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18 fev 2021

Avante bárbaros!

Essa é uma tradução resumida do artigo Onward Barbarians postado originalmente no site End Notes.

No início da pandemia, com o lockdown e as medidas repressivas por parte dos Estados, se interromperam as lutas massivas que estavam em curso no Chile, França, Bagdá, Beirute e Hong Kong. Parecia para alguns (aqui, aqui e aqui) que haveria uma paralisação da luta de classes, mas essa impressão inicial foi logo abalada. Em Maio de 2020, a revolta retornou às ruas no Chile junto a um grande movimento de cozinhas auto organizadas para fazer frente à fome causada pela redução de renda. No México, tumultos explodiram após o assassinato de Giovanni López, trabalhador da construção civil morto pela polícia ao ser abordado por estar sem máscara. Nos EUA e na Alemanha, trabalhadores da Amazon iniciam greves contra os protocolos ineficientes de segurança contra a COVID-19. Na sequência, um movimento de massa de tamanho sem precedentes varreu os Estados Unidos em repulsa pelo assassinato de George Floyd por policiais. Iniciado em grande parte por residentes negros de Minneapolis, o levante foi rapidamente acompanhado por americanos de todos os lugares, raças e classes.

A agitação global seguiu com protestos em El Salvador contra a piora dos padrões de vida e pelo fim dos bloqueios. Em julho, ocorreu a invasão do parlamento sérvio contra o toque de recolher. Na Etiópia explodiram manifestações violentas devido ao assassinato do cantor popular Haacaaluu Hundeessaa, resultando em 150 mortos. Protestos contra a violência policial (que matou 20 pessoas com a desculpa do toque de recolher) explodem nas favelas de Nairóbi, Quênia. Logo em seguida se iniciam mega protestos contra a violência policial na Nigéria. Em Belarus, um levante contra reeleição fraudulenta Alexander Lukashenko estremece o país. Tumultos violentos ocorrem na Colômbia após o assassinato de Javier Ordóñez pela polícia. Revoltas contra a polícia e bloqueios ocorrem em Madri e Nápoles. E na Índia se desencadeia a maior greve geral da história.

O período atual pode representar uma virada das populações contra o sistema depois de décadas de declínio do crescimento econômico e crescimento do desemprego. O capitalismo vive a sua pior recessão global desde a década de 1930, com piores números de desemprego nos últimos 72 anos (US Bureau of Labor Statistics) e “o Reino Unido enfrentará seu declínio mais acentuado na produção desde 1706”, de acordo com o Banco da Inglaterra. Mundialmente as pessoas estão indo às ruas em escala sem precedentes em uma “confusão de identidades díspares reunidas por raiva pela deterioração das condições de vida, alienação, e a polícia”.

1 – UMA ACUMULAÇÃO GLOBAL DE NÃO MOVIMENTOS

A era de protestos que começou com a crise econômica de 2008 não terminou. Apesar de a maioria das revoltas desse período terem sido esmagadas pela repressão do estado, transformadas em guerra civil ou fossilizadas em partidos políticos que buscam administrar as economias estagnadas de nosso mundo, há uma crescente das lutas anti governamentais em conjunto com uma queda constante da legitimidade política desde 2008 (como é possível observar nos gráficos abaixo). A onda de levantes que surgiram em maio de 2020 indica que esse crescimento da turbulência seguirá cada vez mais intenso.

O eixo esquerdo (em vermelho) mostra o declínio constante na legitimidade política desde 2008, medida pela proporção de pessoas que expressam satisfação com a democracia

No caso do Chile, por exemplo, pode-se ver a continuidade dessas revoltas como um fio condutor que conecta os protestos massivos de estudantes secundaristas conhecido como Revolución Pingüina em 2006, as revoltas de 2011 e, agora, em 2019 e 2020, quando as massas foram às ruas e forçaram a revisão da constituição do país. Da mesma forma, nos EUA, o Occupy Wall Street em 2011 foi seguido pelo Black Lives Matter em 2013, que desembocou no maior movimento social da história do país esse ano.

Enormes manifestações, revoltas massivas e ondas de greve se tornaram o novo normal, mas isso não significa que estejamos caminhando para um ponto onde a revolução é inevitável, essa instabilidade pode simplesmente indicar nossa entrada em um mundo ingovernável. O que observamos desde 2008 é um aumento contínuo do que o sociólogo iraniano-americano Asef Bayat descreveu como “não-movimentos”, ou seja, “a ação coletiva de atores dispersos e desorganizados”, que não são em si mesmos revolucionários, mas são a expressão subjetiva do caos em que vivemos. São como “revoltas passivas”, refletindo a crescente deslegitimação da política num contexto de estagnação econômica e austeridade.  A crescente de não-movimentos envolvendo um número sem precedentes de pessoas somado ao declínio da legitimidade democrática, nos permite descrever a tendência de nossa era como a de produção de revolucionários sem revolução. A atual onda de instabilidade se tornou tão normalizada que mesmo a esquerda radical os rejeita por não cumprirem seus altos padrões: eles são muito liberais, muito violentos, muito passivos, muito informais, muito nacionalistas, muito parte do status quo, ou muito investido em políticas de identidade.

