainda tem validade hoje. Vejamos primeiro como Davidson argumenta porque a “combinação” só acontece no capitalismo:
“Até o advento do capitalismo, sociedades podiam emprestar umas às outras, influenciar umas às outras, mas não eram suficientemente diferenciadas umas das outras para que os elementos se “combinassem” para qualquer efeito. De fato, foi o advento do capitalismo industrial que iniciou tanto a “grande divergência” entre Ocidente e Oriente e, pela primeira vez na história, o impacto esmagadoramente unidirecional do primeiro sobre o segundo que se seguiu. Como o próprio Rosenberg deixa claro: ‘a China imperial sustentou sua liderança no desenvolvimento durante vários séculos; mesmo assim a irradiação das suas aquisições nunca produziu na Europa nada como o longo e convulsivo processo de desenvolvimento combinado que a industrialização capitalista na Europa quase imediatamente iniciou na China’ (Rosenberg 2007, 44-45). A detonação do processo de desenvolvimento desigual e combinado certamente exigiu uma súbita e intensiva industrialização e urbanização (…) ‘Em contraste com os sistemas econômicos que o precederam’, escreveu Trotsky, ‘o capitalismo inerentemente e constantemente mira a expansão econômica, a penetração de novos territórios, a conversão de economias nacionais e provincianas autossuficientes em um sistema de inter-relacionamentos financeiros’ (Trotsky 1974b, 15)”[13].
Sendo assim, qual é então o núcleo da “combinação”? Nós podemos resumi-lo como se segue: através da integração com o global de produção e estados, certos países, que são em geral os menos desenvolvidos em termos dos seus sistemas políticos e administrativos, são forçados, seja economicamente ou de modo a estabilizar seu regime político, a introduzir meios de produção modernos em certas áreas ou setores. Isso leva a uma rápida transformação da estrutura existente da classe trabalhadora local, por exemplo, através de novas concentrações industriais ou novos meios de comunicação. Lutas sob essas condições têm o potencial de sobrecarregar a relativamente instável ordem existente, em particular se o “salto” no desenvolvimento foi adquirido através da dependência de endividamento (exterior) ou uma gama limitada de bens de exportação, primariamente na forma de matérias-primas.
Davidson proporciona alguns exemplos gerais nos quais uma tal “combinação” joga um papel hoje:
“Nós não precisamos procurar longe para encontrar exemplos realmente impressionantes de desenvolvimento combinado hoje. Na Arábia Saudita, um sistema tribal de política foi enxertado em uma sociedade industrializada, de uma forma que o Estado, que possui a riqueza da sociedade, é ele próprio a propriedade de uma família estendida de uns 7.000 príncipes. A junção forçada do antigo e do novo raramente vem em uma forma mais extrema do que essa. E mesmo assim uma fração significativa do suprimento mundial de energia depende deste híbrido político peculiar (os eventos de 11/09 e seguintes mostram exatamente o quanto esse híbrido pode ser instável e desestabilizador)”[14].
Esse exemplo poderia ter maior poder de convencimento se Davidson adicionasse o fato de que o regime local depende de milhões de trabalhadores migrantes vindos de uma gama de países asiáticos. Os migrantes até mesmo constituem a maioria em algumas das fileiras mais baixas do aparato do Estado; por exemplo, muitos oficiais de polícia são recrutados do Paquistão. Seus países de origem dependem pesadamente das remessas dos trabalhadores e têm sido locais de situações recentes do tipo guerra civil (Nepal, Bangladesh) e são assim relativamente instáveis, ou dependem de regimes políticos brutais para assegurar a industrialização local (China, partes da Índia). A Arábia Saudita está integrada no intercâmbio global não apenas através de petróleo, armas e finanças. Em países como o Sudão, os investimentos da Arábia Saudita dominam largas partes do setor agrícola. O caldeirão de trabalhadores migrantes na Arábia Saudita, seu significado massivo no que se refere a sustentar um regime despótico, as tensões políticas “em casa” poderiam todos se transformar em uma “combinação” explosiva de fatores.
Davidson vê a classe operária urbana em El Alto na Bolívia como um exemplo da dimensão mais subjetiva da “combinação”. Ele aponta que a combinação de um grande número de antigos mineiros com sua experiência de militância industrial estar assentado numa cidade com organizações de bairro já existentes criou a base para um movimento muito politizado da classe operária urbana. Essa é de fato uma “combinação” interessante, mas ela não contém a dimensão de interdependência internacional tanto do sistema de estados como do processo de produção como o faz o conceito original. Similarmente esse exemplo da África do Sul, descrito em “Forças do Trabalho” de Beverly Silver:
“Para Mahmood Mamdani (1996: 218-84), o caso da África do Sul do Apartheid forneceu uma variação do mesmo tema. Em 1948, com a vitória do Partido Nacionalista, a África do sul mudou abruptamente das políticas de estabilização do trabalho para ‘a massiva expulsão de africanos das cidades e o vigoroso policiamento do influxo e residência’ (Cooper 1996:6). Como resultado, trabalhadores migrantes da África do Sul, escreve Mamdani, se tornaram ‘a correia de transmissão entre ativismo urbano e descontentamento rural’. Eles ‘carregaram consigo formas de militância urbana das cidades para as reservas nos anos 1950’ e depois conduziram ‘a chama da revolta do rural para o urbano’ nos anos 1960, culminando na revolta de Soweto em 1976. Na década seguinte a Soweto, o Estado sul-africano foi forçado a se mover de volta para políticas de estabilização do trabalho. Ele buscou ‘montar uma muralha da China entre populações migrantes e urbanas’ e limitar os direitos de organização sindical a trabalhadores urbanos residentes enquanto ‘apertava o certo de controle de influxo sobre os migrantes’. Essa estratégia de traçar barreiras, por sua vez, ajudou a transformar uma ‘diferença’ entre trabalhadores migrantes e residentes urbanos em uma ‘divisão’ carregada de tensões. (Mamdani 1996:220-1)”[15].
Outro exemplo que Davidson para demonstrar a persistente relevância do conceito é a China:
“Ao produzir a súbita ascensão da China como uma grande potência, o desenvolvimento desigual está conduzindo uma revolução geopolítica conforme os Estados Unidos correm para se desligar da Europa e Oriente Médio de modo a se concentrar em seu famoso ‘pivô para a Ásia’. Ao mesmo tempo, uma nova estrutura de interdependência econômica cresceu ao ponto de já ter tido consequências importantes para o desenvolvimento mundial. Como sabemos, dos anos 1990 em diante, o modelo da China de desenvolvimento voltado para exportação produziu o tsunami de produtos baratos que contrastaram as tendências inflacionárias nas economias ocidentais. Em acréscimo, compras chinesas de títulos do tesouro estadunidense ajudou a manter as taxas de juros estadunidenses mais baixas do que teria sido necessário para financiar o deficit comercial. O resultado líquido disso foi certamente uma extensão do boom econômico dos anos 1990, e discutivelmente níveis muito mais altos de dívida privada e soberana quando este boom finalmente colapsou em 2007-2008. A alegação não é de que a China causou o colapso. Ao invés, é de que o desenvolvimento desigual, com seus efeitos deflacionários e desequilíbrio no comércio global, é um ingrediente chave da crise econômica que estamos vivendo até hoje”[16].
