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08 nov 2020

Desde um Brasil colapsado

Este é um texto escrito em setembro de 2020 a partir do filme “Espero tua (re)volta” para o 19 º EDOC (Encuentros del otro cine, festival internacional de cine documental) no Equador.

Desde um Brasil colapsado, contabilizando já mais que 130 mil mortes por COVID19 e tantas outras vidas ceifadas pela violência policial, pela fome e por tantas outras chagas que há 500 anos assolam nosso povo, queremos relembrar com algumas poucas notas o sentimento das lutas que tomou nosso coração com a ocupação das escolas que aconteceu alguns anos atrás.

Escrevemos nós três, militantes, ativistas, uma vinda da luta por moradia nas periferias, outro que esteve diretamente envolvido, como parte dos estudantes que assumiram o protagonismo político pelo curto mas riquíssimo período em que as escolas funcionaram sob o controle dos estudantes e um outro que teve contato e construiu suas militâncias no processo depois das ocupações 

Há muitos anos temos visto e vivido uma certa corrosão das esperanças de que se possam resolver os problemas da população mais pobres através dos caminhos de sempre, das eleições, da democracia representativa e liberal que vivemos. No Brasil, o mesmo período em que mais jovens negros acessaram o ensino superior foi também aquele em que nos tornamos o 3º país mais encarcerador do mundo, sendo que nas cadeias predomina a privação de todas as liberdades de nossos irmãos, jovens, negros e negras, pobres.

A desconfiança em relação às formas tradicionais da política institucional foram se acumulando. Desconfiança em relação aos sindicatos – em tempos de trabalho tão precarizados – em relação aos partidos – e sua política velha, sem potência e cheia de acordos nojentos – e aos políticos – que dizem nos representar mas, em sua maioria, não viveram o que vivemos e não caminham pelos territórios violentos onde as nossas vidas habitam.

Fotograma: Espero tua (re)volta, de Eliza Capai

Desde 2013 a juventude das favelas e periferias vinha tomando a frente em expressar essa revolta acumulada no subterrâneo da vida, embora carente de mais e melhores instrumentos para pensar a própria revolta já que as esquerdas tradicionais sumiram dos bairros pobres já nos anos 90, quando abandonaram o trabalho enraizado e decidiram que as eleições eram sua prioridade.

Quando as lutas por transporte explodiram em junho de 2013, parte dessas esquerdas condenava os protestos dizendo que se eles não eram organizados do modo tradicional, não eram legítimos. Ao invés de se somar à voz indignada da multidão de jovens nas ruas, o que fizeram foi condenar e deixar o espaço vazio para que conservadores oportunistas  disputassem influência sobre essa raiva um tanto confusa.

Quando explodiram as lutas com as ocupação das escolas em 2015, conectada de algumas formas com 2013, a autogestão protagonizada pelxs estudantes, a exigência de autonomia que empunhavam sempre que organizações tradicionais tentavam se apoderar dos rumos ou enquadrar os modos de fazer, mostrou que a profunda desconfiança na política tradicional não era necessariamente conservadora: ela poderia também apontar para um horizonte de autonomia e auto-organização.

O movimento estudantil brasileiro é bastante concentrado em universidades públicas e escolas de referência, não é tão ativo nos bairros pobres além de ser bastante instrumentalizado nas disputas partidárias quando é conveniente. O que é subvertido em 2015, quando a juventude das periferias, protagonista absoluta da ocupação de escolas Brasil afora, que não tinha e nem tem motivos para confiar ou se identificar com este movimento partidário, parece se encontrar numa luta que lhes fazia sentido, sendo construída horizontalmente e em nome dxs próprios estudantes. 