A atual onda de não movimentos é moldada pela decomposição de classe e fragmentação que desfaz as bases econômicas não só do movimento operário mas da própria representação democrática. Por isso, essas práticas frequentemente aparecem com as vestes de identidade. Ao mesmo tempo, teorias embasadas em, por exemplo, perspectivas “interseccionais” que vêem a classe como uma identidade entre outras, também são enfraquecidas por essa “confusão” pois é a própria estrutura de classe em ramificação que fez da identidade a categoria política central de uma sociedade capitalista estagnada. Além disso, a crítica externa à política de identidade não vem ao caso, pois os próprios não-movimentos apresentam uma crítica imanente de seus limites em sua prática diária. Eles revelam como homens e mulheres estão começando a conceber a realidade em categorias além dos imperativos da economia, ao mesmo tempo em que se chocam com as consequências do que muitas vezes é chamado de neoliberalismo. A política de identidade é, para nós, o modo necessário de politização de um sujeito neoliberal para o qual os predicados da identidade parecem ser simultaneamente essenciais e não essenciais, fortalecedores e enfraquecedores. Tal política não pode ser facilmente mapeada em uma divisão estratégica entre “real” e “social”, “classe trabalhadora” e “classe média”, “revolucionária” e “reformista”, porque sua operacionalização na luta leva a uma confusão de identidades, inclusive aquelas que a própria luta levantou.

As revoltas após o assassinato de George Floyd e a mudança nas atitudes raciais nos Estados Unidos, que foi apropriadamente chamada de “grande despertar”, são uma expressão desse padrão e revelam a natureza antropológica dos não-movimentos. O que estamos testemunhando é, em grande medida, um questionamento de costumes, representações e modos de reprodução que não cabem mais a um proletariado desindustrializado. No entanto, ao mesmo tempo em que milhões descem às ruas movidos por uma explosão coletiva de raiva e repulsa, essa revolta (ainda) não está ancorada em visões estratégicas ou programas concretos de superação do sistema capitalista. Assim, os não movimentos significam “uma revolução sem revolucionários” que aponta para o cerne disruptivo de nossa era, o fato de que a estagnação capitalista implica uma crise para a representação política como tal e, portanto, o fim dos movimentos políticos no sentido clássico.

O movimento social clássico é a mediação entre o povo desorganizado e o Estado que busca organizar ou mobilizar “o povo” como categoria administrativa e política, forçando uma uniformização interna muitas vezes através da repressão violenta de interesses ou mesmo da existência de grupos específicos. Em contraste, os não-movimentos expressam a dimensão antagônica da política de identidade, pois não podem constituir um povo e raramente sequer articulam demandas políticas ou positivas claras, ou às vezes produzem um fluxo interminável de demandas parciais e mesmo contraditórias. Os não movimentos aparecem como uma turba rompendo o status quo, eles revisam constituições, derrubam governos e forçam presidentes e primeiros-ministros a renunciar (como vimos recentemente no Chile, Peru e Guatemala). No entanto, porque representam a crise de um capitalismo estagnado, e seu efeito é tornar essa estagnação ingovernável, os não-movimentos apontam para a necessidade de um universalismo que vai além das ruínas dos movimentos dos trabalhadores. 

A lógica do não-movimento expressa a dimensão antagônica e a base social da “política de identidade” enquanto tal, seja ela de direita ou de esquerda. Em vez de evocar a ladainha de becos sem saída identitários, o objetivo é mostrar como um status quo cada vez mais perturbador está necessariamente repleto de problemas de identidade, e que qualquer discussão sobre a emancipação deve começar aqui.

O que estamos testemunhando hoje é uma confusão identitária generalizada. Podemos ver isso não apenas nos Estados Unidos, onde liberais com ensino superior estão derrubando estátuas e se uniram a proletários negros e um punhado de milicianos brancos em uma frente popular contra a polícia, mas também na França, onde outrora trabalhadores nas ruas cantaram a internacional, mas agora fazem seu grito de guerra “Aou! Aou! Aou! ” (do filme 300 de Zack Snyder ) e agitam bandeiras francesas enquanto profanam o monumento mais patriótico da França – o Arco do Triunfo. No Chile, o slogan “evadir”, levantada inicialmente por alunos do ensino médio – a verdadeira vanguarda dos levantes – contra o aumento das tarifas de transporte em outubro de 2019, logo se generalizou em um levante contra a austeridade e repressão policial que tomou como símbolo a bandeira indígena Mapuche, ao invés da vermelha ou bandeiras negras da esquerda. Com esses cantos e símbolos confusos, os não movimentos se declaram do lado dos “bárbaros” contra o estado (ou império) e passam a questionar um modo de produção que não pode mais produzir bem-estar ou prosperidade.  Eles expressam a necessidade de uma nova reprodução da existência cotidiana, uma necessidade que leva homens e mulheres a se revoltarem em todo o mundo em uma escala sem precedentes.

O Arco do Triunfo, monumento patriota francês, pixado por manifestantes coletes amarelos

2. CONFUSÃO E INGOVERNABILIDADE

Uma característica unificadora dos não-movimentos é que eles lutam no terreno de um capitalismo estagnado. Assim como a estagnação de seu próprio tipo de capitalismo levou à queda da União Soviética, a era atual de estagnação e desindustrialização levou ao enfraquecimento da social-democracia europeia, por meio de uma virada para a direita com o ascenso de partidos iliberais e, desde 2008, medidas de austeridade severas. Em reação, vimos nos não-movimentos o aspecto perturbador tanto dos valores liberais quanto da defesa das necessidades básicas de um proletariado miserável cada vez mais diferenciado em fragmentos nitidamente distintos. Mas essa fragmentação não acarreta necessariamente divisão. Ao contrário, muitas vezes força as pessoas a se unirem em alianças reais, mas débeis, como a dos “99 por cento”, ou o mosaico de grupos que se reuniram no estadillo social do Chile. Lá, os movimentos se voltaram para a canção de Victor Jara, El derecho de vivir en paz– “o direito de viver em paz” – não porque se identifiquem com o herói da canção (Ho Chi-Minh), mas porque a paz e mesmo a ordem se tornaram uma exigência radical em um mundo cada vez mais catastrófico.