Aqui Davidson pode estender o conceito de “desenvolvimento combinado” a uma tal extensão que ele deixa de descrever mais do que a usual interdependência das nações no mercado mundial, sem ser capaz de nos dizer algo mais sobre o impacto do desenvolvimento (desigual) na luta de classes. Nós voltaremos à questão de quanto o conceito é relevante quando o contrastarmos com a discussão sobre “composição de classe”. A citação seguinte de Davidson sugere o fato de que ambos os conceitos estão ao menos relacionados:
“Tome-se, por exemplo, o Mezzogiorno [‘meio-dia’, região sul, N. do T.] italiano, onde a unificação italiana foi seguida por um pronunciado processo de desindustrialização, que levou a um fluxo constante de capital para o norte, com uma reserva de longo prazo de força de trabalho barato, produtos agrícolas baratos e uma clientela dócil no sul; aqui o processo de desenvolvimento desigual e combinado levou a níveis elevados de militância similarmente àqueles vistos em países caracterizados por um atraso mais geral, sendo o episódio chave a revolta dos imigrantes italianos contra as suas condições de vida e baixos salários durante o ‘milagre industrial’ do fim dos anos 1950 e início dos 1960. O que é interessante no exemplo italiano, entretanto, é que o processo continuou, de diferentes formas, até o dia de hoje”[17].
* Composição de classe
É impressionante que Davidson use as consequências do rápido desenvolvimento industrial na Itália do pós-guerra como um exemplo de “desenvolvimento desigual e combinado” quando este desenvolvimento também se tornou o laboratório social para o conceito de “composição de classe”.
Na Itália dos anos 1960 os camaradas em torno de jornais como Quaderni Rossi e organizações como Potere Operaio tentaram entender como o subdesenvolvimento no sul do país se relacionava com a rápida industrialização do norte, e como isso era não apenas um resultado econômico da acumulação, mas parte de políticas de planejamento econômico modernas. Eles tentaram entender como a experiência de trabalhadores agrários no sul com os proprietários de terra e sua máfia informavam suas lutas uma vez que eles tivessem migrado para o norte. Eles viram a linha de montagem como uma arma de exploração que disciplinava operários recentemente migrados de um cenário rural e os separava dos operários qualificados do velho movimento socialista tradicional. Eles viam que a linha de montagem iria se transformar em um meio de comunicação de um novo ciclo de lutas, ao generalizar a experiência da classe operária de Turim a Liverpool e Detroit. As lutas no núcleo poderiam desenvolver um efeito de tração nas profundezas do sul subdesenvolvido, seja na Sicília ou Alabama.
Ao contrário da linha do Partido Comunista tradicional ou estratégias socialistas democráticas correntes, eles viam a relação entre uma nova geração de técnicos (trabalhadores intelectuais) e os assim chamados trabalhadores (braçais) não qualificados não como uma aliança entre “operários da mente e operários da mão”, que iria basicamente consagrar a hierarquia imposta pela divisão do trabalho. Observando trabalhadores braçais e intelectuais eles viam que desenvolvimento e subdesenvolvimento existem lado a lado na mesma indústria. Trabalhadores intelectuais, como engenheiros, têm acesso a conhecimento social avançado e tecnologias, enquanto que trabalhadores manuais frequentemente usam, em vez disso, ferramentas primitivas. Enquanto a divisão do trabalho e a lacuna no desenvolvimento não for quebrada a classe operária pode ser pacificada: os “trabalhadores intelectuais” vão procurar por soluções técnicas para problemas sociais e os trabalhadores braçais vão rejeitar coletivamente mas não substituir o sistema de produção. Então em vez de propor alianças, os novos camaradas se relacionavam com a procedência operária da nova geração de estudantes técnicos, com seus sentimentos de alienação como trabalhadores intelectuais, sua dupla existência como engenheiros com âmbito limitado para criatividade e como uma força gerencial e de supervisão para os chefes. Eles questionaram se o trabalho industrial moderno era mesmo “não qualificado” e puramente “manual” e descobriram suas dimensões sociais e criativas, por exemplo ao apontar o quanto a moderna produção fabril ainda se baseava em improvisação. Baseados nisso eles podiam propor formas de luta para além das alianças entre operários e “intelectuais”. Sua meta era encontrar formas que iriam minar a hierarquia de conhecimento, como assembleias comuns e coletivos políticos.[18]
Esses camaradas foram além de meramente descrever as diferenças e conexões entre os vários segmentos da classe, pois eles estavam buscando por locais onde as lutas poderiam levar a generalização e uma orgânica unidade de classe. Sua esperança era de que os setores mais avançados, tanto em termos de produtividade social como em intensidade de luta, expressariam o potencial para uma nova sociedade e irradiar para os setores atrasados da sociedade.
Ao contrário do conceito de desenvolvimento desigual e combinado, o conceito de composição de classe tomou o entendimento de Marx da “composição orgânica do capital” como seu ponto de partida, ao invés do sistema internacional de estados. “Composição orgânica do capital” quer dizer a razão na qual o capital junta sua fração “variável” (salários para os operários) e a “constante” (matérias primas e maquinaria) de modo a produzir lucros. Marx apontou que sob a pressão da competição internacional no nível da superfície e da luta de classes no seu núcleo, por exemplo, a luta dos operários por um dia de trabalho menor, o capital é forçado a investir em maquinaria e outros meios de aumentar a produtividade. A “composição do capital” muda permanentemente, primariamente a porção de “capital constante” aumenta e a de “capital variável” diminui. O marxismo oficial dos partidos comunistas tratava esse processo largamente como um processo econômico ou mesmo como uma “lei econômica”, com características quase naturais.
Através de Marx, os camaradas entorno de Quaderni Rossi redescobriram a natureza política e antagonística desse processo, a luta de classes no interior do processo aparentemente “automático” de acumulação de capital. É a luta por salários mais altos e contra as várias formas pelas quais o capital tenta espremer mais trabalho dos operários depois que sua força de trabalho é comprada que constitui a dinâmica primária que força o capital a mudar a si mesmo constantemente. O poder coletivo dos operários dentro do processo de produção tem que ser minado pela separação do processo de trabalho em pedaços mais “gerenciáveis” ou pela introdução de novas tecnologias. Operários de novas regiões e procedências são contratados para minar coletividades existentes. Essas mudanças na composição do capital mudam a composição da classe operária. Desse modo os camaradas derivaram os conceitos de “composição técnica” e “composição política” da classe da “composição orgânica do capital” de Marx.
O conceito de “composição técnica de classe” parte do fato de que nós nunca encontramos uma classe operária homogênea abstrata. Os operários estão integrados em uma maior ou menor extensão ao processo de produção imediato. Dentro do processo de produção os operários cooperam mais ou menos diretamente uns com os outros. Dependendo dos setores em que trabalham ou das suas qualificações específicas o seu poder individual e/ou coletivo difere. A “composição técnica da classe” expressa a principal contradição interna do capital: de modo a aumentar a produtividade social o capital é forçado a permitir que os operários cooperem o mais proximamente possível – mas uma colaboração próxima dos operários é dinamite no ventre da besta. Os operários usam o seu poder produtivo e coletivo para questionar o poder e o domínio do capital. Eles se “re-compõem” politicamente, ao encontrar novas formas de luta sob as condições dadas; essas lutas irradiam no interior da classe trabalhadora mais ampla e dão origem a novas ideias políticas sobre emancipação social. Os camaradas analisaram a relação entre as formas particulares como a exploração é organizada e como as lutas operárias unificam e desenvolvem uma visão social e política como uma relação entre “composição técnica” e “composição política da classe”.
