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05 mar 2021

Carta de Desembarque de Dois Proletários Pretos da Intersindical/ASS

Rompendo com o Economicismo, o Centralismo Burocrático e Muito Racismo

Somos militantes que estivemos nos últimos anos na construção da Alternativa Sindical Socialista (ASS) e da Intersindical – Instrumento de Luta e Organização da Classe Trabalhadora, por avaliarmos que era um espaço importante de reorganização e reunificação do proletariado, enquanto uma classe com programa próprio, com independência, e autonomia histórica na luta contra o Capital e o seu Estado. E por ser, também, a contraposição à Estratégia Democrática e Popular (EDP) – cuja realização levou nossa classe a um retrocesso político, organizativo e de sua consciência que, somado à crise de 2014, abriu caminho para uma ofensiva reacionária sobre a classe trabalhadora, que se manifestou no crescimento do desemprego e subemprego, intensificação da retirada de direitos e o enfraquecimento dos sindicatos após a reforma trabalhista – e que vem sendo hegemônica nas fileiras da esquerda brasileira pelos últimos quarenta anos.

Estas organizações são herdeiras das Oposições Sindicais, que foram um dos pilares da fundação da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e sua construção com a base. Tendo uma perspectiva de autonomia e independência, de construção da luta socialista e contra a conciliação de classes – que começava a ser ensaiada pelo setor majoritário da CUT – essas Oposições formaram a CUT Pela Base, sendo uma corrente interna que defendia a mesma linha política. Cumpriu o papel de propagar esta linha no interior da Central, de combate ao velho peleguismo no movimento sindical, de denúncia dos pactos sociais propostos pelos governos da época, como também combatendo a burocratização da CUT ao reduzir a participação de trabalhadores de base e oposições nas suas instâncias deliberativas, especialmente nos Congressos.

Nos anos 1990, a experiência da CUT Pela Base se esgotou e parte das forças políticas que a construíram passaram a compor a ASS como uma frente da maioria das correntes de esquerda do PT, continuando no mesmo combate interno às políticas de conciliação da Central que faziam parte da gestação da EDP, como as Câmaras Setoriais e outros organismos tripartites que mais favoreciam ao Capital e ao Estado que à organização independente da classe trabalhadora.

A partir dos anos 2000, a saída de correntes petistas como a Democracia Socialista (DS) e a Tendência Marxista (TM), por exemplo, foi enfraquecendo a ASS como uma frente das correntes da esquerda petista no interior da CUT, e com o governo Lula e a realização do projeto estratégico que guia a esquerda brasileira até hoje, as representações da classe trabalhadora e a própria esquerda entram num processo de reorganização. A intervenção do governo Lula na eleição da direção da CUT em 2003, o apoio desta à Reforma da Previdência e todas as ações para abafar as mobilizações independentes dos trabalhadores, transformaram a Central numa correia de transmissão do governo. A luta contra a política de conciliação no seu interior resultou em rupturas. O PSTU rompe após o congresso de 2003, indo formar a Conlutas. A DS e a TM, que antes compunham a ASS e o campo de oposição de esquerda da CUT, tornaram-se linhas auxiliares da Articulação Sindical.

A ASS nesse processo vai mudando sua configuração. Ela rompe com a CUT em 2005 e, a partir de 2006, com a saída da Ação Popular Socialista (APS), ela se reorganiza numa corrente sindical. A partir de então propõe a criação da Intersindical – Instrumento de Luta e Organização da Classe Trabalhadora como uma articulação entre sindicatos, oposições e coletivos que resgatariam os princípios que fundaram a CUT, mas sem se reivindicar uma central sindical.

A Intersindical era composta pela maior parte das forças de esquerda que estavam na CUT e saíram desta no ano de 2005. Além da ASS, havia a presença de correntes do recém fundado PSOL, como a APS, CSOL e Enlace, além do PCB e grupos anarquistas, como a Resistência Popular. Com a aprovação da lei das centrais sindicais pelo governo Lula em 2007, estas correntes do PSOL queriam fundir a Intersindical com a Conlutas numa central por decreto, levando ao racha no seu II Encontro Nacional, em 2008, que ficou conhecido como Batalha da Tabatinguera. Essa central, fundada no Congresso da Classe Trabalhadora (Conclat) de 2010 em Santos, naufragou logo em seguida. Estes dissidentes da Intersindical – Instrumento de Luta e Organização da Classe Trabalhadora fundaram a Intersindical – Central da Classe Trabalhadora.

Transição de Corrente Sindical para Organização Política: Nem um Passo à Frente, Vários Passos para Trás

A ASS continuou construindo a Intersindical como uma organização sindical que articula sindicatos (mesmo filiados formalmente à CUT, mas sem concordarem com a política de conciliação desta Central), oposições e coletivos. Em 2012, o PCB sai da Intersindical, e em seguida, os anarquistas se afastam e só restando a ASS como a única força política.

De acordo com as suas formulações, a ASS deveria cumprir o papel de, não só apenas criticar a EDP, como também contribuir para a superação desta estratégia. Para isso, ela deveria deixar de ser uma corrente sindical, se constituindo numa organização política revolucionária, conforme conta no seu documento síntese de crítica à EDP realizada em Julho de 2016:

“Não nos conformamos como uma corrente sindical em que pese nossa forte presença no movimento sindical, não somos o que todas as Organizações tentam afirmar: uma Organização que pauta sua ação apenas nas demandas imediatas e economicistas da classe.” (pg. 28)

“Essas sínteses devem servir principalmente para municiar nossa militância no processo interno de construção de uma organização política revolucionária, para fundamentar nossa atuação política prática e para trabalharmos com os trabalhadores que aproximamos nas bases onde estamos.” (pg. 01)

Até 2012, a construção da Intersindical era uma tarefa compartilhada entre a ASS e outras forças políticas. Com a ruptura dessas demais forças, ela se vê sozinha diante desta tarefa, que para ela era prioritária. E, por ser prioridade, todas as suas energias militantes continuarão concentradas na luta sindical. Assim, na prática, ela perde de vista o compromisso de se constituir enquanto uma organização política, permanecendo, tão somente, aquela velha corrente sindical. Desta forma, a ASS eliminou qualquer fronteira que pudesse haver entre ela e a Intersindical. Em outras palavras, a Intersindical se tornou uma ASS ampliada.