O não-movimento não designa apenas as explosões de motins e ocupações de praças onde a classe média e o lumpemproletariado marginalizados; islâmicos e feministas; milicianos e negros pobres podem, pelo menos, potencialmente unir armas contra um inimigo comum e, assim, começar a desfazer suas separações. Também aponta para um repertório de hábitos e vivências, uma política cotidiana que torna possíveis rupturas espetaculares e violentas erupções. O fato de que a maioria das pessoas envolvidas na revolta de George Floyd eram brancas, e que a morte de Floyd poderia se tornar um catalisador para uma revolta de base ampla contra Trump, revela mudanças sociológicas e demográficas que tornam a confusão dos não-movimentos possível e que vão além da própria revolta.

Mesmo as organizações formais podem se adaptar à lógica dos não movimentos. Podemos ver isso nos sindicatos franceses, inicialmente hostis aos Gilets Jaunes, que puderam aproveitar esse não-movimento em setembro de 2019 para lançar sua greve contra as reformas previdenciárias de Macron. No entanto, o que cada onda de mobilização de massa enfrenta é a capacidade limitada de ir além de uma unidade negativa (contra o racismo / polícia / elites) e estabelecer uma força social ou política positiva e criativa. Os problemas perpétuos da política de identidade são sintomáticos desse limite: a incapacidade de uma onda de luta em se corporificar e se sustentar, dada a fragmentação de seus constituintes. Em algum ponto, cada onda se espatifa e se estilhaça nesses fragmentos. Os não movimentos tendem a atacar e a se retirar de um Estado que percebem como se afastando deles. Nesse sentido, a demanda americana de “desfinanciar a polícia” reflete uma tendência mais ampla (em muitos aspectos um avanço) de não mais lutar para assumir o estado, mas simplesmente colidir com o aparato estatal: austeridade contra austeridade.

Por isso, tranquilizamos o leitor preocupado que agora pergunta: como ter certeza de que a desordem de nosso tempo não vai simplesmente nos empurrar ainda mais fundo em uma ordem autoritária que só pode ampliar o abismo entre o liberalismo e a democracia que estamos testemunhando hoje? A primavera árabe não levou à ditadura e à guerra? O occupy não foi um presságio de Trump? As lutas brasileiras contra o aumento das tarifas de transporte não prepararam o cenário para os protestos anticorrupção que deram poder a Bolsonaro? A lógica identitária que está formando lutas em todo o globo não nos empurra para as profundezas de um mundo fascista? Forças iliberais e fascistas estão ganhando força, mas seria irracional atribuir sua ascensão aos não-movimentos, já que eles próprios são expressões da desordem de nossa era que tanto populistas de esquerda quanto de direita procuram explorar.

Além disso, o fechamento de fronteiras e a virada para o nacionalismo e políticas severas de refugiados em países governados por governos de esquerda, como Suécia e Dinamarca, e a vitória da direita populista em nações como Polônia e Hungria, revelam desenvolvimentos nitidamente iliberais em lugares que não foram dilacerados por não movimentos. Abandonado a si mesmo, neste mundo de produtividade estagnada e desindustrialização, o estado capitalista contemporâneo irá facilmente basear a cidadania na língua, cultura e trabalho. É por isso que massas cada vez maiores de homens e mulheres em todo o mundo são mobilizadas por valores liberais e democráticos e cada vez mais levadas a odiar uma polícia que recebe as tarefas sujas de impor ordem no ingovernável.

3. UMA DESORDEM DO NOVO MUNDO

Os movimentos do Leste Europeu nos anos 80 e 90 – violentos levantes pela reforma liberal – são tidos como precursores importantes dos não-movimentos no sentido em que são expressões da estagnação e desindustrialização do império soviético. Desde então, o Ocidente vem alcançando os ex-países comunistas, gerando uma ordem econômica global em estagnação secular e a desintegração geopolítica do período pós-1945.

A vitória dos Aliados em 1945 não apenas ofuscou as perspectivas da guerra revolucionária na Europa, mas também remodelou o imaginário comunista original em um democrático que, em última análise, alienaria os proletários do movimento operário. Mario Tronti insistiu que “o movimento operário não foi derrotado pelo capitalismo, [ele] foi derrotado pela democracia”. Assim como Bordiga denunciou que abraçando o modelo de representatividade democrática, o marxismo se afastou cada vez mais das massas de trabalhadores, se transformando em uma ideologia para gestores de classe média, ou pior, uma simples defesa do liberalismo e da democracia.

O desenvolvimento de 2008 a 2020 mostra que os não-movimentos encontram seu limite na repressão e na representação (ou, em sua forma mais plena, guerra e democracia). Os dois podem ser combinados para enfraquecer os não movimentos, por exemplo, amarrando-os ao estado ou transformando-os em partidos ou sindicatos formais. Essas derrotas nascem das necessidades dos próprios não movimentos, de sua incapacidade de ultrapassar seus limites imanentes. Mas se a acumulação de lutas antigovernamentais continuar a aumentar, como tem acontecido anualmente desde 2008, então será necessário que os não-movimentos desenvolvam sua crítica instintiva da repressão e da representação em uma crítica implacável da guerra e da democracia. Para isso, é necessária uma perspectiva estratégica que desafie as divisões ideológicas e identitárias dentro do proletariado, incluindo aquelas entre os trabalhadores e as camadas da classe média. Pode-se apostar que as consequências econômicas dos bloqueios que já estão começando a forçar as pessoas a se unirem em frentes contra uma economia estagnada e em deterioração contribuirão ainda mais para a confusão de identidades predominantes e visíveis em muitos lugares ao redor do mundo. Assim como os Gilets Jaunes fundiram homens e mulheres do interior, certamente muitas vezes conservadores ou de direita, com estudantes de esquerda, membros insatisfeitos da classe média e proletários dos Banlieues (periferias pobres), a desaceleração e o fechamento mais recente da economia tratão a base para mais confusão.

