Cecília era ainda menina quando descobriu os dotes da cozinha. Da porta, espiava a mãe fazer a brancura do arroz, às vezes, invadida pelo laranja da cenoura ou pelo verde da lentilha. O feijão, antes sem cheiro, do nada, com uma folhinha, mudava de aroma. Os vermelhos, verdes e brancos da salada se encontravam com o remexer da colher. A panela de pressão chiava, a colher de pau rebolava na panela, a faca cortava em pedacinhos cada ingrediente que iria preencher a refeição. Para a menina, não havia melhor sinfonia.
Como aquela criança adorava o espaço da cozinha, achava-o mágico. Era o lugar onde se criava e se transformava. Aqueles aromas, aquelas cores, aqueles sons só podiam ser magia, não tinha outra explicação. Desde que descobriu os encantos daquele recinto, sonhava com o dia em que a mãe a ensinaria a fazer mágica de cozinha.
Chegado os nove anos de menina, a mãe de Cecília resolveu ensiná-la a fazer arroz. Dizia que ela já era mocinha e precisava aprender. A menina não entendeu a diferença entre ser mocinha e ser menina, mas pouco importava, iria aprender a fazer mágica de cozinha.
Primeiro, tirar a casca do alho. O cheiro era forte e chegou rápido às narinas. Depois, tinha que macetar o tempero no pilão com sal. Mas, quanto de sal? Uma colher pequena é suficiente para três canecas de arroz. Com o tempo, Cecília aprendeu que poderia ir experimentando a água do arroz até achar o ponto do sal. Essa foi uma de suas grandes descobertas.
Com uma caneca, foi tirando o arroz da vasilha e colocando-o no escorredor. Um… Dois… Três… Hora de lavar. Foi uma sensação gostosa sentir os dedos sendo massageados pelo arroz. Depois, deixou o recipiente em cima de um copo na pia para a água descer. A menina descobriu que o arroz não ia todo para a panela, que na água que escorria branquinha ele se perdia um pouquinho.
Cortar cebola ardia e aguava os olhos. Cecília logo aprendeu que para aprender tal magia, havia outros ingredientes que saiam da gente. As lágrimas eram um dos temperos e, assim como o arroz, ela também iria ter que se deixar um pouquinho para que o encanto se fizesse.
Com muito cuidado, a jovem pôs os temperos na panela, acompanhados de um filete de óleo. A cebola e o alho, antes branquinhos, foram ficando amarelados e até a cor do óleo foi mudando. A mágica estava acontecendo.
Depois de tudo ficar bem amarelinho, Cecília foi colocando o arroz e fez a colher de pau rebolar dentro da panela. Sentia-se uma bruxinha fazendo feitiço. Olhando para o material que se misturava na panela, a menina se encantou ainda mais. O arroz também estava ficando amarelinho. Naquele mesclar de ingredientes, distraída, queimou um pouco a barriga. A mãe ralhou, mas Ceci não ligou, já tinha entendido que nessa magia tínhamos que deixar um pouco da gente. Agora foi um pouquinho de pele tostada.
O último passo no preparo era colocar a água no arroz. Tinha de cobrir tudo. Assim a menina fez, o branquinho meio amarelo do arroz ficou todo debaixo da água. Como saber quando fica pronto? Tinha que ficar olhando de vez em quando. Enfiar a colher dentro do arroz, até no fundo, para ver se ainda tinha água. A menina, ansiosa, olhava de minuto em minuto, assim sua mãe também percebeu que esse relógio dentro da gente não era natural, que era construído e que a filha ainda não tinha o reloginho de dentro. Então, teve de trabalhar com o tempo do mundo em vez do tempo da cozinha. Falou para a menina esperar 10 minuto e ver se a água secou, se a água tivesse secado, experimentar um grão de arroz, se estivesse duro, colocar mais duas canecas de água e esperar mais 5 minutos.
Cecília seguiu todas as orientações da mãe. Ficava olhando o relógio e esperava o ponteiro grande passar pelos 10 pauzinhos. Corria para a cozinha e via se a água tinha sumido. Com todo o cuidado, e seguindo à risca as orientações de sua mãe, pegava um grãozinho apenas. Estava duro. Mais duas canecas de água. E lá ia ela para frente do relógio para esperar o ponteiro grande caminhar.
Finalmente, o arroz ficou pronto. A mãe de Ceci já tinha feito o feijão e o bife acebolado. A menina não se aguentava de ansiedade. Todos comeram do arroz e não disseram nada. A pequena ficou olhando e esperando, sem se atrever a colocar uma colherada na boca. A mãe de Cecília, percebendo a ansiedade da filha e, mesmo sabendo que não se deve esperar agradecimento, decidiu fazer um agrado à menina e disse que o arroz estava muito gostoso. A criança quase pulou da cadeira de tanta alegria. A mágica tinha dado certo.
Ceci foi crescendo e aprendendo outras magias. Aprendeu a fazer frango cozido, mas não gostava de quebrar os ossos do frango, por isso foi uma grande descoberta saber que o açougue já vende cortado. Carne de panela era sua especialidade, pelo menos até descobrir o estrogonofe, que virou seu prato preferido. Lasanha, macarronada, bife à parmegiana e, quando veio a descoberta dos sites de receitas, foi muito além das magias que a mãe ensinava e aprendeu outras.