Estamos diante de um problema, já que trata-se de uma corrente sindical que se recusa a ser somente uma corrente sindical, ao mesmo tempo que é uma organização política que está longe de ser uma organização política. Mais ainda. É um corpo só, que acredita ser dois.

Um dos sintomas do que acabamos de descrever são as reuniões nacionais. Elas acontecem sempre às sextas, sábados e domingos. Na sexta a reunião é da Intersindical. No sábado e no domingo se reúne a ASS. Se a ASS fosse uma organização dentro da Intersindical, o correto não seria ela se reunir antes da Intersindical para tirar a linha que a organização defenderia na própria reunião da Intersindical? Mas, não. A Intersindical faz suas reuniões nas sextas e, ao término, só ficam os militantes da ASS, pois estes participarão da reunião do dia seguinte, que é exclusiva para militantes da Alternativa. Só que os que ficam são praticamente todos que já estavam. E já aconteceu de não se retirar ninguém, pois todos os presentes na reunião da Intersindical eram militantes da ASS. Em outras palavras, só tinham militantes da ASS na reunião da Intersindical! No sentido de lidar com esse problema há uma orientação na ASS que é de não mais recrutar militantes para a organização, mas sim para a construção da Intersindical. Então, mais que transformar os poucos militantes independentes da Intersindical em correia de transmissão da linha da ASS no movimento sindical, essa escolha consegue escancarar o “trade-unionismo” da organização (que pretendia ser política e revolucionária).

O trade-unionismo diz respeito a um vício de certa esquerda que não concebe a luta da classe trabalhadora para além do espaço sindical. Esse vício subordina a militância a um ativismo frenético que os aprisiona num círculo estreito de eleições, conquistas de sindicatos, campanhas salariais, homologações de rescisão de contratos e, o principal, a árdua manutenção das máquinas sindicais. Em função de fazer esse círculo girar se alimenta um enorme desprezo, não só pelos que lutam em trincheiras extra-movimento sindical, como até pelos que se esforçam para construir uma base no local de trabalho, mas que não estejam numa direção de sindicato ou, no mínimo, numa oposição já constituída.

Na sua célebre luta contra as correntes do movimento operário russo que tinham uma concepção política (teórica e prática) próxima da ASS/Intersindical, o camarada Lenin alertava:

“Em si, essas greves eram luta trade-unionista, não se configurando ainda como luta social-democrata [comunista]; assinalavam o despertar do antagonismo entre os operários e os patrões, ainda que os operários não tivessem, e nem poderiam ter, a consciência da oposição irreconciliável entre seus interesses e a ordem política e social existente. Quer dizer: não tinham consciência social-democrata. (…) Já afirmamos que os operários nem sequer podiam ter consciência social-democrata. Esta só podia ser introduzida de fora. A história de todos os países comprova que a classe operária, valendo-se exclusivamente de suas próprias forças, só é capaz de elaborar uma consciência trade-unionista, ou seja, uma convicção de que é preciso reunir-se em sindicatos, lutar contra os patrões, cobrar do governo a promulgação de umas e outras leis necessárias aos operários etc.” (Que Fazer? Problemas Candentes do Nosso Movimento, pg. 81)

(…) Por isso, tudo o que seja rebaixar a ideologia socialista, tudo o que seja afastar-se dela, significa fortalecer a ideologia burguesa. Fala-se de espontaneidade. No entanto, o desenvolvimento espontâneo do movimento operário marcha precisamente para a sua subordinação à ideologia burguesa, (…) pois o movimento operário espontâneo é trade-unionismo, e o trade-unionismo implica exatamente na escravidão ideológica dos operários pela burguesia. (Que Fazer? Problemas Candentes do Nosso Movimento, pg. 93.)

A atualidade dos escritos do camarada Lenin se confirma na prática trade-unionista e economicista da ASS/Intersindical com o seu círculo estreito de eleitoralismo e manutenção das máquinas sindicais. Apesar de uma grande presença de quadros teóricos já constituídos ou em formação, o frenesi ativista da ASS/Intersindical não permite tempo para os estudos. Se para esses quadros essa impossibilidade já é impactante, para os demais militantes é ainda mais prejudicial. Funciona como uma muralha entre o ativismo e a formação de quadros, fazendo da rotina militante uma fábrica de ativistas com pouco ou nenhum acúmulo da teoria marxista. Não são raras as críticas aos que conseguem transpor essa muralha. Cria-se, desta forma, uma cultura oportunista de desprezo aos estudos. No mesmo Que Fazer?, Lenin dizia o que pensava sobre o assunto:    

“Sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário. Nunca será demasiado insistir nessa ideia, numa época em que a propaganda em voga do oportunismo vem acompanhada de uma atração pelas formas mais estreitas da atividade prática.” (Que Fazer? Problemas Candentes do Nosso Movimento, pg. 73)

Esse oportunismo só é oportunismo porque existe em função de algo. Na verdade é parte de uma manobra que, ao negar acesso aos debates teóricos, nega-se às bases a oportunidade de questionar e argumentar com qualidade. Isso facilita que as decisões fiquem mais concentradas na cúpula. Mas há outras peças dessa engrenagem que existe para garantir o bom funcionamento do burocratismo sindical.

As datas das reuniões são avisadas com pouca antecedência, dificultando ainda mais que nas bases haja organização para que se possa garantir a participação de seus militantes. Sem comunicação prévia das pautas, quando as bases conseguem enviar seus militantes, estes participam com pouco, ou, nenhum acúmulo, o que torna inviável uma boa intervenção nos debates. Dessa forma, as discussões desconsideram as demandas que deveriam vir das bases. O resultado não pode ser diferente de encaminhamentos que não dialogam com as lutas cotidianas nessas bases, tão distanciadas do birô. Um bom e recente exemplo desta cratera entre birô e base é a nota da Intersindical referente às eleições passadas.