Ao analisar o conflito social e as instituições sociais, Bordiga repudiou expressões carregadas de valor como “conservador”, “progressista” ou mesmo “revolucionário” e propôs, no lugar que os movimentos ou instituições sociais podem ser analisados em suas dimensões “conformistas”, “reformistas” ou “anti-formistas”. Um movimento conformista é uma força que busca manter “intactas as formas e instituições existentes, proibindo qualquer transformação e referindo-se a princípios imutáveis”. Os movimentos reformistas são “aqueles que, embora não procurem perturbar abrupta e violentamente as instituições existentes, significam que as forças produtivas estão pressionando com muita força e defendem mudanças graduais e parciais da ordem atual”. Os movimentos anti-formistas, ao contrário, envolvem um “assalto às velhas formas e, antes mesmo de saber teorizar as características da nova ordem, tendem a romper com as antigas, provocando o nascimento irresistível de novas formas”.

Nesse sentido, é possível argumentar que vemos aumentar anualmente os movimentos de caráter “anti-formistas”, na medida em que mais e mais pessoas expressam sua frustração com o status quo. No entanto, essas explosões podem facilmente se transformar em movimentos reformistas ou mesmo conformistas se, paradoxalmente, permanecerem incapazes de evitar as tendências para a guerra civil e a violência niilista implícita em tal instabilidade. A ideia de uma guerra revolucionária tornou-se (ou talvez sempre foi) uma fantasia ingênua que é incapaz de produzir a base para uma sociedade sem classes. As guerras civis na Líbia e na Síria revelam com que facilidade a guerra transforma as organizações revolucionárias de massa em raquetes militares que precisam de dinheiro, armas e recrutas.

A ascensão de Trump, Bolsonaro, Duterte, Modi, Orban, Putin e até mesmo Macron revela que o status quo é de ruptura, o que David Ranney chamou de “Uma Nova Desordem Mundial”. No entanto, os Trumps do mundo dividem as populações, e mesmo as classes dominantes, contra si mesmas e revelam que a luta pela democracia liberal pode ser facilmente radicalizada, assim como os revolucionários podem ser facilmente cooptados como camisas pretas prontas para lutar com suas pedras, escudos e guarda-chuvas para o status quo democrático. O levante de George Floyd se tornou brevemente, por exemplo, um canal de resistência à autocracia dos novos líderes populistas em todo o mundo. Mas, por baixo da oposição “liberal” e “conservadora”, podemos identificar as tendências “anti-formistas”, intensificando conflitos e remodelando a forma social de nossa ordem atual.

Uma reflexão estratégica, portanto, também precisaria imaginar meios pelos quais os não-movimentos poderiam eventualmente assumir o controle da estagnação / desindustrialização capitalista e desencadear a base para um novo mundo que ele contém. Isso é algo que eles não estão interessados ​​em fazer, nem são ainda capazes de fazer, uma vez que ameaça sua espontaneidade e, em certo sentido, passividade constitutiva. Mas, para sobreviver, os não-movimentos devem inspirar a criação de formas de vida capazes de viver por algo mais do que dinheiro e trabalho assalariado. Isso implicaria um novo uso dos meios de produção como ferramentas contra o capital – ferramentas que não só nos libertam do trabalho, mas também nos permitem compartilhar o trabalho necessário para garantir que a vida possa se tornar algo mais do que mera sobrevivência

Para o surgimento dessa existência comunal, onde a economia é governada por uma desindustrialização tanto tornada possível quanto proibida pelo capitalismo, só podem ser produzidas sob a forma de (vamos chamá-lo provocativamente), mistura interclassista tão característica de nosso período. Proletários, estudantes e camadas da classe média são forçados a se unir nas ruas. Trabalhadores com poder estratégico fundamental, técnicos com conhecimento para remodelar a face industrializada do mundo, esses grupos serão cruciais para a transcendência do capitalismo. No entanto, a afirmação de seu poder será uma receita para uma maior fragmentação de classe, a menos que eles possam ir além de seus interesses setoriais e convergir com segmentos das massas precárias ou desempregadas do mundo. Assim, embora seja necessário estar “enraizado” na vida proletária, o fracasso nesse sentido implica reproduzir as divisões que estratificam as classes em diferentes segmentos com interesses distintos e não raramente antagônicos.

Dado que não procuramos nem somos capazes de recriar a máquina de crescimento que foi a base da social-democracia, o único caminho a seguir é lutar por um “desinvestimento do capital” radical no qual “os meios de produção têm uma proporção menor em relação aos bens de consumo” e que elaboramos um “plano de subprodução, ou seja, a concentração da produção no necessário”, nas palavras de Bordiga.