A menina gostava de inventar. Foram várias lágrimas, queimaduras e feituras. A mãe insistia que não era brincadeira, para ela era estranho alguém se divertir tanto em tal afazer. No entanto, para Cecília, nunca foi um mero divertimento, para ela, mágica de cozinha era coisa séria, por isso não ligava quando deixava lágrimas e um pouco de pele tostada no processo, era parte da magia e aceitava de bom grado.
De menina, Cecília foi se tornando moça e começou a entender os dizeres de sua mãe. Agora, aquela, que antes ficava em casa fazendo mágica com ela e que ensinou tanta coisa, tinha de fazer mágica em outro lugar. A vida mudara. A moça ficou sozinha em seus inventos. Antes, podia escolher o tempo de fazer seus truques, agora tinha que fazer mágica todo dia.
O pai só vinha para casa de fim de semana. Ficava ela e o irmão. Ceci, aos poucos, foi perdendo a vontade de inventar, fazia todos os dias o mesmo prato. A mágica já não funcionava como antes. O rebolar da colher de pau na panela já não lhe encantava, fazia-lhe doer o braço. Em seus braços e barriga ficaram as marcas da cozinha, que agora já não era tão encantada como antes. Como pode algo se desencantar desse jeito?
A jovem moça foi percebendo que não podia cozinhar o que queria. Os tempos foram se perdendo e os espaços ficando confusos. O irmão não gostava de coentro, o pai às vezes reclamava do arroz empapado, a mãe chamava sua atenção para a comida que queimava no fundo da panela. O relógio, que antes fazia ela ansiar pela hora do almoço, agora a angustiava, aquele tic-tac batia em seu peito como um martelo.
Ainda gostava da cozinha e a sentia tão injustiçada quanto ela, sabia que o espaço de seus encantos de menina também tinha se transformado e queria sua mágica de volta. Mas ela não sentia mais vontade de colorir de temperos os pratos e a cozinha, quase sempre, cheirava a queimado. Aquele espaço, antes encantado, como Cecília, foi se entristecendo e perdendo a cor.

De moça, Cecília se converteu em mulher. Ainda jovem se casou. No começo, buscou novamente os encantos da arte de cozinhar. Por vezes conseguiu encontrá-lo. Outra cozinha, outras panelas, novas mágicas, o encanto voltou para a vida de Ceci.
Quando engravidou, apoiava os pratos com os temperos na barriga. Sentia os aromas e os compartilhava com a filha que carregava no ventre. Passou a detestar alguns odores, pois sentia-se enjoada, outros passaram a fasciná-la ainda mais. Reviveu a mágica que havia se perdido quando ainda era moça.
Quando a criança nasceu, Ceci se sentiu tão feliz. A vida mudara, agora tinha um serzinho que compartilharia com ela os encantos, os aromas e as descobertas, que sentiria a mágica com ela.
O marido de Cecília trabalhava fora. Com o tempo, começou a ficar difícil cozinhar com uma criança no colo, precisava de mais tempo e o tempo do mundo parecia não ser amistoso com as mulheres. Estava sempre cansada e o marido sempre chegava com fome. Da primeira vez que não encontrou comida, gritou com ela. Ela chorou. Da segunda vez, encontrou a comida queimada. Não comeu em casa. Voltou com cheiro de bebida e cigarros. Da terceira vez, o arroz estava empapado. Deu-lhe um tapa. Da quarta vez, encontrou Ceci com a criança atada às suas costas, ela tinha os olhos inchados e a comida estava pronta, do jeito que ele gostava. Cecilia fez a magia, mas agora tinha de colocar muitos ingredientes de si mesma, foi-se quase inteira no preparo daquele prato, que agora o marido saboreava com gosto.
A cozinha, sua companheira desde menina, se tornou seu refúgio. Antes seu encanto abria Cecília para o mundo, um saber colorido. Agora, o mundo a enclausurava naquele espaço, em um tempo sem encanto, sem mágica, desprovido de cor. No corte dos alimentos, descontava a ira por tudo que perdeu. A vida mudara. O rebolar da colher de pau na panela, agora era duro, não havia mais dança naquele gesto. Não via mais as cores, o cinza tomou conta de tudo, os aromas se perderam. Sabia as medidas, seu relógio de dentro funcionava bem, não olhava mais o relógio do mundo para nada. A cebola virou sua desculpa para chorar. As marcas em seus braços viraram a única recordação do tempo da mágica da cozinha. Um tempo em que era lhe permitido encantar-se.
No dia em que a filha pediu para aprender a cozinhar, a mãe negou e chorou.
Por Danimar – “Sou educadora de Português e Espanhol e defendo uma educação emancipadora para a classe trabalhadora. Militante comunista e feminista, luto por uma sociedade em que nossa classe não seja mais explorada e na qual a mulher possa viver sem medo.”
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Muito bom! Muito bem escrito e realista… O seu texto me fez pensar em como cozinhar é de fato magia assim como parir, abortar e curar com ervas, pedras, reza, etc. Essa transformação da magia em trabalho não remunerado é o nosso drama desde a colonização…