No dia 23 de novembro de 2020, a ASS/Intersindical solta uma nota (assinada somente pela Intersindical, é lógico) que, apontando limites na tática eleitoral, “estimula e indica” votos nas candidaturas do centro e da esquerda pequeno-burguesa – PT, PCdoB e PSOL. O trecho da nota diz:

“Nesse segundo turno estimular e indicar o voto nas candidaturas dos partidos institucionais do campo da esquerda como PT, PSOL, PCdoB é uma ação tática que contribui para o enfrentamento contra o governo genocida de Bolsonaro, sem nenhuma expectativa que os governos de conciliação de classes tanto do PT ou de suas linhas auxiliares como o PSOL e PCdoB se colocarão em enfrentamento contra as demandas impostas pelo Capital”

Um dos principais diferenciais (e, para nós, um gigantesco atrativo) da ASS/Intersindical com relação às outras organizações, partidos e instrumentos de luta da esquerda foi a posição firme contra a tática eleitoral. Longe de ser um princípio, era a compreensão correta dos limites e retrocessos inevitáveis do recurso uniforme e ininterrupto à disputa por espaços de poder no Estado burguês empreendido pela quase totalidade da esquerda brasileira. Desde que entramos para a ASS/Intersindical (e já se vão mais de dez anos), que vemos firme e expressa a posição de que as mudanças que almejamos não passam pelas urnas e que, por isso, não despenderíamos energia alguma em prol de candidatura, fosse qual fosse. Porém uma conjuntura eleitoral extremamente atípica se desenhou pro ano de 2018. O que exigiu de nós uma atenção inédita para essa pauta até ali. Um amplo debate foi aberto e uma grande reunião nacional foi chamada para discutir nosso posicionamento frente ao segundo turno dessas eleições. No que tiramos voto crítico ao candidato do PT. De ponta a ponta foi um processo muito distinto do ocorrido em novembro de 2020, quando foi divulgada a nota supracitada, que surpreendeu negativamente parte significativa da militância. Em determinadas regiões o conteúdo do texto se chocava frontalmente com os esforços de mobilização de bases para a oposição às direções sindicais e governos compostos por estes partidos. Um tremendo desserviço. Mas vale salientar que esse gosto que a ASS/Intersindical vem tomando pela democracia representativa burguesa não é um raio em céu azul. Muito antes de pensarmos em debater posicionamento frente à eleição de 2018, fomos orientados a imprimir e espalhar cartazes com fotos e nomes de deputados que votaram a favor da Reforma Trabalhista. Parece pouco? Mas é como diz o Professor Mauro Iasi em seu livro As Metamorfoses da Consciência de Classes: “deformações políticas, assim como certas doenças, sempre amadurecem pouco a pouco”. (pg. 420)

Citamos esse exemplo para mostrar que a falta de uma organicidade inviabiliza um debate fluido, expressando a burocratização da direção da Intersindical e sobretudo da ASS ao reforçar o seu caráter trade-unionista, mas o poço pode ser ainda mais fundo.

Quando a contaminação por COVID-19 passava dos 3 milhões de brasileiros, dos quais mais de 100 mil haviam morrido, patrões e seus governos já faziam pressão pelo retorno às aulas. Uma carta denunciando essa campanha e chamando para resistência estava sendo produzida por trabalhadores da educação militantes da Intersindical de diversas regiões do país. Antes que a coletividade finalizasse o texto, no dia 24/08/2020, uma outra versão, fechada no birô, foi publicada no site da organização. Se a falta de uma organicidade inviabiliza um debate fluido, favorecendo a burocracia, na ASS/Intersindical a vontade do birô prevalece até quando se abre o debate! Então, se o que chamamos de Intersindical não passa de correia de transmissão da política da ASS, não seria errado afirmar que os militantes de base da ASS foram transformados em correia de transmissão das vontades do seu birô.

Ser preto na ASS/Intersindical

Há um número cada vez maior de camaradas descontentes com a (des)organicidade, com o economicismo e o burocratismo dentro da ASS/Intersindical. Até aqui denunciamos problemas que são queixas comuns entre nós e esses insatisfeitos. Porém, sobre nós, além de todas as deformações daquilo que deveria ser uma “organização política revolucionária” e um “Instrumento de Luta e Organização da Classe Trabalhadora” há o peso de um sufocante racismo.

Aqui trata-se de dois proletários pretos que rompem com uma organização na qual há ainda um número razoável de outros pretos. Uma ruptura justificada pelo racismo deve causar grande estranhamento aos pretos que ficam. Vivemos num país em que a classe trabalhadora é originalmente preta, e que ela só existe enquanto tal (classe trabalhadora e preta) devido ao racismo sobre o qual se alicerçou o capitalismo[1]. Neste contexto é importante pontuar o que significa ser preto no processo da luta de classes brasileira.

Para começarmos, recorreremos ao famoso discurso do irmão Malcolm X sobre O negro da casa.

Era mês de novembro de 1963. Irmão Malcolm comparece a um importante programa de TV para um debate com o professor universitário Dr Payson, que também era um afrodescendente. Em contraponto ao discurso mais radicalizado de X, Payson profere sua apologia ao integracionismo, chegando ao ponto de chamar Malcolm X de demagogo. A seguir, um trecho da resposta ao professor:

“É preciso entender o raciocínio, e para isso, é necessário saber que, historicamente, havia duas espécies de escravos: o negro da casa e o do campo. O negro da casa vivia junto do senhor, no porão ou no sótão da casa grande. Vestia-se, comia bem e amava o senhor. Amava mais o senhor que o senhor amava a ele. Se o senhor dizia: ‘Temos uma bela casa’, ele respondia: ‘Sim, senhor. Nós temos’. Se a casa pegasse fogo, o negro da casa corria para apagar o fogo. Se o senhor adoecesse, dizia ‘estamos doentes’. ‘Estamos doentes’! Se um escravo do campo lhe dissesse: ‘vamos fugir desse senhor’, ele respondia: ‘existe uma coisa melhor do que o que temos aqui? Não saio daqui.’ O chamávamos de negro da casa. É o que lhe chamamos agora, porque ainda há muitos negros da casa”.