Neste contexto, a confusão  identitária dos não-movimentos pode ajudá-los a se tornarem conscientes do que são: expressões subjetivas de declínio econômico. Argumentamos que a consciência de classe, no período atual, só pode ser a consciência do capital. Hoje, por sua vez, isso não implica nada mais do que a crescente revelação de que o capitalismo não tem futuro. E quando os Gilets Jaunes dizem “fim do mundo, fim do mês”, não estão apenas expressando o que consideram a dimensão apocalíptica da nossa era, mas afirmando o fim deste mundo e desta vida como pré-requisito necessário para a criação de um novo mundo e uma nova vida.

Um dos motivos pelos quais o sistema está vencendo pode ser que o medo, ao invés da raiva, mobiliza a esquerda, mas os não-movimentos desafiaram corajosamente a repressão policial, os bloqueios e o medo do coronavírus simplesmente reunindo milhares de pessoas nas ruas. Este questionamento de uma normalidade capitalista, marcada pela histerese e o catastrofismo que a acompanha, será ainda mais importante na medida em que a economia continua a estagnar e os não movimentos são empurrados em uma direção mais revolucionária.

4. SOMOS TODOS BASTARDOS AGORA

Como acontece com muitos não-movimentos contemporâneos, da Primavera Árabe ao Gilet Jaunes e Black Lives Matter, a raiva contra a polícia muitas vezes substitui um ódio mais amplo à política. Isso não ocorre simplesmente porque a polícia é a manifestação imediata da repressão do Estado, um adversário tático nas ruas. Como o Estado se mostrou incapaz de proteger a população de uma crise multifacetada, fica claro que seu papel principal será conter as consequências dessas crises disciplinando a população. Ou seja, o estado está sendo reduzido à sua função de policiamento.

Embora a polícia seja amplamente desprezada nas autocracias, os programas de austeridade recentes deram a ela uma forma particularmente degenerada e violenta em algumas democracias neoliberais, onde se tornou o principal representante do estado em muitas comunidades pobres e da classe trabalhadora. Assim, pesquisas mais recentes mostram que a confiança na polícia diminuiu, e podemos ver sinais de que a polícia tem se tornado cada vez mais um foco de ódio não só de proletários e minorias raciais, mas também entre segmentos da pequena burguesia e até mesmo dos ricos.

A polícia é universalmente brutal, pois o trabalho tanto seleciona quanto encoraja uma personalidade autoritária, e o papel da polícia na proteção da riqueza e da propriedade sempre fez dela, nos termos de Orwell, o inimigo natural da classe trabalhadora. Seu papel em conter e disciplinar a população que se revolta contra as medidas de austeridade, e agora os efeitos da crise econômica e do lockdown torna um aumento da brutalidade inevitável, e os níveis crescentes de brutalidade, por sua vez, inevitavelmente levarão a um aumento da inimizade de vítimas e espectadores (reais ou virtuais).

A experiência de ser odiado pode, por si só, dar origem a uma identidade subcultural entre os policiais não muito diferente de muitos daqueles que os combatem: um sentimento de ser uma minoria sitiada (“vida azul é importante”) que pode ampliar a tendência para o aumento da brutalidade.

No entanto, delegar toda a desumanidade a um certo grupo de pessoas e toda a humanidade a outro não só vai contra o princípio fundamental do humanismo (e portanto do comunismo), mas também exclui nossa capacidade de minar a força policial. Focar nosso ataque na polícia é perpetuar um certo ritual em que a polícia é colocada no papel de subjugador invencível. Assim, em vez de presumir que atacar a polícia é a tática insurgente por excelência, temos que pensar estrategicamente sobre como circunavegar a polícia e até mesmo explorar potenciais contradições dentro do campo inimigo.

Uma crítica contemporânea da violência adequada para uma era em que a guerra pode significar apenas derrota não exige recuo; em vez disso, pode indicar a necessidade de inteligência revolucionária, como quando massas de mulheres cercam a polícia na Bielo-Rússia ou o Muro das Mães protege a linha de frente em Portland. No entanto, seria um erro exagerar a importância das táticas e planos ao discutir as ações espontâneas de milhões de homens e mulheres. As melhores maneiras de desmobilizar a polícia e as forças de segurança são por meio da escalada (e, portanto, muitas vezes violenta) dos protestos. Quarteirões incendiados podem mobilizar milhões como vimos depois do assassinato de George Floyd, portanto não são os motins que colocam em risco o contínuo desenrolar das lutas, mas sim a militarização do conflito. Todas as formas de violência profissionalizada dificultam o crescimento dos não movimentos.

Eles podem combater a polícia de maneira mais eficaz deslegitimando o sistema como um todo. Como vimos muitas vezes recentemente, isso pode implicar que os militares sejam convocados, levantando o espectro de uma guerra civil. No final, esse espectro só pode ser dissipado por meio da deserção (tradicionalmente a condição sine qua non do sucesso revolucionário). Assim os não-movimentos são cada vez mais obrigados a superar categorias, identidades e papéis que eles começaram a transcender em suas confusões.

“Desfinanciar”/“defund” imagina que o dinheiro gasto na polícia e nas prisões, se realocado para outros programas sociais, poderia resolver os problemas sociais que a polícia administra ou contém. No entanto, a polícia e as prisões são os programas sociais mais baratos, a própria expressão da austeridade e, portanto, tomar seu financiamento é insuficiente para uma reparação redistributiva. “Abolir”, na prática, muitas vezes significa substituir a polícia por alguma outra instituição (por exemplo, mediadores profissionais, assistentes sociais, segurança privada) que provavelmente apresentará patologias semelhantes ou relacionadas. Portanto, embora os apelos por redução de danos e reparo sejam inteiramente justificados, deve ficar claro que eles estão além do escopo do que qualquer sociedade capitalista poderia admitir (quanto mais permitir). 