Sua pesquisa foi além do processo contemporâneo de produção e adentrou a história[19]. Eles foram capazes de distinguir, por exemplo, como uma “composição técnica de classe” baseada em indústrias integradas e operários qualificados no início do século XX formou a base para uma “composição política de classe” na forma do movimento revolucionário dos conselhos: operários qualificados sabiam que eles podiam dirigir indústrias integradas diretamente, e as indústrias eram frequentemente localizadas perto de áreas urbanas. Essa combinação foi a base para uma forma de organização e visão de emancipação social “conselhistas”. Os camaradas viram que além da repressão estatal bruta, foi a produção em linha de montagem e a migração de trabalhadores que minou a “composição política” dos operários qualificados. A composição técnica do “trabalhador coletivo” da sua própria época – na maioria operários não qualificados nas fábricas de bens de consumo – desenvolviam diferentes formas de luta e uma visão do “comunismo” que era mais caracterizada pela recusa em trabalhar através da “socialização do trabalho” (todos trabalhamos, todos trabalhamos menos”) e uma crítica do consumismo individual vazio do que a “autogestão” da produção dos operários qualificados durante o movimento dos conselhos. Ou para dizê-lo nas palavras frequentemente mais pomposas do Operaísmo, Battagia neste caso:
“O âmbito de análise era o elo entre os corpos e instrumentos de trabalho, entre o visual e comportamento dos operários e a forma de produção. Entre subjetividade e objetividade. Isso mostrou que os comportamentos políticos, formas e necessidades expressos pela luta de classes são formatados materialmente pela relação objetiva entre capital e trabalho. Assim enquanto o operário profissional [qualificado?] – defrontado com uma subsunção meramente formal do seu trabalho pelo capital – lutava para se reapropriar dos meios de produção e autogerir a fábrica, o trabalhador coletivo luta diretamente contra a materialidade do capital, seu modo técnico de ser, expressando uma subsunção agora real do trabalho. De acordo com essa formulação, o processo revolucionário é balanceado pela configuração da classe que tende a predominar na organização capitalista do trabalho. A composição técnica da classe especifica qual seção da classe operária na qual o capital baseia sua acumulação, enquanto que a composição política da classe especifica as características materialmente determinada do antagonismo de classe”[20].
Para esses camaradas o conceito de composição de classe não era uma ferramenta sociológica, mas uma arma estratégica. Ao analisar os fatores objetivos e subjetivos eles tentaram antecipar quais setores ou áreas poderiam se provar como os novos “elos frágeis” na cadeia do capital e centros de irradiação que poderiam auxiliar a unificação da classe. A posição de “vanguarda” é determinada menos pela consciência política superior, mas por condições objetivas de “centralidade” nas quais os operários se encontram. Reconhecer o papel central da “fábrica” no processo de unificação da classe não significa ignorar o restante da sociedade, mas tentar reconhecer as ligações, por exemplo, na forma como o trabalho feminino nas fábricas deu impulso a um movimento independente de mulheres da classe operária ou na forma como a fábrica reestruturou o trabalho doméstico. Uma década depois Battagia reflete sobre as lutas em 1969:
“Em nosso caso, uma seção da força de trabalho tornada materialmente homogênea por um relacionamento particular com a tecnologia capitalista (a linha de montagem) e um consequente comportamento político: a demanda por salários como renda, a recusa do trabalho e sabotagem. Foi precisamente essa homogeneidade que permitiu que a classe operária do outono quente se tornasse uma ‘composição de classe’, conduzisse o processo revolucionário, impusesse suas lutas sobre a sociedade e forçasse uma revisão profunda do aparato conceitual tradicional da luta de classes. Tudo isso foi tornado possível pela poderosa ligação entre um fato material (condições materiais de exploração) e um subjetivo (comportamento político). O trabalhador coletivo era uma seção da classe que podia ser reconhecido com extrema precisão, que podia ser exatamente qualificado e cujos objetivos políticos principais podiam ser identificados com relativa imediaticidade”[21].
A noção de “centralidade” é essencial para o conceito de composição de classe, mas isso não significa que os camaradas do operaismo não observassem e reconhecessem a importância da relação entre centro e periferia, por exemplo entre “a fábrica” e o contexto internacional. Um dos principais textos é “Capital e classe operária na Fiat: um centro dentro do ciclo internacional” em “Sobre a Fiat e outros escritos”, escrito em 1967, um texto que nunca foi traduzido para o inglês. Nós nos baseamos na tradução alemã [22], mas pensamos que pode ser de qualquer forma interessante resumir algumas das noções de Alquati sobre o “centro”. Ele observou o setor metalúrgico e descreveu sua posição central dentro do ciclo capitalista.
O setor metalúrgico é o único setor que produz tanto os meios de produção adequado para as formas capitalistas de produção, que é a maquinaria, quanto as mercadorias dedicadas ao consumo. Isso significa que dentro do ciclo de produção e da cooperação no setor metalúrgico a combinação do trabalhador coletivo teve lugar num nível muito estendido. A divisão do trabalho tem um nível de sofisticação que nós usualmente apenas encontramos no nível mais abrangente da divisão social do trabalho. Alquati quis dizer que dentro do setor metalúrgico nós encontramos todos os tipos de trabalho combinados: intelectual (engenheiros e planejadores), qualificado (técnicos, mecânicos), não qualificado (montagem, manutenção), serviços (marketing), etc., frequentemente em estreita proximidade espacial, mas também se estendendo para dentro da sociedade, por exemplo com os departamentos das universidades. Essas coisas são significativas e nós queremos saber como os trabalhadores podem não apenas “lutar contra o capital” mas combinar seus vários conhecimentos e habilidades em uma força revolucionária “criativa” que possa remodelar a forma como vivemos.
O fato de que o setor metalúrgico combina a produção tanto de meios de produção como de consumo e de que algumas empresas trocam ambos entre si também significa que, historicamente, esse “circuito fechado” criou uma dinâmica específica que transformou o setor metalúrgico em uma força condutora da mecanização da sociedade e geral. A mecanização também significa que as fábricas de empresas como a Fiat se transforma em ímãs para a migração do campo em direção à cidade a partir de “áreas atrasadas”, através da exploração do trabalho de “operários-camponeses”. Em países como Inglaterra, França e Alemanha, isso aconteceu em uma escala internacional. Nós podemos encontrar as formas mais complexas e (internacionalmente) estendidas de cooperação dentro do setor metalúrgico, o que significa que ele se transformou no setor com as maiores e mais entrelaçadas concentrações de operários. Alquati observou que a integração global de mercados (a Fiat exportava caminhões, tratores, escavadeiras e veículos militares, etc., para o assim chamado Terceiro Mundo desde muito cedo e tinha um grande impacto nos mercados locais) era agora intensificada pela integração global da produção (a Fiat tinha laços particularmente estreitos com governos e técnicos administrativos no no assim chamado Bloco do Leste, para montar fábricas nesses locais). A Fiat não apenas vendia mercadorias para o assim chamado Terceiro Mundo, a empresa transferiu capital produtivo/destrutivo na forma de motores de navios, turbinas de gás, peças de aviões de caça e maquinaria de produção.