Para viver tão próximo ao senhor, sua esposa e seus filhos o negro da casa precisava se destacar dos demais negros. Precisava se distanciar o máximo possível dos negros da plantação, em suas características. Necessitava assumir características mais aproximadas das dos brancos, ou, adquirir características que aos brancos agradasse. Era preciso passar por um processo de desempretecimento – o mesmo necessário para se ter um trânsito mais tranquilo na esquerda branca e, indispensável para os pretos chegarem e se manterem em cargos de direção nestas mesmas organizações e sindicatos.

Para amarrar de vez o entendimento sobre o que vem a ser um preto desempretecido, atemo-nos à carta do Coletivo Outros Outubros Virão (OOV), intitulada “Pode haver racismo na esquerda?”, na qual ele trata daquilo que chama de miopia racial da Intersindical, ao analisar notas da organização que pretendiam (ou deveriam) denunciar o racismo.

“Além da quase ausente citação do elemento racial, as rarefeitas 4 palavras aparecem enquanto complementares, cuja supressão não afetaria em nada a totalidade semântica e política dos textos. Não por acaso em todas as vezes que aparecem, elas literalmente surgem na posição de últimas palavras nas frases. Na nota sobre o menino Lucas, por exemplo, a palavra ‘negros’ é colocada como a última da nota inteira. O que revela uma irrelevância da temática racial na construção da nota. Se retirássemos a palavra ‘negros’ ao final da nota, o texto teria seu conteúdo inalterado, uma vez que ela está servindo apenas para descrever aspectos físicos ou estéticos, isoladamente, sem uma condução organizada e proposital no texto de correlacionar a relação do significado dessa palavra com o acontecimento, definindo (e defendendo politicamente) sua particularidade.”

Desse parágrafo que, por si só já é muito revelador, queremos destacar este trecho:

“Na nota sobre o menino Lucas, por exemplo, a palavra ‘negros’ é colocada como a última da nota inteira. O que revela uma irrelevância da temática racial na construção da nota. Se retirássemos a palavra ‘negros’ ao final da nota, o texto teria seu conteúdo inalterado, uma vez que ela está servindo apenas para descrever aspectos físicos ou estéticos

O que serve para explicar a miopia racial nas notas da Intersindical, também ajuda a explicar o que entendemos como preto desempretecido. Trata-se do sujeito, afrodescendente, que conseguimos identificá-lo como descendente de africanos tão somente pelos aspectos físicos ou estéticos. Mais ainda. Assim como nas notas da Intersindical, nas quais se você suprimir a palavra “negros” o conteúdo permanece inalterado, se retirasse do preto desempretecido seus aspectos físicos ou estéticos, não faria a menor diferença. Ele continuaria sendo a mesma pessoa, indiferente aos dilemas específicos do proletário preto, ou, sem dar a relevância que a questão exige de quem herdou o fenótipo dos ancestrais escravizados. E a indiferença ainda não é a pior das hipóteses. A ASS/Intersindical produz pretos que boicotam, ou que até combatem a luta antirracismo.

Preto desempretecido silenciando sobre o racismo praticado fora e dentro da organização e, de preferência, se dedicando exclusivamente à luta sindical. Eis o modelo ideal de militante preto para a ASS/Intersindical. A vida não é nada fácil no interior da organização para o preto que não se encaixa nesse perfil. E essa é a carta de desembarque de dois pretos: um, que nunca se dobrou ante a pressão racista da organização, e outro que conseguiu romper com o processo de desempretecimento.

Resistência preta numa das organizações mais racistas da esquerda brasileira. (Gaspa)

Apesar da falácia expressa em alguns dos seus documentos, o racismo nunca foi uma preocupação da ASS/Intersindical. Essas breves passagens nos textos são apenas uma atitude preventiva contra alguma possível acusação neste sentido.

O que chegava mais perto de ser uma militância antirracista da ASS/Intersindical era a atuação de um ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Campinas, antigo militante do Movimento Negro local. Mas sua militância antirracista era muito mais restrita ao âmbito do sindicato e da própria categoria do que na vida da organização. E ainda assim, um antirracismo Democrático e Popular, tal qual o praticado por uma outra militante previdenciária. Não foram poucas as vezes que tentei pautar o debate nas reuniões nacionais. Mas nunca era o momento, nunca era o lugar e sempre tinha um calendário apertado de eleições sindicais para que a organização se desse ao luxo de perder tempo com essa discussão. Por forças das circunstâncias – um incidente envolvendo Mauro Iasi (Comitê Central do PCB) e militantes Pan-africanistas de direita – em 2014 toda a esquerda do país se viu obrigada a debruçar-se sobre o tema. E, por incrível que pareça, até a Intersindical.

Anualmente se realiza aquilo que chamam de Plenária Nacional da Intersindical. Apesar do nome pomposo, só há deliberação no âmbito dos ramos (Correios, bancários, trabalhadores do Estado, produtivos, etc). A nível nacional todos se encontram somente para referendar o que já estava decidido. E naquele fatídico 2014, enfim o debate racial. Porém, em conjunto com outras pautas. Desta forma o debate é devidamente diluído até que não tenha forças para seguir adiante. Não, pelo menos, com o necessário vigor. E, a reboque de todos os acontecimentos, um texto que produzi meses antes e que havia servido de base para debates em outros partidos e movimentos, mas que havia sido rejeitado no birô da ASS/Intersindical, constava na pasta que cada participante recebeu[2]. Contudo, “estranhamente” desapareceram as notas de rodapé![3] Como desdobramento do debate foi criado um grupo de combate às opressões. E na única reunião deste grupo, muita opressão racial. Ao falar da necessidade de um espaço exclusivo para os pretos da organização, com intuito de reverter o processo de desempretecimento, fui severamente atacado.

No relatório do Encontro Nacional da Alternativa Sindical Socialista de 2011 encontramos o seguinte:

“Em relação a mulheres, etnia, glbtt, a partir de nossos princípios: embora não tenhamos regularidade e as ações ainda estejam dispersas, nesses anos de construção avançamos em mais do que fazer o debate também agir com o necessário corte de classe, reconhecer as diferenças, as demandas específicas com rigor de não guetizá-las”.

Os ataques proferidos contra mim neste encontro do grupo de opressões, já era a realização desse rigor de não “guetizar”, não deixar que se formem guetos. E assim me acusaram de pretender promover uma auto-organização preta por dentro da ASS/Intersindical. Mas o que estaria por trás desse rigor em não deixar os pretos “guetizarem”?

