
Nesta manhã abrir os olhos e simplesmente se levantar foi algo difícil para ele. Mas assim o fez, como fez também todos os demais gestos e movimentos mecânicos que fazemos ao acordar, gestos estes que vez por outra eram intercalados com caretas, sussurros, palavrões e lágrimas imperceptíveis, mas que certamente lhe molharam retina a dentro.
O momento sagrado do banho lhe deu a deixa para recordar daquela sua outra vida, na qual é possível morrer saltando de paraquedas, despencando para sempre num abismo inexplicavelmente fundo ou por balas disparadas por um transeunte qualquer. E, mesmo após tantas torturas e mutilações, essa sua outra vida lhe permite sempre recomeçar, íntegro, sem cicatrizes ou sequelas. Esta dimensão ímpar de sua existência na qual passado, presente e futuro se fundem, perdem as bordas, na qual o campo do possível sempre dá as caras, é o que por falta de termo melhor denominamos sonho.
E assim, com o cair das primeiras gotas de água quente no piso opaco do banheiro, sua mente foi tomada por um transe silencioso, cheio de névoa, cor e desejo. O ato de fechar os olhos lhe despertou o ouvido interno, começou a escutar uma música que vazava pelas paredes. Ainda de olhos fechados se perguntou de onde este som vinha, tentou distinguir o ritmo que se confundia ao barulho do chuveiro e com a água que caia em sua cabeça. Não tinha dúvidas, entretanto, de que a música tinha algo de urbano, algo de dançante, algo de noturno. Talvez uma transa entre o Hip-Hop e o Jazz.
Pensou que estivesse voltando a dormir, mas logo percebeu que estava apenas lembrando do sonho da noite anterior. Respirou fundo… se desinteressou por tudo aquilo. Ele nutria a opinião de que os sonhos em muito atrapalham a vida, pois neles quando não estamos em apuros ou a ponto de morrer por alguma coisa idiota e sem explicação, somo levados a acreditar que vivemos uma vida infinitamente mais saborosa que a nossa. Expirou… e este gesto mudou o seu dia.
Quando as camadas da memória já recobriam com indiferença a paisagem onírica de nosso amigo, o ato de jogar o ar para fora fez com que um solo de flauta irrompesse, e essa associação espontânea fez com que o deleite do sonho se instalasse de vez em seu corpo-mente. De repente se viu em uma sala, viu garrafas de bebida, viu pessoas a conversar. O ar estava quente, o ânimo de todos ali vibrava e parecia fazer coro com a música que saia dos altos falantes. Olhou suas mãos, riu, percebeu que estava chapado, e feliz. Riu mais um pouco, até ser cortado por uma voz que disse:
É antes o caos quem inventa as melhores ordens!
Nada sossega
Nem coisa, nem gente
Mas tudo sucede.
Trações, interações e dispersões
O ciclo das coisas
Os gestos da mente
As forças que conduzem a inquietação humana pelo espaço-tempo.
Ouviu aplausos, e aplaudiu também. Antes que pudesse terminar de assimilar o sentido das palavras anteriores, ele foi chamado ao palco. Subiu, disse alguns versos e agradeceu a atenção dos presentes. Desceu do palco pensativo, ciente de que poetas morrem pobres mas que sabem amar a vida como poucos.
Abruptamente toda essa miríade de imagens foi embora pelo ralo. A consciência do tempo lhe puxa novamente a esta vida cronologia, lógica, na qual há prazos, metas, hora de entrada e hora de saída do trabalho. Diferentemente das regras e convenções que pautam o dia-a-dia nas empresas, escolas, faculdades e comércios, a temporalidade interna de nosso amigo não se guia pelo ponteiro do relógio, é antes um mar sem praias, fim ou começo. E sua consciência percorre lugares sem precisar da ajuda de avançados serviços de localização, pois ele não se esqueceu que as fronteiras sempre foram linhas imaginárias.
Mochila feita, cama arrumada, gato alimentado, tênis no pé, café em uma mão, primeiro cigarro do dia na outra, a certeza de que o pequeno atraso por conta do banho demorado vai lhe custar o lugar no ônibus, um olhar condescendente do chefe e alguma desculpa sincera porém inventada.
Andando pela rua, os versos que disse em sonho se insinuaram, cairam por seus lábios:
Há dizeres que cauterizam feridas
Há dizeres que abrem veredas
Há palavras bálsamo, que realizam o luto
Há palavras ato, que convocam à luta
Há gramáticas esterilizantes, que se irmanam da morte
Há gramáticas pulsantes, que se convertem em vida
Deu uma gargalhada, a lembrança inesperada o deixou surpreso, meio besta. Anotou rapidamente as palavras em seu caderno e quase perdeu o busão. Deu sinal, entrou, por sorte ainda havia um lugar vago, mas isso agora pouco importava, pois neste dia viveu mais no sonho do que na realidade.
Por Gutto – Sobrevivente do extremo sul de SP, observador da vida que como tinta teima em colorir as esquinas desbotadas das bordas do capital; amante das palavras e sofredor, logo poeta; preocupado com a alquimia das ideias, me fiz filósofo, por diversão e por necessidade; incomodado com a nossa subalternização diária, sou mais um daqueles pretxs, pobres e putos que dizem não.
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