Zumbi é o nome do líder legendário que conduziu a resistência no Quilombo dos Palmares. No centro de São Paulo, no entanto, zumbi é um termo pejorativo para rotular as pessoas em situação de rua que vivem na região da Cracolândia. Uma referência aos cadáveres ambulantes que são antagonistas em um gênero de filmes de horror.
A associação acontece não só pelo aspecto das pessoas miseráveis, esfarrapadas e sem banho, que se aglomeram na parte central da cidade, mas também em uma leitura que a droga elimina a capacidade de pensamento. Assim, é criado um imaginário em que as pessoas deixam de ser seres humanos, podem ser espancadas pela Guada Civil Metropolitana ou internadas à força. Estão possuídas pelos supostos poderes demoníacos da droga.
Do mesmo modo que os zumbis dos filmes surgiram a partir de uma releitura racista do voodoo do Haiti. As lendas locais se misturaram a uma visão que encara a religião afrocaribenha como feitiçaria. Ao longo do século 20 os zumbis foram se tornando essa ameaça de uma multidão que se levanta para devorar a civilização. Podem ser alvo de tiros, facadas, lança-chamas e qualquer outro fetiche de violência – afinal, já estão mortos.
As massas que se revoltam para destruir a civilização ocidental podem ser vistas como uma lembrança do medo que a revolta das pessoas escravizadas no Haiti trouxe para os corações das metrópoles coloniais. Pelas décadas seguintes foi feito um grande esforço de narrativa para apresentar como uma vitória da barbárie a revolução que livrou a ilha caribenha do domínio colonial. A relação com os mitos dos zumbis e esse terror dos imperialistas já foi apontada por diversos autores.
Uma pista, inclusive, está na Noite dos Mortos-Vivos, de George Romero, filme que em 1968 consagrou o gênero no formato que chegou até a série The Walking Dead. No fim da história, o sobrevivente do ataque da multidão de zumbis, um jovem negro, é morto por uma milícia de homens brancos, que atira antes de checar se o homem era um morto-vivo.
O discurso sobre as drogas funciona para criar essa mesma confusão na Cracolândia. As próprias estatísticas do governo estadual mostram que 28% dos que vivem na região não usam drogas ilegais (a metade usa álcool e a outra metade não usa nenhuma substância). O local é um ponto de encontro para todas as pessoas que não encontram outro lugar na cidade – por terem transtornos mentais, por terem saído arrasados física/psicologicamente da prisão, por terem sido expulsas de suas famílias pela orientação sexual.
O consumo abusivo de drogas surge nesse contexto como uma consequência dessa extrema vulnerabilidade. Por isso, que em outras partes do mundo, as políticas para lidar com esse tipo de situação com mais resultados são as de “moradia primeiro”. Ou seja, toda a estratégia de cuidado é pensada a partir de reduzir as condições que levaram ao uso problemático das substâncias, a começar pela falta de moradia (não os abrigos temporários e albergues).
Mas todos os direitos dessa população complexa e plural que ocupa o centro da capital são negados a partir do discurso da guerra às drogas. Uma construção ideológica que tornou ilegais substâncias usadas milenarmente por culturas de povos submetidos à colonização. A folha de coca, de onde é extraída a cocaína (crack é cocaína fumada) é um produto fundamental para os povos andinos.
A demonização da substância – que ocupa o papel da feitiçaria na criação dos zumbis sem alma – é a forma encontrada para negar as devidas reparações históricas a enorme maioria de pessoas negras que compõe o fluxo da Cracolândia. Ali, as frequentes operações policiais, que opõe soldados fortemente armados contra pessoas que mal tem a roupa do corpo, mostra o tamanho do medo que é evocado por aquelas pessoas, que se unem para continuar existindo. Um temor profundo de que a comunidade dos despossuídos possa se levantar e devorar os herdeiros da colonização.
Daniel Mello é jornalista, documentarista e poeta. Militante d’A Craco Resiste e autor do livro Gargalhando Vitória – poemas da cracolândia.
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