Reiterando, a primeira classe trabalhadora do Brasil foi a classe escrava, formada, quase em sua totalidade, por africanos. A submissão desses africanos ao trabalho forçado só era possível sob muita violência, que não era somente física. Era preciso dobrar cada um desses homens e cada uma dessas mulheres em seus espíritos. E aqui se separou grupos étnicos, evitando reunir na mesma unidade de produção negros que falassem a mesma língua, ainda que todos fossem proibidos de usar algum idioma que não fosse o do branco; se obrigou cada africano a abdicar de seu nome ao receber um nome de branco; se proibiu a fé nas divindades africanas, obrigando a crença no deus dos brancos; todo o passado dos nossos povos ancestrais foi apagado e nossa história passa a ser contada a partir do contato com os brancos. Não bastava arrancar nosso povo de suas famílias e de sua terra. O processo de desenraizamento tinha de continuar na colônia. Era uma forma de enfraquecer nossos ancestrais para facilitar sua subalternização. Disso tudo podemos tirar duas conclusões. A primeira é que o medo que os racistas têm da unidade entre os pretos não é novidade alguma. Ainda que em outro contexto, a esquerda branca brasileira – e, muito mais a ASS/Intersindical – preserva os hábitos dos seus ancestrais. E outra é que, se destruir nossa identidade e cortar todo e qualquer vínculo nosso com África foi um mecanismo usado para nos enfraquecer, para nos fortalecermos é necessário percorrer o caminho inverso. Temos que nos unir e nos reconectarmos com esse passado, recuperar o nosso “eu” perdido na travessia do Atlântico, não para tentarmos uma vida anacrônica, ou construirmos um caminho de retorno físico à África. Nada disso. Precisamos, no mínimo, saber quem somos. E é esse autoconhecimento que nos dá a lente de aumento que nos permite enxergar o racismo existente nas entrelinhas da nossa relação com os brancos. Reivindicar um espaço para essa tarefa, que é só nossa, não é reivindicar auto-organização, mas vejam. Denunciamos o centralismo burocrático e as manobras na cúpula para esta evitar os debates e encaminhar a luta ao seu gosto. Também denunciamos que numa organização trade-unionista como a ASS/Intersindical, todas as energias militantes se concentram em eleger chapas, manter a máquina sindical pra reeleger as chapas. No fim de tudo, para pretos que querem fazer luta antirracista numa organização com esse perfil, só resta uma alternativa: a auto-organização. Ao invés de temer uma auto-organização preta, revolucionários de verdade deveriam incentivá-la. Um bom exemplo nos vem da Internacional Comunista, que em seu IV Congresso (1922) aprovou a Tese sobre a questão preta. E nela podemos ler:

“A Internacional Comunista representa os trabalhadores e camponeses revolucionários de todo o mundo na sua luta contra o poder do imperialismo — não é apenas uma organização dos trabalhadores escravizados brancos da Europa e da América, mas é também uma organização dos povos oprimidos não-brancos do mundo, que assim incentivam e apoiam as organizações internacionais dos pretos na sua luta contra o inimigo comum”.

Mais do que temer a unidade entre comunistas pretos e coibir o debate interno sobre o racismo, os racistas da ASS/Intersindical boicotam, inclusive, o debate externo. Em julho de 2020 fomos chamados por militantes de Rio Claro (SP) pra debater o tema numa live (https://www.facebook.com/outrosoutubrosvirao/videos/3380362655341487). Por se tratar de uma atividade que reunia militantes pretos de diferentes regiões do país, os organizadores tentaram viabilizar a transmissão pela mídia da própria Intersindical. O que foi vetado pelo birô. Meses depois a história se repete. Em pleno Mês da Consciência Negra, uma nota produzida na Inter do Rio Grande do Sul sobre o assassinato de um homem preto, numa loja do Carrefour em Porto Alegre, teve que ser publicada no blog do OOV (https://outrosoutubrosvirao.wordpress.com/2020/11/30/o-assassinato-de-mais-um-trabalhador-preto-nao-vamos-esquecer-nao-vamos-nos-silenciar-e-racismo/), pois o birô novamente havia vetado a veiculação na mídia da organização. No primeiro caso, aqueles que se negam a debater sobre racismo, alegaram falta de acúmulo sobre o tema por parte dos envolvidos. Como “envolvidos” entendam, inclusive, dois membros da Comissão Nacional Racial (CNR) do OOV, o autor de um livro sobre o racismo no movimento sindical, e eu. A justificativa para a negativa na nota da militância do RS foi divergências acerca das circunstâncias sob as quais vieram para cá os trabalhadores europeus na grande campanha imigrantista brasileira. Divergências que poderiam ter sido sanadas se fosse no interior de uma organização que não adia ao infinito o debate racial. Tanto para a live, quanto para a carta, houve contribuição de participantes dos Círculos de Estudos O Levante de Soweto, que, a partir do materialismo histórico dialético, debatem a luta antirracismo.

O debate sobre a questão racial é, sobretudo, um exercício antirracista. Indivíduos e grupos que se furtam a essa discussão estarão condenados a reproduzirem discursos e atitudes altamente racistas. A própria recusa em debater o tema já é, em si, uma postura demasiada racista e que tem desdobramentos sérios, como reproduzir palavra de ordem da supremacia branca[4] em panfleto da organização, só para citar um exemplo. Importante mencionar outro episódio, para dar a medida da gravidade da situação. O ECTista Buiú, um outro militante comprometido com a luta antirracista, nos conta que solicitou espaço para abordar a questão racial num material impresso. A resposta foi estarrecedora. No boletim não haveria nada referente ao racismo, nem ao socialismo, pois ambos os temas estão acima da capacidade cognitiva do trabalhador, que só pode compreender sobre suas necessidades imediatas. Antes de debatermos sobre o racismo dos dois exemplos, quero chamar atenção para aspectos gritantes deste ocorrido. O mais visível deles, que reflete o que estamos reclamando ao longo desta carta, é o caráter trade-unionista da organização, que faz todo o esforço possível para não parecer economicista, mas que evita expressamente tudo aquilo que transponha a barreira das demandas imediatas da classe. O outro, diz respeito direto ao cuidado de evitar menção ao socialismo por que a ruptura socialista não está dada para a consciência da classe trabalhadora. Esta política está na gênese da EDP, tão severa e brilhantemente criticada por esta organização! E, agora, analisando os dois exemplos em conjunto, vemos uma organização que produz material sem conteúdo antirracista, mas com palavra de ordem dos supremacistas brancos. Para piorar, cada denúncia de atitude racista é respondida com cinismo, culpabilização[5], linchamento político, desqualificação do denunciante e mais racismo. Vai haver queixas sobre as formas de expressar as denúncias, mas a esse respeito é preciso dizer: primeiro, que foram as formas que restaram depois de ter sido tentado todas as outras, durante oito penosos anos sob intenso racismo. E depois, que as práticas denunciadas possivelmente nem teriam ocorrido caso a organização tivesse, desde as primeiras tentativas, acatado as reivindicações de adotar outra postura frente à questão racial.