Quando a política é reduzida à polícia, a ausência da polícia pode ser tão política quanto sua presença. Podemos encontrar vários exemplos dessa política – a presença dessa ausência – não apenas na fantasia americana do Velho Oeste, mas também em muitas situações de guerra (tanto civis como não civis), e em alguns bairros empobrecidos abandonados pelos estado, como as periferias e favelas brasileiras que são amplamente administrados pelo crime organizado. Menos conhecidos, também podemos encontrar exemplos em Jim Crow South, onde a polícia frequentemente se recusava a entrar em bairros urbanos negros, a menos que os brancos alegassem ter sido vítimas de crimes negros. No lado sul de Chicago, onde a taxa de homicídios atingiu brevemente os níveis brasileiros neste verão, temos uma noção mais clara de como seria abolir a polícia sem abolir o capitalismo. A “polícia” privada da Universidade de Chicago em Hyde Park, uma ilha de riqueza em meio à pobreza de South Side, tem mais recursos do que todos os distritos locais juntos. Afinal, a segurança privada é um arranjo totalmente mais econômico para os ricos: por que desperdiçar seus dólares de impostos em um amplo departamento de polícia em toda a cidade quando tudo o que você realmente precisa é proteger seus próprios territórios?

Sob pressão dos manifestantes, em junho de 2020, o conselho da cidade de Minneapolis votou não apenas para “desfinanciar”, mas também para dissolver seu departamento de polícia. Embora pareça que eles vão desistir desse compromisso, se eles seguirem o modelo “abolicionista” de Camden, New Jersey, isso pode significar simplesmente renomear o departamento. Visões mais radicais da abolição às vezes eram alardeadas entre as milícias que passaram o verão policiando as ruas de Minneapolis em busca dos lendários “saqueadores da supremacia branca”. Relatos divergentes de sua experiência indicam a complexidade da questão da violência, visto que ela se apresenta de maneira diferente para ativistas, donos de lojas e moradores de bairros de alta criminalidade. Como a história das revoluções do século 20 revela, raramente é possível distinguir claramente entre violência política e anti-social no nevoeiro da guerra civil.  Mas as tentativas necessariamente caóticas dos revolucionários de defender territórios conquistados do estado e do capital não devem ser confundidas com uma vigilância de bairro ou o braço armado de uma “organização comunitária” protegendo a propriedade privada em colaboração aberta ou tácita com a polícia local. 

A partir desses exemplos, fica claro que as próprias lutas podem facilmente se tornar expressões passivas da desordem que os Trumps do mundo procuram aumentar. Podemos ver um reconhecimento dessa desordem gerada pelo poder em um dos cantos mais populares das revoltas chilenas: No estamos en Guerra. Isso foi dirigido contra o presidente Sebastián Piñera, que em um discurso de outubro de 2019 declarou: “Estamos em guerra contra um inimigo poderoso, que está disposto a usar a violência sem limites”. Neste exemplo, um entre vários, os não-movimentos do mundo parecem representar paradoxalmente o partido da ordem, enquanto a polícia nada mais é do que a força armada do partido da desordem, que apenas intensifica os conflitos que destroem nosso mundo.

Claro, seria tolice adotar um princípio abstrato de não violência. A revolta no Chile infelizmente custou a vida de pelo menos 30 pessoas desde outubro de 2019, e cerca de 500 sofreram ferimentos nos olhos. No entanto, é claro que as massas nas ruas não desejam o caos nem anseiam pela violência. Ao renomear o centro dos não-movimentos em Santiago de Plaza Baquedano para Plaza Dignidad, os manifestantes chilenos declaram que buscam uma vida digna. Pode-se talvez discernir um fio vermelho (esfarrapado) que conecta o slogan sombrio No Estamos en Guerra de 2019, para Faça amor, não faça guerra de 1968 e mesmo Paz, Terra e Pão de 1917. Pois a história do comunismo não é apenas a história da luta de classes, mas também a história de uma inimizade contra a inimizade, uma revolta contra o antagonismo que divide as classes subalternas em amigas e inimigas. É, a este respeito, um anseio de paz.

5. UMA CIÊNCIA DAS ESPÉCIES

Uma preocupação central da Primavera Árabe e do Occupy, precursores da maré dos não movimentos, é o problema de compor diversos fragmentos do proletariado (assim como da classe média insatisfeita) em uma força coerente nas ruas. Mas o “problema da composição” é mais convencionalmente entendido como um problema de uma “política de identidade” que parece ter surgido junto com o fim do movimento dos trabalhadores.

Seria apenas um pequeno exagero dizer que a política anti-identitária é o pior produto da política de identidade. Na verdade, a identidade neste contexto tornou-se um termo de insulto quase universal. Pois mesmo os mais “conscientes” tendem a empregar o mesmo termo (ou um sinônimo) para criticar aqueles que costuram divisões desnecessárias ou fazem alegações duvidosas de representar subgrupos cada vez mais específicos dos oprimidos. É por isso que consideramos a “política de identidade” um sinal de mais do que apenas um conjunto de limites que os não-movimentos contemporâneos devem enfrentar. No sentido mais amplo em que empregamos o termo, a política de identidade forma o próprio terreno em que a maioria das lutas se desenrola hoje e, portanto, no qual tais limites devem ser confrontados.