O setor metalúrgico em geral e o setor automotivo em particular submete outros “setores de processamento de matérias primas”, tais como borracha, vidro, plásticos, petróleo, dominando economias nacionais inteiras no sul global e conectando trabalho industrial com o da mineração e plantações. Essas são “matérias primas estratégicas” e as relações de comércio e produção têm uma dimensão política na forma de acordos comerciais entre Estados, mas também determinando as políticas dos departamentos de desenvolvimento e até estratégias militares. Alquati incitou uma análise das “relações entre trabalho simples e complexo num nível internacional, levando em conta as diferentes facetas de tecnologia e produtividade. Isso por sua vez teria que estar relacionado com os custos de reprodução em várias regiões”.
O texto vai muito mais longe em profundidade e detalhamento, mas nós podemos lê-lo como um chamado a ver as dimensões sociais e internacionais de empresas como a Fiat como um plano de batalha através do qual a classe operária pode reunificar suas lutas políticas internacionalmente. O texto foi escrito antes das grandes greves na Fiat em 1969 e antecipou sua significação social.
Ainda assim, o texto de Alquati pode ser tomado como uma evidência adicional de que os camaradas do operaísmo em grande medida acreditavam que a classe operária pode superar as divisões estabelecidas pelo desenvolvimento combinado e o sistema de estados através do fato de que a cooperação estendida dentro do processo de produção social pode servir como linha de comunicação e vias para as lutas operárias. Isso parece compreensível numa situação histórica como a Itália do pós-guerra onde a integração entre indústria, sociedade e (planejamento do) Estado era extremamente denso. Nós não temos conhecimento de muitos textos daquela época que observassem a situação global mais ampla e sua desigualdade de desenvolvimento de uma perspectiva de “composição de classe”. Isso vai ser devido também ao fato de que a principal moldura da esquerda radical italiana para pensar e debater as “relações internacionais” era o texto de Lênin sobre “Imperialismo”[23], enquanto que a esquerda trotskista tinha mínima influência na Itália. Essa dependência e confiança exagerada no conceito de Lênin é revista criticamente por Ferrari Bravo, um camarada operaísta, em 1975. O texto foi traduzido recentemente por camaradas em torno da [revista] Viewpoint Mag. A introdução deles joga luz sobre o pano de fundo do texto de Bravo:
“Antes desse ensaio, Ferrari Bravo tinha se distinguido dentro do operaísmo por fazer sua perspectiva política se sustentar nas margens – não apenas nas vizinhanças periféricas do triângulo industrial do norte em que migrantes italianos do sul viviam, mas para as dinâmicas mutáveis do próprio sul. Em ‘Forma dello stato e sottosviluppo’ (‘Forma do Estado e subdesenvolvimento’), Ferrari Bravo analisou a industrialização parcial do sul através do fundo estatal Cassa per il Mezzogiorno (Fundo para o Sul) como uma resposta política para a mobilidade crescente da força de trabalho. Esse ‘plano’ de reformas foi desenhado para integrar ciclos de lutas operárias dentro do ciclo do capital. Em ‘Velhas e novas questões na Teoria do Imperialismo’, Ferrari Bravo elabora sua pesquisa dentro da moldura estendida do mercado mundial, colhendo o que ele considerava útil de Marx, Lênin e teóricos subsequentes para desenvolver uma análise rigorosa de sua conjuntura corrente (…) Ao invés de resgatar os registros escritos da intervenção de Lênin em 1917 em busca de conceitos científicos – Ferrari Bravo sugere abandonar as categorias de ‘aristocracia operária’ e ‘parasitismo’ para a crítica roedora dos ratos – ele prefere voltar-se para Marx em busca de uma metodologia e uma moldura dentro da qual colocar essa questão política novamente”[24].
Bravo começa resumindo brevemente a principal cadeia de pensamento do “Anti-imperialismo” de Lênin: a monopolização de indústrias chave no norte global; capacidade decrescente dos mercados internos de absorver o produto; voo acelerado para as finanças; exportação de capital para o sul e as colônias onde a principal exploração tem lugar, em particular no processamento de matérias primas; a transferência de valor global financia a paz social no norte, e com a ajuda dos sindicatos os operários locais se tornam crescentemente “aristocráticos”. Ele escreve:
“O capital financeiro como hegemonia da oligarquia bancária, de uma classe orientada para a especulação e o rentismo; exportação de capital como um inchaço de camadas sociais (até mesmo operários) que sobrevivem da junção de títulos; imperialismo como um sistema contraditório de dominação da parte de um punhado de estados-rentistas; essa série de definições especifica o eixo teórico e político do perfil da população”[25].
Ele então critica os pressupostos de Lênin:
“Aqui uma interpretação estagnacionista rígida impede de enxergar de, por trás da taxa de lucro em queda, o aumento da massa de lucro; por trás da centralização financeira, o alargamento e a transformação real da base industrial que resultou da grande onda de industrialização ‘pesada’, a qual emergiu entre 1800 e 1900 na Europa e nos Estados Unidos, e da qual a repartição colonial é obviamente um momento integral. E de outro lado, inversamente, a exportação de capital para o mundo colonial está bem longe de ter o papel que Lênin lhe atribuiu, de propulsionar o desenvolvimento capitalista da periferia – esse reconhecimento se tornará um dos temas centrais da literatura subsequente sobre o imperialismo, estranhamente até mesmo para aqueles que se mantém firmemente apegados à interpretação leninista no todo”[26].
Bravo basicamente diz que a ideia de Lênin de que a produção é simplesmente deslocada para o sul é muito simplista e que nós temos que entender o processo como uma expansão e especialização mais complexas em escala global. Bravo continua ao apontar que o (des)entendimento de Lênin sobre o imperialismo como sendo meramente “parasitário” e não um processo conduzido por conflitos dentro do sistema de estados para reestruturar o processo global de produção e exploração resulta numa simplificação de Lênin sobre como a classe operária global emergente está dividida em uma “aristocracia do trabalho” no centro e operários “superexplorados” na periferia. Apesar de não mencionar explicitamente nenhum desses dois conceitos, nós podemos ler uma aproximação entre “desenvolvimento desigual e combinado” e “composição de classe’ nos parágrafos seguintes:
“A ‘camada de operários-aburguesados, ou a aristocracia operária, que são bem filisteus em seu modo de vida, no tamanho de seus rendimentos e em todo o seu perfil’[Lênin] é o subproduto inesperado do vasto processo de concentração da produção, do aumento da escala de acumulação a qual também fundamenta e continuamente alimenta a transformação imperialista do sistema; e é uma extraordinária contraposição ao modelo leninista – no qual ele apostou toda a sua ‘carreira’ – da liderança [direzione] do operário massificado sobre todo o processo revolucionário no subcontinente russo, em qualquer caso, de seu apego ao operário na fábrica, à sua organização compacta imposta pelo próprio mecanismo da organização capitalista do trabalho. (…) Deveria ser notado que por trás disso está a defasagem [sfasamento] nos níveis de desenvolvimento capitalista global que não é colocado como um problema teórico explícito. (…) Seria talvez conceder muita astúcia à história e à própria intuição política de Lênin projetar seu julgamento desfavorável das ‘aristocracias’, marcadas como um mero fenômeno de oportunismo sindical, sobre esses resultados. Mas o fato permanece de que, no terreno teórico, no Imperialismo esse conceito joga o papel de projetar falsamente sobre o capital coisas que claramente são contradições, limites e atrasos da organização da classe dentro das áreas ‘avançadas’ de desenvolvimento – e consequentemente, de reduzir fenômenos potenciais, mas reais, de ‘integração’ ao nível de um mecanismo puramente ideológico. Mas, mesmo antes disso,, o conceito também ‘remove’ contradições e limites na teoria marxista contemporânea [para Lênin] do desenvolvimento. A tensão, que é essencial em Lênin, que é Lênin, entre o projeto do partido como um projeto de planejamento [progetto di piano] e as possibilidades dadas do desenvolvimento capitalista naquela fase, chega ao limite da sua vitalidade. Aqui toda a tradição ‘colapsista’ [crollista] é renovada, pela primeira e última vez, no sentido revolucionário – a própria guerra é, de fato, política de colapso [o texto em inglês trazia a palavra alemã Zusammenbruch] em ação”[27].