Rompendo com o desempretecimento na ASS/Intersindical. (Agnus)

Como já afirmamos anteriormente, o capitalismo se alicerçou com o racismo desde sua gênese no período da “assim chamada acumulação primitiva”, processo de transição do feudalismo a este nascente modo de produção com as expropriações dos camponeses, da separação dos produtores diretos com os meios de produção e combinado especialmente com o colonialismo e a escravidão. Todo este processo que dura aproximadamente de três a quatro séculos é realizado pela violência concentrada e organizada do nascente Estado moderno, combinados com o sistema de dívida pública, o protecionismo e o sistema tributário. Gerando numa ponta, na Europa, uma classe burguesa em ascensão e uma massa de despossuídos que será conhecida como proletariado. Na outra ponta, com as invasões coloniais, principalmente nas Américas, ocorre o colonialismo e a escravização dos povos originários e, posteriormente, a escravização dos povos africanos alimentados pelo comércio destes integrando uma rota mercantil que envolvia Europa, África e Américas.

A acumulação primitiva em movimento criou as condições para o surgimento do capitalismo industrial e juntamente com este veio as revoluções políticas burguesas que consolidou o Estado burguês como o aparato de violência oficial e organizado da classe dominante, a organização das relações contratuais entre proprietários, a concorrência dos mesmos e a institucionalização das liberdades e igualdades formais, logo tendo como ideologia dominante, o liberalismo. Esta ideologia que justifica as relações de produção capitalistas como legítimas, naturais e eternas também cria uma visão idealizada de homem-modelo. Este é europeu, branco, portador da racionalidade, burguês e guardião dos valores liberais, logo o que não couber nesta visão de homem-modelo não é considerado um igual e não merece a liberdade.

A invasão colonial portuguesa no espaço da América do Sul que atualmente conhecemos como Brasil foi um dos principais palcos do colonialismo e da escravidão, abarcando aqui o maior contingente de africanos escravizados no período da acumulação primitiva. Porém, os pretos escravizados não eram sujeitos passivos. Mesmo com toda a vigilância, violência ostensiva e dentre outros mecanismos que serão parte intrínseca da truculência racista do futuro Estado burguês brasileiro, os pretos escravizados se organizavam em diversas lutas de resistência cuja a principal forma foi a quilombagem: uma onda de lutas de longa duração caracterizadas por fugas dos escravizados nos latifúndios, sabotagens nas plantações, formação de quilombos, cuja principal expressão é Ngola Janga ou a República dos Palmares.

Depois da Independência do Brasil, a luta escrava se articula com a luta abolicionista impulsionada pelos setores médios urbanos ao mesmo tempo em que os escravocratas gradualmente vão substituindo o trabalho escravo pelo trabalho livre. Enquanto o Estado escravista moderno vai criando as condições de implantação do capitalismo no Brasil com o fim do comércio de escravos e a Lei de Terras, e subsidiando a vinda de imigrantes europeus para o país e com a abolição total da escravatura nesse processo lento e gradual, estes tornam-se a “classe trabalhadora oficial” do Brasil. Enquanto os pretos recém-libertos ficam na “margem” do nascente mercado de trabalho capitalista, ficando entre o desemprego e os trabalhos mais degradantes impostos pelos patrões.

O racismo (seja nas formas históricas necessárias de cada período, como o racismo científico/política de branqueamento do país, o mito da democracia racial e o racismo explícito propagado pela extrema direita atualmente) continuará tendo um papel intrínseco na produção e reprodução do capitalismo colocando o proletariado preto no exército industrial de reserva, agindo como parte da ideologia liberal para naturalizar o seu “lugar” nesta exploração, dividindo a classe trabalhadora para não se verem como iguais de fato na luta contra o inimigo comum. O Estado burguês agirá com maior violência sobre estes para o controle social e sua permanência no exército industrial de reserva, cuja função é o rebaixamento do valor da força de trabalho de todo o proletariado, assim aumentando o espaço de extração de mais-valia capitalizado pelos patrões.

O racismo como parte da ideologia dominante também atinge as fileiras da classe trabalhadora organizada e do que conhecemos como esquerda. A esquerda brasileira, inclusive o setor que reivindica a revolução social e a construção do comunismo, possui uma visão abstrata e idealizada de uma classe trabalhadora que é branca, europeia, de “colarinho azul”, como se estivéssemos na Europa dos tempos do Estado de Bem-Estar Social. Essa visão é praticamente o outro lado da moeda do homem-modelo branco, europeu, racional, burguês e liberal, e sob ela são fundamentadas análises, formulações e orientam práticas políticas.

Sob esta visão, a esquerda acredita que a luta de classes no Brasil se inicia com a greve geral de 1917 em São Paulo, ignorando a resistência dos povos originários desde a invasão colonial portuguesa e a luta dos pretos escravizados (que acima mencionamos) como luta de classes. Inclusive, vale ressaltar que a greve, como importante tática da luta proletária contra o capital, já era utilizada pelos pretos escravizados desde o século anterior.

A consequência prática desta concepção é a reprodução sistemática do racismo nas fileiras das organizações de esquerda, deixando de organizar e se inserir na maior parte da classe trabalhadora que é preta, precarizada e não sindicalizada. Ficando um fosso gigante entre ela e uma esquerda que além de ter uma concepção pequeno burguesa, reformista, conciliadora, é branca.