Os movimentos sociais clássicos – sejam eles de esquerda ou de direita – só podem manobrar no terreno de um capitalismo decrépito que os não-movimentos do mundo estão hoje lentamente, e talvez em breve, remodelando. Os primeiros exemplos de política de identidade foram tidos por Giorgio Cesarano como movimentos de libertação contra-revolucionários que, em sua parcialidade, no entanto, produziram uma consciência duramente conquistada dos reais riscos da necessária superação de toda separação. Nos termos de Bordiga, poderíamos dizer que ao lado de suas dimensões conformistas e reformistas tais movimentos também contêm elementos distintamente anti-formistas, no sentido de que reconfiguram o próprio terreno sobre o qual se desenvolve a contestação. 

Os não movimentos têm se unido em torno da raiva e repulsa contra a injustiça e corrupção, especialmente da polícia, políticos e elites. No entanto, essa unidade negativa, além de ser limitada por essa relação com o errado, esconde verdadeiras divisões de interesse que inevitavelmente se manifestam, muitas vezes de forma violenta. A articulação de uma visão compartilhada do bem é, portanto, necessária para superar os limites atuais dos não movimentos.

Hoje, toda política tende para a política de identidade não porque as divisões identitárias tenham sido esclarecidas e endurecidas, mas sim porque estão sendo cada vez mais desafiadas e confundidas. Por um lado, isso é fruto da falta de estabilidade no emprego, saúde, residência e vida familiar causada pela crise capitalista contínua. Por outro lado, sempre que a necessidade de lutar contra essas condições cada vez mais deterioradas ultrapassa os limites reais de cooperação entre fragmentos de classe, e os não-movimentos explodem, as identidades são desafiadas ao ponto em que sua própria sobrevivência é posta em questão. A produção de tais espaços requer, necessariamente, uma confusão ativa de identidades díspares em um processo tenso que sempre corre o risco de se tornar meramente performativo, amargo e até violento.

O último ciclo do Black Lives Matter pode, portanto, ser visto como um exemplo de um padrão geral que caracterizou a acumulação global de não movimentos. As manifestações, motins e ataques a monumentos que varreram os Estados Unidos a partir de 26 de maio representam uma tremenda fusão de elementos até então separados e até opostos. Dentro dele proliferam divisões internas, tanto ao longo das linhas de identidades pré-existentes quanto de novas identidades levantadas pela luta. Na rebelião de George Floyd podemos apontar para a divisão entre o “dia” e a “noite”, correspondendo a mais protestos pacíficos da classe média e a mais atos proletários de motins e pilhagens. Poderíamos falar também das divisões entre “violentos” e “não violentos”, ou da divisão entre grandes e pequenas cidades, muitas das quais viram as suas primeiras manifestações neste momento. Mas o mais impressionante, talvez, foi a composição racial desses protestos.

Não há dúvida de que os proletários negros lideraram o caminho, tanto no motim inicial de Minneapolis quanto em casos posteriores de saques direcionados em Chicago e Filadélfia. No entanto, na grande maioria dos protestos, e mesmo em muitos motins, os participantes identificados como “brancos” foram a maioria. Isso é visível nas pesquisas de opinião, pesquisas de multidões, na maioria dos relatórios de prisão divulgados pela polícia e até mesmo em análises de telefones celulares nos locais dos distúrbios. Este fato é frequentemente ignorado tanto pela esquerda quanto pela direita, possivelmente porque perturba seu próprio senso de identidade. Porém, é precisamente a mobilização em massa da “América branca” que marcou este levante como distinto de outros movimentos comparáveis, como Black Lives Matter em 2015, bem como a onda de motins nas cidades americanas na década de 1960.

É possível ler isso como uma traição em massa da branquitude, que corresponde a uma redução gradual, mas sustentada, das atitudes racistas, especialmente entre os jovens americanos. Mas se “anti-racismo” foi a palavra de ordem universal do movimento, ela significava coisas diferentes para pessoas diferentes. Nos efeitos em cascata do movimento através da cultura houve um aumento notável do anti-racismo performático, organizado em torno de reivindicações individuais de representação racial e virtude anti-racista. Vemos isso não apenas nos contextos usuais de discussão online e ensino superior, mas também na política parlamentar e, até certo ponto, nas ruas, onde às vezes era facilitado por tensões residuais de nacionalismo que estão mais do que dispostas a policiar as fronteiras raciais.

No entanto, essa não foi a forma dominante de anti-racismo que se estabeleceu depois de 26 de maio. Em vez disso, vimos algo muito mais próximo da “política de identidade” que descrevemos neste artigo: uma política daqueles que sabem que as divisões ao longo de linhas raciais devem ser ativamente desafiadas se quiserem permanecer uma força contra a polícia (e a política por trás dela). Expressões de unidade interacial foram amplamente vistas em faixas e ouvidas em cantos, mas foram materializadas por ações combinadas com um objetivo comum, seja cercar uma delegacia, derrubar uma estátua ou defender a multidão contra ataques policiais.

Na verdade, pode-se ver o levante como uma revolta do anti-racismo pragmático contra o anti-racismo performático. Afinal, as administrações municipais mais visadas foram as lideradas por liberais, incluindo um número notável de mulheres negras, que construiram suas carreiras sobre o anti-racismo performático e agora estavam protegendo policiais assassinos, supervisionando a brutalização dos manifestantes e – no caso de Chicago – puxando as pontes levadiças para excluir um proletariado predominantemente negro do rico centro da cidade. Seu discurso de diversidade e inclusão não dissuadiu os proletários negros de queimar e saquear as cidades que administravam; mas também não foram eficazes em convencer a América branca a ficar em casa e “fazer o trabalho”.