Uma série de sentenças pesadas, que se resumem a umas poucas posições. Primeiramente, de que “desenvolvimento desigual” e seu impacto divisivo não foi analisado suficientemente de uma perspectiva da classe operária, e o conceito de “aristocracia operária”, que Lênin usa para descrever essas divisões, é muito articulado com as “habilidades ideológicas” de um capital parasitário em integrar certos segmentos da classe global. Ao fazer isso, se prejudica o potencial de desenvolvimento no sul e se encobre as complexidades da classe operária no norte. Ao invés disso nós teríamos que enxergá-lo como um processo contraditório de “composição de classe”. Para ser honesto, isso permanece bastante abstrato. Mas nós encontramos uma outra pista nesse texto que nos ajuda a pensar sobre a relação entre “desenvolvimento desigual” de uma perspectiva de “composição de classe”:
“Essa estrutura de comércio internacional, portanto, recompensa o capital que já tiver encontrado – que já tiver sido compelido a encontrar – a fase de exploração em termos de mais valia relativa, e simultaneamente delineia uma divisão internacional do trabalho que adota, nas suas margens, as tensões mais exacerbadas do método de extração de mais valia absoluta. E então quão distante estamos, mesmo no compartilhamento de pressupostos, da moldura idílica da especialização internacional oferecida pela teoria dos custos comparativos!”[28]
Vamos lembrar as origens conceituais da “composição de classe”. As pressões internas e externas, primariamente a luta dos operários por salários mais altos e contra a imposição de trabalho conduz o capital ao desenvolvimento. O “desenvolvimento” se expressa numa elevação da “composição orgânica”, que significa primariamente o aumento de produtividade por investimento em maquinaria. Marx chama essa intensificação da exploração o aumento na produção de “mais valia relativa”. Mas esse processo não é uma via de mão única. Uma elevação da “composição orgânica” do capital resulta numa taxa de lucro mais baixa, o que significa que, em um contra movimento, o capital tende a ser investido em áreas ou setores com uma “composição orgânica mais baixa”, onde a exploração é ampliada através da “mais valia absoluta”, ou seja, primariamente através de mais horas de trabalho. Aqui nós podemos ver que “desenvolvimento desigual” – setores que usam a mais nova tecnologia próximos de estabelecimentos com condições de trabalho desumanas e exploração intensiva da força de trabalho – não são um sinal de “atraso” ou defasagem, mas na verdade expressam um resultado do “desenvolvimento capitalista”.
Antes de observarmos os dois conceitos juntos, nós queremos apontar brevemente que uma vez tirados do contexto do momento revolucionário no qual nasceram e sobrepostos à história, o conceito de “composição de classe” experimenta um destino similar ao de “desenvolvimento combinado”. A primeira fase de degeneração conceitual foi acelerada pelos limites da luta de classes nos próprios anos 1960. A revolta de 1968 tocou todas as esferas da vida da classe operária, do departamento de solda até o quarto de dormir, mas dada a natureza complexa e dispersa da produção social, o movimento não desenvolveu uma visão clara de como uma tomada dos meios de produção poderia parecer. A lacuna dos camaradas que desenvolveram o conceito de composição de classe foi que eles terminaram teorizando isso como uma força do movimento, por exemplo, glorificando a atitude “contra o trabalho” das lutas, ou tentando criar um atalho conceitual. Um atalho quer dizer que “composição de classe” se tornou uma palavra de ordem para vanguardismo político e aventureirismo: “a ‘composição técnica’ (a constituição material do processo de produção social) não permite que a classe se recomponha, então nós temos que recompor a classe desde cima ao liderar o assalto (armado) ao coração do Estado.
Uma das poucas e bem conhecidas tentativas de entender a composição de classe depois do descenso do movimento das massas operárias foi o texto de Sergio Bolonha “A Tribo das Toupeiras”, escrito em 1977[29]. Nele o autor tenta “desenterrar a nova composição de classe” da rebelião urbana de 1977, composta de jovens desempregados, grupos de mulheres, estudantes e operários de pequenas fábricas. Seu texto é um exemplo em “análise materialista” de um movimento que, do contrário, era difuso. Então ele observou o novo “sistema de partidos” de crise, que é politicamente ligado a instituições internacionais como o FMI e economicamente ao crescimento massivo de empreendimentos imobiliários suburbanos. Ele critica a esquerda por focar no Estado como “politicamente autônomo” enquanto ignorava o fato de que o Estado lentamente erodia a autonomia dos operários na fábrica. Ele traça uma conexão entre mudanças na universidade, as novas lutas dos trabalhadores “precários de colarinho branco” e as políticas da “subjetividade” como o movimento feminista, mas termina com um chamado a ver a “nova composição de classe” em termos mais amplos: “mas outra vez nós temos que ir além da universidade, tanto como uma base para o movimento e como um ponto de agregação, de modo a identificar os canais que podem trazer uma mobilização de toda a massa de trabalho disseminado”.
Muitos camaradas ignoraram esse chamado a se reengajar em análises materialistas e se retiraram ou aceleraram “o ataque político e armado”. Essa foi uma fase imediata de degeneração e desespero. Daí em diante, o conceito de “composição de classe” foi bastante expropriado de sua coesão interior e conteúdo político, nomeadamente a concentração e cooperação de operários, que predetermina a organização da classe a partir do seu núcleo central. Parecido com o “desenvolvimento desigual”, o conceito se tornou uma tela de projeção sociológica, meramente descrevendo os diferentes antecedentes dos operários ou a estrutura de certos setores sem observar a questão mais ampla da unificação política. No caso de pessoas como Negri, esse elemento “sociológico” do conceito apenas serviu como uma camada empírica esquálida na qual construir ideias políticas cada vez mais estilosas, na forma do “trabalhador social”, do “trabalhador imaterial”, a “multidão” e assim por diante.