Em 2015, nos deparamos com uma contradição de um decreto governamental de fechamento de quase 100 escolas no Estado de São Paulo, isso em um país que vive com o problema da superlotação de salas de aula. Em meio aos protestos já esgotados um grupo de estudantes decide então retomar a experiência acumulada do nosso povo que em 2012 no estado do Mato Grosso ocupou uma escola, e em 2006 e 2011 no Chile os pinguinos tomaram as escolas contra a precarização e privatização do ensino. Da experiência Chilena e Argentina de tomada de escolas foi traduzida a cartilha “Como Ocupar um Colégio”, esse material se tornou o manual de organização inicial dentro das escolas, que depois das primeiras 3 ocupações não pararam de crescer até atingir mais de 220 escolas ocupadas. Ao redor do Brasil em diferentes tempos aconteceram ocupações no Maranhão, Mato Grosso do Sul, Bahia, Ceará, Goiás, Rio de Janeiro, e Paraná que em 2017 contra os cortes na educação chegou a ocupar mais de 1000 escolas.

Quanto puderam aprender a organizar-se e a desenhar sua independência individual e política durante o processo de lutas?! Em muito, fruto de um processo de apropriação da escola como um lugar possível, escolas em seus territórios, com as pessoas que conviviam diariamente como um lugar novo, onde se podia conversar sobre gênero, raça e sexualidade, a escola ocupada como um lugar que fazia sentido para esses jovens.

Fotograma: Espero tua (re)volta, de Eliza Capai

A juventude que tomou as escolas é a mesma que tomou as ruas em 2013, são jovens desempregados, precarizados, trabalhadores informais, negros e negras, que já nasceram em um momento histórico de retirada de direitos, privatizações, desemprego estrutural e aumento do cárcere e genocídio dentro dos bairros e favelas. Essa juventude não aprendeu a se amarrar a nenhum partido ou entidade estudantil, sua chama de rebeldia se rebela contra todas essas estruturas que se fundiram com o Estado e abriram as portas para as retiradas de direitos do nosso povo. A condição da atual juventude é de não conseguir reproduzir se quer a condição financeiras de seus pais, não têm condições de alugar ou comprar uma casa, de estruturar um lar, ter um emprego estável ou mesmo se aposentar dignamente no futuro. É na falta de perspectivas que foram arrancadas pelos de cima que essa geração nutre sua revolta ingovernavel e autônoma. 

Podemos pensar o que ficou das lutas estudantis: O ideal de subversão da escola como um espaço próprio dos que a frequentam, xs estudantes, e que faz sentido individual e coletivamente – por mais atacada que seja pelo estado com a militarização ou as ameaças de privatização – permaneceu de algumas formas nas organizações “Secundaristas”. E desde então, todos os anos se vê pequenas revoltas e mobilizações contra autoritarismos e repressão dentro de escolas, organizadas pelos próprios estudantes em sinal de resistência.

Mesmo com tanta repressão, que até hoje não cessou, as ocupações secundaristas mostraram a potência da juventude auto-organizada, que pensa e quer ter sua voz ouvida, que é política e quer construir não só uma escola, mas uma sociedade das liberdades. 

Se depois de 5 anos que o processo de ocupações começou as organizações tradicionais e institucionalizadas do movimento estudantil (como a UEE, mostrada no filme) reivindicam-se como lideranças desse movimento, só demonstram sua própria fragilidade. Na época foram duramente questionadas pelos estudantes ao tentarem, por diversas vezes, negociar com o governo em nome das escolas ocupadas – que por sua vez reivindicavam, em sua maioria, decisões de assembleias autônomas. A chama que se propagou desde as bases e raízes e se alastrou pelas escolas do Brasil inteiro mostrou que da desorganização do poder autoritário pode nascer o autocontrole popular, desorganizando para reorganizar e essa foi a condição das escolas ocupadas por meses, funcionando como o mais democrático programa popular de educação, convertidas em espaços de cultura, respeito e dignidade. Se não somos nada para o Estado sejamos tudo sem ele.

Helena Silvestre – Militante do movimento de moradia, co editora da Revista Amazonas e parte da Escola Feminista Abya Yala na periferia sul da cidade de São Paulo.

Kaique Menezes – Morador do extremo sul da cidade de São Paulo, militante autônomo e estudante de Geografia. Ex-secundarista na Escola Técnica Estadual Di Cavalcanti.

João Seixas – Morador do extremo sul da cidade de São Paulo, participou ativamente do processo de ocupações de escola em 2015 e 2016 quando era estudante da rede pública estadual. 

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