O fosso entre a esquerda, assim como o seu racismo, e o proletariado preto também está presente com muita força no interior da ASS/Intersindical.

Ouvimos muitas vezes o lema da ASS/Intersindical: “A Classe ao Centro e ao Centro da Classe” como síntese da afirmação da centralidade da classe trabalhadora como o sujeito histórico revolucionário contra o capital e também para apontar as críticas à EDP e ao pós-modernismo. Foi isso que nos atraiu para militância no seu interior e com certeza de muitos outros militantes sejam pretos, pretos desempretecidos e brancos que já não sentiam-se contemplados entre as várias siglas da esquerda.

A EDP faz uma afirmação da classe no sentido de uma classe em si e não uma classe para si. Ao permanecer presa nessa forma de consciência em si, sua concepção de classe vai sendo uma soma e formalidade de opressões como identidades (gênero, raça, LGBT, etc.), cada uma no seu quadrado específico, disputando o Estado burguês, conciliando com a burguesia e garantindo um pouco de recursos para políticas públicas, mas minando o aspecto revolucionário contra a sociedade burguesa. Já o pós-modernismo faz a negação da classe trabalhadora como sujeito histórico contra o capital, nega a luta de classes e afirma as opressões de forma individual. Tanto a primeira quanto a segunda chegam a se convergir em movimento, sendo bastante funcional para o capitalismo na cooptação destes aspectos da luta de classe do proletariado e a formação de uma esquerda cada vez mais domesticada nesta ordem.

Porém a afirmação desta centralidade de classe e a crítica da EDP e do pós-modernismo feita pela ASS/Intersindical envergou tanto a curvatura da vara que ficou torta. Uma negação radical do que seriam as especificidades que preencham a compreensão da classe trabalhadora brasileira é vista como expressões destas concepções, principalmente no que concerne à questão racial. Reafirmando a visão idealizada de uma classe trabalhadora completamente branca e no limite com alguns pretos desempretecidos em suas fileiras.

Essa vara torta na concepção teórica da ASS/Intersindical vai fundamentar sua prática racista ao afirmar que discutir o racismo divide a classe. O que é o contrário, não discutir o racismo com a classe trabalhadora vai continuar dividindo-a e a burguesia continuará forte na sua sistemática exploração.

Com um caráter trade-unionista sua prioridade é ganhar sindicatos e daí ficar apenas no economicismo. Discutir o combate ao racismo nas eleições sindicais e campanhas salariais trás o medo de perder votos e associados entre os trabalhadores brancos que reproduzem o racismo no seu senso comum moldado pela ideologia.

Isso leva na ASS/Intersindical, a compreensão de que o racismo não é parte integrante da luta da classe trabalhadora contra a burguesia, ou seja, da luta de classes (ainda que façam referências vagas em alguns dos seus documentos) criando um falso dualismo entre dois pólos que se articulam e se colocam em movimento na dinâmica da luta de classes no modo de produção capitalista e em especial na formação social brasileira.

Para não dizer que não discute racismo no seu interior, a ASS/Intersindical lançou notas sobre o 20 de Novembro nos últimos três anos, e casos da violência racista do Estado que ganha repercussão na sociedade e só. Os militantes pretos nunca foram consultados sobre o conteúdo das notas e muito menos escreveram-nas. Por mais que afirme um conteúdo antirracista articulado com a centralidade de classe, a prática fica bem longe disso.

O medo dos racistas da ASS/Intersindical seja na direção, como na sua base, é que os pretos se apropriem da teoria marxista e combinem com a luta antirracista. Por mais que neguem isso nas suas falas e escritos, a prática evidencia o contrário. O militante preto da ASS/Intersindical que até mesmo seja desempretecido acaba sendo boicotado nas tarefas de tocar a formação, e por mais estudioso e experiente na apropriação da teoria da classe, ele é menosprezado, relegado para outras tarefas, inclusive podendo ser atropelado pelos camaradas brancos quando vai colocá-las em prática, reforçando aquela cultura oportunista que já elencamos no início do documento. No limite será um tarefeiro que entrega panfletos na porta das fábricas, será mesário ou fiscal nas eleições sindicais, reafirmando a divisão racial do trabalho militante como a reprodução da divisão racial do trabalho existente no interior da sociedade burguesa.

Quem também partilha desta crítica é a irmã Assata Shakur (ex-militante do Partido dos Panteras Pretas exilada em Cuba) em sua autobiografia escrita em meados da década de 1980:

“(…) Eu não me identificava com a ideia de um grande pai branco na terra assim como não me identificava com um grande pai branco no céu. Eu estava disposta e pronta a aprender de tudo que eu podia com eles, mas eu com certeza não estava disposta a aceitá-los como líderes da luta pela Libertação Preta. Alguns poucos achavam que tinham o monopólio sobre Marx e agiam como se os únicos experts sobre socialismo no mundo vieram da Europa. Em muitos casos, eles rebaixavam as contribuições teóricas e práticas de revolucionários do Terceiro Mundo como Fidel Castro, Ho Chi Minh, Agostinho Neto e outros líderes de movimentos por libertação do Terceiro Mundo.”
(…)
“Um membro de um grupo me disse que se eu realmente estava preocupada sobre a libertação do povo Preto, eu deveria largar a escola e arranjar um emprego numa fábrica, que se eu queria me livrar do sistema, eu deveria trabalhar numa fábrica e organizar os trabalhadores. Quando eu perguntei por que ele não estava trabalhando numa fábrica e organizando os trabalhadores, ele me disse que estava ficando na escola para organizar os estudantes.” (Assata: Uma Autobiografia, 1989)

Também é medo dos racistas da ASS/Intersindical que os pretos se unifiquem e pautem conjuntamente a discussão e a luta antirracista na militância cotidiana, repetindo os chavões ideológicos de que isso dividiria a classe, que tal discussão é um desvio da EDP e do pós-modernismo. No entanto, ocorre até mesmo um refinamento na forma de afirmar estes chavões racistas. Com o avanço quantitativo das demandas da luta antirracista nas organizações de esquerda nos dias atuais, o “falar sobre racismo divide a classe” ganha a versão mais sofisticada “não devemos criar guetos para nos dividir”, colocando em prática o alvejante para desempretecer os pretos e reforçar o falso dualismo. Essa nova razão dualista e o refinamento dos chavões racistas continua legitimando a prática de dividir os pretos da organização, similar a uma velha tática da antiga classe dominante brasileira sob o escravismo colonial, que dividia os pretos recém-chegados de África para diversas regiões, separando pais, mães, filhas e filhos.