Ainda há uma porção razoável a aprender do trabalho teórico e prático dos camaradas de então, mas os tempos mudaram. Enquanto pode ter sido um desafio cultural para os operários no norte da Itália lidar com os recém-chegados do sul, a migração hoje é um fenômeno muito mais global. Enquanto operários da linha de montagem e técnicos podem ter ido juntos para as mesmas escolas juntos, hoje nós vemos uma divisão global de trabalho braçal e intelectual que é separada por grandes espaços geográficos. Nós temos programadores de software no Vale do Silício e Bangalore usados em plantas automotivas e armazéns da Amazon no Alabama e instalações da Foxconn na China. O “setor metalúrgico”, que combina o trabalho complexo tanto de engenheiros de maquinaria como de bens de consumo duráveis como o carro, perdeu a centralidade social, mas não foi substituído por um setor com qualidades iguais. Essas diferenças são óbvias.
* “Desenvolvimento desigual” e “composição de classe” – dois conceitos históricos
Como nós começamos a mapear uma moldura conceitual para analisar essas complexidades presentes? Nós podemos proceder ao observar quatro questões principais para avaliar a validade desses dois conceitos:
1. Em qual extensão estão esses dois conceitos definidos por seu período e localização históricos? Em qual extensão eles estão primariamente descrevendo diferentes estágios no desenvolvimento geral do sistema capitalista?
2. Qual é a perspectiva compartilhada pelos dois conceitos? Onde eles descrevem o processo de unificação da classe operária, apesar de partindo de perspectivas diferentes, as quais não são redutíveis às diferenças nos períodos históricos em que esses conceitos emergiram?
3. Qual é o desacordo político entre os dois conceitos, além da questão da diferença na perspectiva histórica?
4. Quais são os elementos complementares dos conceitos que podem ainda nos ajudar a pensar através da presente selva empírica que é a classe operária global?
O conceito de “desenvolvimento desigual” se originou em uma situação geral na qual muitos estados nacionais ainda eram definidos por regimes aristocráticos ou coloniais, mas mais importante, por níveis relativamente baixos de interligação e intercâmbio industrial. Sob essas condições a “combinação”, a introdução de métodos modernos de exploração de trabalho em massa em um regime de resto atrasado, teve os efeitos mais explosivos. Quatro décadas depois, na Europa ocidental, o sistema de estados e a estrutura industrial tinham se tornado muito mais integrados. Nós vimos departamentos estatais (internacionais) surgindo do Plano Marshall e do Acordo de Breton Woods, que se engajaram no equilíbrio monetário dos aumentos de produtividade e pressão salarial ou no delineamento de planos de investimento industrial regional. Ao invés de ter algumas poucas “ilhas de desenvolvimento”, como as áreas industriais de São Petersburgo, o trabalho fabril tinha penetrado muito mais profundamente no tecido social e formado aglomerações industriais integradas. Esses diferentes estágios de desenvolvimento explicam parcialmente porque o “desenvolvimento desigual” focaliza mais na relação entre as classes trabalhadoras dentro do estado nação e a “composição de classe” mais na constituição antagonística da classe operária dentro do processo internacional de produção e exploração. Desse modo nós podemos ver que os conceitos são claramente produtos de suas épocas.
Mas essa diferença em perspectivas também reflete diferentes pontos de vista políticos. Ao contrário de Marx, Lênin e Trotsky nunca entenderam realmente ou apreciaram a natureza política do processo de produção – e assim a base material para a “auto-organização” operária. Para eles a “natureza revolucionária” do trabalho fabril consistia primariamente em “disciplinar a força do processo de trabalho” e na mera quantidade de operários reunidos sob um mesmo teto. Eles estavam menos interessados em como a classe operária organizava a si mesma concretamente, e mais em como as lutas operárias poderiam ser manobradas no mapa global da guerra de classes.
Ao mesmo tempo o conceito de “desenvolvimento desigual” aponta para insuficiências na análise de companheiros do operaísmo em visualizar um processo revolucionário internacional além de “espalhar greves” e demandas salariais no interior de indústrias integradas. O conceito de “desenvolvimento desigual e combinado” nos diz mais sobre os diferentes modos como “programa político comunista” seria articulado em diferentes regiões, dependendo dos seus diferentes níveis de desenvolvimento – e o desafio de encontrar meios de unificação. Algumas pessoas dizem que “o operaísmo nunca resolveu a questão organizacional”. Uma explicação parcial para o fato de que os camaradas nunca desenvolveram modelos de “poder associativo” está em que eles focalizavam muito nos fortes vínculos orgânicos no interior do processo de produção imediato como as principais artérias de “organização” operária. Esse foco unidimensional levou a uma falta de estruturas organizacionais conscientes que poderiam cobrir as lacunas entre a indústria e a periferia da classe. Assim, não é surpreendente que quando confrontados com uma situação global complexa com laços industriais improvisados, muitos companheiros do operaísmo retrocederam para um anti-imperialismo simplista (como uma “frente unida de Detroit e vietcongues”).
O que ambos os conceitos têm em comum é que eles baseiam suas propostas políticas para a classe operária em estratégias que invertem o desenvolvimento do capital em organização e poder da classe operária. Os conceitos estão baseados em “centros” e “desenvolvimento”. Isso apresenta limites materiais para a sua aplicação crua na situação atual, que não está caracterizada por “setores centrais” claros ou rápido desenvolvimento industrial em áreas antes atrasadas. Isso significa que nós temos que descartar esses conceitos e, como muitos companheiros fazem, retratar a atual estrutura da classe operária global como uma massa empírica indistinta de atomização? Pode soar eclético, mas nós pensamos que há certos elementos desses conceitos que podem ser testados ao serem aplicados para analisar movimentos contemporâneos da classe que ocorrem sob diferentes condições de desenvolvimento regional. Assim, por exemplo, nós podemos desenvolver uma análise comparativa dos atuais movimentos de protesto na França, Chile, Sudão e China, como propusemos na introdução. Para citar Mike Davis, cuja análise pode frequentemente ser muito crua e apocalíptica, mas ainda assim um passo adiante no debate:
“Num alto nível de abstração, o período atual de globalização é definido por uma trilogia de tipos ideais econômicos: superindustriais (a costa do leste asiático), financeiro/terciário (norte atlântico) e hiperurbanizado extrativo (oeste africano). ‘Crescimento sem emprego’ é incipiente no primeiro, crônico no segundo e absoluto no terceiro. Nós podemos adicionar um quarto tipo ideal de sociedades em desintegração cujas tendências dominantes são a exportação de refugiados e trabalho migrante. O marxismo contemporâneo precisa ser capaz de examinar o futuro das perspectivas simultâneas de Shenzen, Los Angeles e Lagos se quer resolver o quebra cabeças de como categorias sociais heterodoxas podem se encaixar em uma resistência singular ao capitalismo”.[30]
A “composição de classe” nos fala sobre as estruturas organizacionais já existentes (potencialmente) da classe local e sobre a necessidade de “poder associativo” para cobrir as lacunas no tecido social produtivo. O “desenvolvimento desigual” pode nos dizer mais sobre como, por exemplo, as demandas salariais das greves selvagens na China e os protestos contra os regimes corruptos e preços dos combustíveis no Sudão, onde a China possui participações majoritárias na indústria petrolífera, pode se “combinar” em mais do que apenas a soma das suas partes. Desafortunadamente, há apenas alguns poucos esforços em analisar a classe operária global além da descrição empírica. A moldura de Beverly Silver com “soluções tecnológicas, produtivas, espaciais e financeiras” e “negociação no local de trabalho e poder associativo” é uma muleta útil, mas permanece muito descritiva e focada nas “mudanças nos centros de desenvolvimento” mais do que na questão de como as lutas nas condições de desenvolvimento e subdesenvolvimento podem se combinar:
“Nossa análise da globalização da produção em massa na indústria automobilística mundial no capítulo 2 concluiu que a relocalização geográfica da produção não criou uma corrida simples em direção ao fundo. Ao invés, nós encontramos um padrão recorrente no qual a relocalização da produção tendeu a criar e fortalecer novas classes operárias em cada novo local preferido de investimento. Enquanto o capital multinacional era atraído pela promessa de trabalho barato e controlável, a transformação forjada pela expansão da indústria também transformou o equilíbrio de forças das classes. O forte movimento trabalhista que emergiu foi bem-sucedido em elevar salários, melhorando condições de trabalho e fortalecendo direitos dos trabalhadores. Além disso, eles frequentemente desempenham um papel de liderança em movimentos democráticos, empurrando para a agenda transformações sociais que vão bem além daquelas visadas pelas elites pró-democracia”[31].