Mas se a rebelião de George Floyd representou assim uma “traição à branquitude”, não foi uma traição estratégica com o poder da classe trabalhadora como objetivo, mas sim uma traição espontânea de sujeitos neoliberais, alimentados pela raiva e nojo, que se recusam a ser o que são, e provam brevemente, na confusão da luta, o que eles poderiam ser. Este é o sentido positivo do que chamamos de “confusão”. Também pode ser observado quando os islâmicos entraram na praça Tahrir, quando os apoiadores do Front National se juntaram aos bloqueios da rotatória na França, ou quando os chilenos de classe média desceram às ruas para lutar contra a polícia ao lado de anarquistas e ultras. Tal confusão entre as linhas políticas, culturais e raciais é mais comum e menos complicada do que a imaginação liberal anti-racista é capaz de sonhar (especialmente para proletários que têm menos a perder ou quando a ordem meritocrática é abalada).

No entanto, embora a fusão seja possível, mesmo fácil, no calor da luta, raramente dura. E embora a confusão dos não movimentos muitas vezes seja baseada em uma traição do que somos, eles raramente nos permitem deixar nossa velha vida para trás. Nós nos revoltamos contra uma condição solitária (uma solidão apenas exacerbada pelo distanciamento social e bloqueios), mas as revoltas raramente satisfazem a fome de comunidade que deu origem às revoltas. Os não-movimentos geralmente têm sofrido para produzir assembleias de bairro ou construir vínculos duradouros com a organização do local de trabalho. Em vez disso, eles interrompem abruptamente a vida cotidiana, marcando o tempo como os “atos” numerados do Gilet Jaunes, ou as manifestações em massa todas as sextas-feiras no Chile, quando as pessoas se reúnem em números sem precedentes para expressar sua raiva e então imediatamente se dispersam, seja para suas vidas individuais ou para suas várias tribos identitárias.

Essa falta de coerência não é uma vantagem tática ou estratégica, pelo contrário, é um obstáculo à extensão da luta. Foi a escala e o escopo das mobilizações, e não sua diversidade de táticas, que oprimiu a polícia – e foi a brutalidade inicial da polícia que muitas vezes foi responsável pela escala e escopo. No entanto, ao confundir a identidade de seus participantes, os não-movimentos podem apontar para a formação de um novo tipo de humano, menos dominado pelo pânico ou domesticado. Argumentamos que os não movimentos aproveitam e radicalizam as mudanças na reprodução da vida humana que tornam possíveis as explosões nas ruas que vimos na última década. Nossa aposta é, portanto, que essa mudança antropológica continue depois que as lutas nas ruas forem esmagadas pela repressão, ou se extinguirem por falta de organização ou fôlego, já que os não-movimentos são expressões da lógica antiforme de nossa época.

A confusão de identidades é condição de possibilidade de revolta hoje, mas também um limite que deve ser superado. No curto a médio prazo, esperamos que seja cada vez mais problematizado, tanto no sentido prático quanto teórico. Esse limite pode indicar a necessidade de um novo tipo de organização, como um amigo colocou recentemente (referindo-se a um grupo underground de hip hop): uma Confusão Organizada. Pode-se até chamar de “partido comunista”, embora, como alguns camaradas argumentaram recentemente, ele teria que ser muito diferente dos partidos de antigamente. Precisaria especificamente apelar a um proletariado não mais interpelado pelos resquícios do movimento operário, e que é forçado a se juntar a setores das populações excedentes e estratos médios desclassificados em revoltas contra uma miséria geral. Assim, tal partido invisível teria que apelar também a esses grupos rebeldes, sejam eles lumpen ou classe média marginalizada, que têm saído às ruas em números sem precedentes, em ondas que expressam a volatilidade de nosso período. Pode até ser necessário apelar para os segmentos da classe que atualmente se mobilizam contra os não-movimentos, para quebrar a inimizade que fortalece a polícia e empurra as lutas para a lógica da guerra. No entanto, dado que os não-movimentos são, como temos repetidamente argumentado neste texto, os sinais subjetivos da estagnação do capitalismo, talvez sua tarefa mais importante seja tomar consciência dessa condição latente e se orientar para o fim potencial de um sistema que já está em declínio crônico. Os não movimentos sinalizam que o proletariado não tem mais nenhuma tarefa romântica. Não pode mobilizar um povo nem lutar pela hegemonia. Ao contrário, ela só pode superar nossa ordem vacilante – que em certo sentido já está desfazendo os fundamentos da sociedade de classes – continuando a resistir a todas as tentativas de rejuvenescer o mundo da política.

Os primeiros passos para sair da desordem de nossa era estão nas confusões de identidade que os não-movimentos provocam em sua fome de comunidade humana. Essa fome até agora não foi satisfeita com vitórias nem com a repressão, por isso pensamos que nosso período continuará sendo marcado pela acumulação de revolucionários sem revolução. Os famintos usam a linguagem fragmentada da identidade em vez da classe, porque toda a estrutura da esquerda entrou em colapso. Se um antirracismo pragmático dominou o tipo performático durante o levante de George Floyd, é porque a prática da revolução não mais tira sua poesia do mundo morto das ideologias. A revolução do século 21 deve permitir que os mortos enterrem seus mortos para chegar ao seu próprio conteúdo. Assim, a tarefa do nosso tempo é compreender como os próprios não movimentos revelam a tendência antiforme de nosso período, e como, em sua confusão, podemos identificar o eclipse das formas sociais que chamamos de capital, estado e classe. Já que o comunismo é o verdadeiro não-movimento que abole essas formas sociais, dizemos às massas que confrontam nossa ordem vacilante - avanti barbari!  - bárbaros para a frente.

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