Os poucos dirigentes sindicais pretos da ASS/Intersindical, além de servirem de escudos para a organização se proteger das inevitáveis acusações de racismo, só são dirigentes porque praticamente não discutem a questão racial como intrínseca ao capitalismo, e quando discutem limitam-se nos marcos da EDP e beirando até mesmo o pós-modernismo. Estes acabam contribuindo na reprodução das concepções idealizadas da classe trabalhadora e o falso dualismo, amplificando o alvejante e a reprodução em escala do desempretecimento.

O autor destas linhas faz uma autocrítica enquanto um proletário preto que rompeu o desempretecimento que a sociedade burguesa opera sistematicamente e é reproduzida no interior da ASS/Intersindical. Estive na construção desta organização desde o final da década de 2000, pois entendia que ela tinha a leitura da realidade mais acertada e uma prática coerente ao não priorizar a disputa desenfreada do Estado que pauta a esquerda pequeno burguesa e branca até hoje.

Porém, compartilhava da visão de que o racismo era apenas um detalhe a ser tratado dentro da luta da classe trabalhadora e tinha uma ingenuidade de que afirmar a centralidade da classe como sujeito histórico revolucionário neutralizaria entre camaradas as diferenças em relação ao racismo, machismo, entre outros. Logo, eu era um preto desempretecido que pouco me atentava para a luta antirracista, também pelo incômodo que tinha com as abordagens inspiradas na EDP e no pós-modernismo que até o momento são predominantes no meio desta luta. O racismo sistemático e sufocante que sofria na ASS/Intersindical, em especial no núcleo de Campinas, onde eu era o único preto, sob a forma de boicotes, deslegitimações, menosprezos e “rasteiras” nas ações práticas levaram ao meu afastamento há mais de quatro anos. Após este afastamento percebi que tais ações tinham um cunho racista, me obrigando a debruçar sobre a questão racial e à luta antirracista. Acredito que situações parecidas aconteceram e ainda aconteçam com outros irmãos e irmãs dentro desta organização, porém a dispersão imposta pela direção dificulta a partilha destas angústias.

Para uma organização sindical que reivindica se tornar uma organização política revolucionária, ela erra totalmente na análise da formação social brasileira, a mesma crítica que faz às Estratégias Democrática e Nacional e Democrática e Popular por não colocar o racismo articulado com o capitalismo como sua parte fundamental, a ASS/Intersindical tem uma prática racista ao deslegitimar os militantes pretos que defendam que a luta antirracista é parte fundamental da luta de classes.

O caráter da revolução no Brasil é socialista, não devemos ter mais ilusões com tarefas democráticas em atraso ou defender as instituições burguesas a todo custo, elas já estão consolidadas e vão “muito bem, obrigado” como parte da reprodução ampliada do capital. Devemos construir uma estratégia revolucionária socialista entendendo que a luta antirracista e a luta da classe trabalhadora é uma só luta. É necessário organizar o proletariado preto que é majoritário e construir com eles os instrumentos necessários para esta revolução.

Para nós, a ASS/Intersindical já cumpriu o seu papel histórico como uma organização que aprofundou a crítica necessária à EDP. No entanto, reforçou o seu caráter trade-unionista ao mesmo tempo que fracassou na sua reivindicação para tornar-se uma organização política revolucionária. Como já afirmamos anteriormente, o trade-unionismo é a escravidão ideológica do proletariado pela burguesia – sendo o racismo integrante da ideologia da classe dominante -, a prática racista da ASS/Intersindical está totalmente coerente com o seu caráter político. Assim, ela atingiu o seu limite para reorganizar o proletariado durante a realização e crise da EDP para o rumo da revolução socialista.

27 de Fevereiro de 2021

Assinam:
Gaspa (Rio de Janeiro)
Agnus (São Paulo)


Notas:

[1] “A escravidão direta é o êxito da indústria burguesa, assim como as máquinas, o crédito, etc. Sem escravidão, não teríamos o algodão; sem o algodão, não teríamos a indústria moderna. A escravidão valorizou as colônias, as colônias criaram o comércio universal, o comércio que é a condição da grande indústria. Por isto, a escravidão é uma categoria econômica da mais alta importância” (MARX, Karl. Miséria da Filosofia: Resposta à Filosofia da Miséria, do Sr. Proudhon. 1ª edição, São Paulo, SP. Expressão Popular, 2009, pgs. 127 e 128. Deste entendimento deriva a célebre frase de Malcolm X: “Não pode haver capitalismo sem racismo”

[2] Tanto na circular de dezembro de 2020 da Intersindical, como em outros documentos da ASS há referências a um certo acúmulo nos debates tocantes à etnia, LGBT e gênero. No que tange à luta antirracista a afirmação é inverossímil, ainda mais se considerarmos que na pasta havia as sínteses dos debates sobre gênero e LGBT, porém, o texto sobre raça era justamente o meu, recusado pelo birô meses antes.

[3] Em outra situação, em que fui representar a Intersindical no Encontro Nacional para Assuntos Raciais da Federação Nacional dos Trabalhadores dos Correios, o “nosso” militante que estava na organização do evento não só não botou o texto nas pastas (fomos a única organização sem material nas pastas do Encontro), como dividiu meu tempo ao meio com outra irmã que fez fala sobre a Reforma da Previdência.

[4] “Todas as vidas importam”, slogan criado pelos supremacistas brancos dos EUA, em oposição ao movimento Vidas Pretas Importam, já usada, inclusive, pelo presidente Jair Bolsonaro.

[5] Os únicos dois pretos da organização que desde sempre militaram contra o racismo e tentaram promover o debate racial, eram responsabilizados por cada ato racista, acusados de não terem ensinado os racistas a não serem racistas.

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