Em nossa busca para para entender a classe operária global nós não podemos nos basear nas definições predominantes de desenvolvimento e subdesenvolvimento. Aqui ambos os conceitos podem nos ajudar a desenvolver um entendimento de “desenvolvimento” do ponto de vista do poder de classe e potencial para o comunismo. O crescimento do PIB ou declínio da renda per capita não nos diz muito sobre que tipo de desafio a região iria encarar em uma situação de turbulência global e insurreição. Nós não podemos dizer como a contradição de produtividade social e coletividade de um lado e empobrecimento e atomização de outro iria desempenhar em movimentos de classe regionais específicos. Aqui nós temos que criar nosso próprio entendimento de desenvolvimento. Nós teremos primeiro que determinar o quão coesivo é o processo de produção social em uma região, então, por exemplo, qual porção da população pobre está no trabalho assalariado, trabalha em grandes empreendimentos, trabalha em indústrias integradas? Nós temos que ver como uma região está integrada na economia global, não apenas através do comércio, mas mais crucialmente, por ser parte de uma divisão global de trabalho ou intercâmbio através da migração do trabalho. Conscientemente ou não, qualquer movimento regional de classe está limitado pelo grau de dependência da região da importação de bens essenciais, como alimentos, energia, matérias-primas,. Se a economia da região depende pesadamente de produtos minerais, o estado vai ser provavelmente mais capaz de pacificar operários do setor mineiro através de concessões materiais. Se a região depende pesadamente de alimentos ou combustíveis importados e não tem uma forte base industrial, o movimento regionalmente isolado da classe vai estar mais provavelmente limitado a demandar uma redistribuição mais justa e uma política de preços do estado. Um indicador adicional de desenvolvimento que tivesse impacto em qualquer movimento regional de classe é a posição da região no que se refere a acessar “meios de produção de meios de produção”. Em outras palavras, se há uma indústria local de máquinas e eletrônicos, e a extensão em que a região produz ou depende de conhecimento produtivo global. A região em que uma porção substancial da classe operária está em contato com essas indústrias vai ser mais provavelmente capaz de ir além das demandas por redistribuição e desenvolver visões por uma verdadeira transformação social. Há finalmente a questão de como o status desenvolvido e subdesenvolvido da região é mediado politicamente, por exemplo se o subdesenvolvimento é visto como resultado de corrupção local ou governantes autocráticos. Mais significativamente, nós temos que ver o quão desenvolvida é a experiência de luta na classe operária regional.
O desafio não é se esconder da complexidade da situação, na qual partes da classe global estão confrontadas com economias de guerra de estados falidos, outros dependentes de matérias-primas (mineração, monoculturas, petróleo) e da subsequente volatilidade de seus preços, outras com o peso de serem o chão de fábrica de bens manufaturados, outros com a austeridade da desindustrialização. Dificilmente alguma dessas situações está nitidamente demarcada por fronteiras nacionais. Diferentes níveis de desenvolvimento dividem nações e fronteiras nacionais, tal como a fronteira Estados Unidos-México por exemplo corta áreas industriais inteiras pela metade. Isso parecia mais simples de fazer quando as duas categorias principais eram as colônias agrárias ou regimes despóticos de um lado e as regiões industriais democráticas do outro. Hoje a questão do campesinato ou luta por democracia parlamentar foi largamente secundarizada e substituída por complexas diferenças regionais no desenvolvimento de meios e forças de produção. Por exemplo, nós podemos distinguir entre regiões dominadas por:
* trabalho industrialmente combinado sob condições políticas de estado democrático/acesso a bem-estar social;
* uma situação em que lutas operárias e lutas “por democracia” ainda estão mais interligadas;
* “economias extrativas”, com uma pequena porção de (outros) trabalhos industriais e formas políticas mais coercitivas na qual a redistribuição estatal é central;
* semi-proletarização (famílias dependendo na metade de salários e metade de produção de subsistência), crise do campesinato e forte migração interna;
* um alto nível de emprego urbano, relações de trabalho informais, economia mafiosa e formas violentas de mediação política;
* regiões dominadas por economias de guerra, disputas militares (nacionais, religiosas) e/ou “estados falidos”.
O próximo passo seria entender como lutas de diferentes categorias regionais, tais como as de regiões arrasadas pela guerra e regiões dominadas por indústrias extrativas se correspondem, e como elas podem ser capazes de influenciar umas às outras. Em cada uma dessas “regiões” o papel e o relacionamento de operários em centros industriais, pobres urbanos e rurais, estudantes e outros segmentos da classe serão diferentes. Lutas em cada região vão se relacionar diferentemente com relação à questão da riqueza capitalista e sua distribuição ou à questão do poder estatal. Nós teríamos que analisar a atual onda global de protestos, do Sudão ao Chile, contra o pano de fundo dessa categorização.
Uma análise do ponto de vista de diferentes estágios de desenvolvimento, ao invés de estados nação ou “norte X sul” iria esperadamente nos permitir entender coisas como quão longe realmente vai o alcance de lutas operárias em novos centros industriais (delta do Rio Pérola, etc.) tanto localmente como globalmente, e em qual extensão suas experiências teriam que ser politicamente mediadas por organizações de classe de forma a atingir os segmentos mais marginalizados. Para ser capaz de fazer isso nós vamos ter que situar as regiões dentro da dinâmica global do capital. Nós temos que ver quais elos materiais existem entre as regiões, elos que facilitem a comunicação e coordenação das lutas. O que queremos dizer com isso, o que são esses elos? O desenvolvimento global da crise econômica é desigual e o impacto varia em sua forma, mas ele estabelece um contexto global para todas as lutas. Tornar-se trabalhador assalariado por ser expulso ou perder os meios de subsistência é um fenômeno global, criando uma experiência social similar para camponeses na Índia ou Bolívia. Isso cria uma condição comum, mas isso por si mesmo não cria elos materiais como tais. A experiência de trabalhadores migrantes solapa a existência regional e nacional dos movimentos de trabalhadores e conecta trabalhadores, mas não sem reforçar “sentimentos nacionalistas/protecionistas” na classe operária local. Cadeias de suprimento globais conectam locais de trabalho individuais e regiões, mas há um limite para a extensão na qual a “cooperação produtiva” pode realmente ser experimentada em termos de criar laços diretos entre trabalhadores, se, por exemplo, um oceano inteiro se estende entre eles. Movimentos de classe por si mesmos criam suas próprias formas de comunicação global, apensar de que isso é bastante aleatório, como por exemplo manifestantes por toda parte usando essas máscaras de Guy Fawkes.
De modo a fazer essas condições variadas mais debatíveis para o desenvolvimento de algum tipo de estratégia global, talvez nós tenhamos que ser mais esquemáticos. Décadas de neoliberalismo levaram ao pensamento pós-moderno na intelectualidade de esquerda, o qual pode apenas focalizar nas diferenças. Talvez agora seja o momento de entranhas e cérebros fazerem algum pensamento estratégico e universal.
Nós teríamos que categorizar seis ou sete principais “condições da classe operária”/estágios de desenvolvimento sob as quais a classe operária atualmente existe e analisar que tipo específico de poder material e limitações políticas as lutas sob essas respectivas condições desenvolvem. Nós temos que ver como essas regiões são entrecruzadas pela espinha dorsal material que conecta trabalhadores além das fronteiras regionais, tais como através do processo das indústrias globais e migrações. Nós finalmente temos que contrastar nosso vocabulário teórico com as lutas atuais que estão acontecendo nas diferentes regiões e ter a mente aberta o suficiente para ver eles desafiarem as nossas abstrações. A meta não é encontrar a mágica “alavanca revolucionária” ou a nova imagem “operária” messiânica, mas encontrar as vias potenciais das lutas em andamento para unificar e fortalecer cada uma através das barreiras impostas pelo sistema. Baseados nisso nós podemos visualizar o que um “Manifesto Comunista” poderia ser hoje, não em termos de uma lista de demandas ou decretos, mas como medidas transicionais concretas que qualquer insurreição teria que tomar para superar seu isolamento.
Tudo isso é um imenso esforço teórico e empírico, que só pode ser desenvolvido por um debate organizado entre camaradas pelo globo – o que nos leva para a questão da organização.
Notas
[1] Há apenas alguns artigos que tentam analisar as atuais insurreições no quadro mais abrangente de uma classe operária global: “As revoltas de 2019 refletem o crescimento e vitalidade da classe operária global. Em torno de 1.8 bilhões de pessoas agora estão no trabalho assalariado, um aumento de 600 milhões desde 2000. A classe operária é não apenas vasta, ela está também concentrada em vilas e cidades mais do que nunca antes. A porção urbana da população global aumentou, desde 2000, de 47% para 56% – um adicional de 1,4 bilhões de pessoas vivem em situações urbanas comparado com duas décadas atrás. A combinação de urbanização e proletarização está refletida em muitos dos países no atual ciclo de revoltas. A força de trabalho urbana do Chile aumentou de 3,7 milhões em 1990 para 7,3 milhões no ano passado; no equador de 3,3 milhões em 2000 para 5,1 milhões em 2018. Eu voltarei à discussão da natureza das novas forças de classe criadas pelo capitalismo e como elas estão implicadas na revolta, mais abaixo”. http://isj.org.uk/a-new-cycle-of-revolt/?fbclid=IwAR3m14OKceuScR9IPkHrQYtRhjbqKEkBoMI9jxsv7hFJJwQknuNStnc6nRA#footnote-10080-3
[2] Muitos textos permanecem no nível superficial das formas imediatas e demandas dos movimentos e então são forçados a compensar a falta de profundidade com linguagem poética: O Ano em Lutas
[3] https://angryworkersworld.wordpress.com/2019/12/21/labour-defeat-thoughts-on-democratic-socialism/
[4] Esse ainda é um dos mais avançados textos tanto em termos de direção política como empírica: https://libcom.org/library/global-working-class-wildcat-germany
[5] Enquanto nós enfatizamos a necessidade desse tipo de debate teórico, nosso foco nos últimos seis anos foi colocar “considerações estratégicas” em prática: ao nos engajar em enquete operária e trabalho organizacional concreto no oeste de Londres. Nós encorajamos os leitores a ler e discutir o livro: https://pmpress.org.uk/product/class-power-on-zero-hours/
[6] O fato de que esse é um esquema bem grosseiro é revelado pela significação dos operários industriais na luta contra o apartheid na África do Sul ou contra os regimes despóticos na Polônia ou Coreia do Sul nos anos 1980.
[7] https://marxists.catbull.com/archive/marx/works/1845/03/list.htm
[8] Trotsky citado em: “Profetas desarmados – trotskistas chineses em revolução, guerra, prisão e o retorno do limbo” (editor: Gregor Benton)
[9] Trotsky citado em: https://www.rs21.org.uk/2017/02/15/revolutionary-reflections-uneven-and-combined-development-modernity-modernism-revolution-3-cartographies-and-chronologies/
[10] Trotsky citado em: “Desenvolvimento desigual e combinado: modernidade, modernismo, revolução”, de Neil Davidson. Clique para acessar 84340602.pdf
[11] Trotsky citado em: “Testemunhas da revolução permanente – o registro documental” (editor: Day/Gaido)
[12] https://www.marxists.org/archive/trotsky/1930/hrr/ch01.htm
[13] “Desenvolvimento desigual e combinado: modernidade, modernismo, revolução”, de Neil Davidson
[14] Ibid
[15] Beverly Silver, Forças do Trabalho. Clique para acessar: Beverly_J._Silver-Forces_of_Labor__Workers%27_Movements_and_Globalization_Since_1870_(Cambridge_Studies_in_Comparative_Politics)__-Cambridge_University_Press(2003).pdf
[16] “Desenvolvimento desigual e combinado: modernidade, modernismo, revolução”, de Neil Davidson
[17] “Desenvolvimento desigual e combinado: modernidade, modernismo, revolução”, de Neil Davidson
[18] Críticos do operaísmo tendem a focalizar em poucas “cabeças intelectuais” e ignoram ou não estão cientes de várias iniciativas da classe operária e intelectuais operários que saíram da era da autonomia operária. O texto mais recente que está baseado nessa omissão foi escrito pelo ex-camarada David Broder, que precisa da descaracterização do operaísmo para fazer o PCI e sua política de contenção da classe operária aparecer como a única alternativa disponível: https://catalyst-journal.com/vol3/no4/the-autumn-and-fall-of-italian-workerism . Para uma boa documentação sobre a ala operária do operaísmo:
https://libcom.org/history/porto-marghera-–-last-firebrands
[19] https://libcom.org/library/class-composition-sergio-bologna
[20] Trabalhador massificado e trabalhador social: reflexões sobre a “nova composição de classe” (1981), de Alberto Battaggia, Felice e Campanile. https://notesfrombelow.org/article/mass-worker-and-social-worker
[21] Ibid
[22] Clique para acessar alquati_mittelpunkt.pdf
[23] Lênin, Imperialismo, estágio superior do capitalismo. https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1916/imp-hsc/
[24] Ferrari Bravo, velhas e novas questões na teoria do imperialismo. https://www.viewpointmag.com/2018/02/01/old-new-questions-theory-imperialism-1975/
[25] Ibid
[26] Ibid
[27] Ibid
[28] Ibid
[29] Bolonha, Tribo das Toupeiras. https://libcom.org/library/tribe-of-moles-sergio-bologna
[30] Mike Davis, Velhos deuses, novos enigmas. https://catalyst-journal.com/vol1/no2/historical-agency-davis
[31] Beverly Silver, Forças do Trabalho
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