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30 mar 2021

Helena Silvestre – O movimento sem teto e o feminismo periférico

Essa entrevista faz parte do livro Fala Carolinas! Mulheres na luta por vida e dignidade, uma poderosa reunião de entrevistas, ensaios e poemas de mulheres negras, indígenas e periféricas que protagonizam e narram a luta de movimentos por moradia, transporte, cultura, LGBTQI+, contra o cárcere, curandeiras, parteiras, educadoras, e na resistência das comunidades indígenas no Chile.

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Helena Silvestre nasceu em 10 de agosto de 1984, na região metropolitana da cidade de São Paulo, em Mauá, onde viveu toda a sua infância na Favela do Macuco, no Jardim Zaíra. É militante, ativista das lutas pela libertação de povos, corpos e territórios submetidos à lógica do sistema capitalista. Feminista afroindígena, é editora da revista Amazonas, e reúne o bonde de mulheres da Escola Feminista Abya Yala. Escritora participante do Sarau do Binho, recentemente publicou dois livros. Sendo o primeiro, Do verbo que o amor não presta, e o segundo, Notas sobre a Fome (que foi finalista do premio Jabuti em 2020).

Em seu depoimento, Helena Silvestre conta que iniciou sua militância muito jovem, com apenas doze anos de idade. Quando uma de suas professoras apresentou um grupo da Juventude Operária Católica. Helena narra que mesmo não sendo Católica e muito menos Operária, ficou muito entusiasmada com o grupo. Depois disso a sua vida foi muito desenhada pela militância. Atualmente, Helena continua sua militância na Zona Sul de São Paulo. Esta entrevista foi realizada pela Grazielia Pereira em janeiro de 2020, na Zona Oeste, por isso as informações descritas durante a entrevista podem ter passado por algumas modificações.

Qual foi a sua primeira ocupação? Qual o seu primeiro contato com o Movimento Sem Teto?

Helena: Então, nesse grupo que era o JOC (Jovens Operários Cristãos), que fazia todas essas coisas lá em Mauá, pouco a pouco a gente foi conhecendo pessoas de outros grupos. A gente foi juntando esse pessoal no sentido de fortalecer o polo de gente que quer falar, fazer luta e que não tá atrelado com a prefeitura e tal e aí nasceu um lugar, um coletivo que era o espaço Che Guevara que juntava toda essa galera em uma espécie de colegiado. Esse espaço tinha relações com um companheiro que era professor de uma Universidade no ABC e era do Movimento Sem Terra. O Movimento Sem Terra tinha uma relação de construção comum com o Movimento Sem Teto que, na época, estava ainda em formação, que era o MTST. Então quando o MTST quis fazer uma ocupação na região do ABC, esse companheiro professor, que era do ABC, foi uma ponte no sentido de conseguir gente que era da região para construir um trabalho de base para essa ocupação que era do MTST. Foi nesse processo que eu comecei a conhecer algumas pessoas (do MTST), comecei a ajudar nos trabalhos de base que eles estavam fazendo, sobretudo numa comunidade lá em São Bernardo, mas ainda sem ser do movimento da ocupação, ajudando nesse trabalho com as famílias de ir nos bairros que tinham muita carência de moradia para conversar com quem topava fazer uma luta por moradia. Depois desse processo (que começou em 2002) de trabalho de base, em 2003 aconteceu a ocupação do MTST no ABC, na cidade de São Bernardo, no terreno que era da Volkswagen, em frente à fábrica da Volkswagen, na Anchieta, onde hoje é um depósito das Casas Bahia. Foi essa a primeira ocupação que eu participei. Nossa! Aí eu me apaixonei pela ocupação de terra.

Nessa primeira ocupação você só ajudou a fazer ou você chegou a morar com eles?

Helena: Eu já morava sozinha e tava trampando em um serviço aqui em São Paulo e fui mandada embora, justo nessa semana. Peguei o seguro-desemprego, aí falei “ok eu vou para a ocupação”, fiquei já na ocupação direto. Essa foi uma ocupação que não durou muito tempo, durou uma coisa assim como vinte e poucos dias. Essa ocupação se chamava Santo Dias que era um nome muito forte, Santo Dias era um operário metalúrgico que não era do ABC, mas que foi assassinado na greve de 79, então a ocupação se chamar Santo Dias cutucava diretamente toda essa estrutura dos trabalhadores, dos servidores, das organizações de trabalhadores como sindicatos.

A ocupação Santo Dias: “nóis chegou com um monte de busão na boca da Anchieta, meteu os ônibus tudo pra dentro: ‘desce, desce, desce correndo dos ônibus’ já começou a fazer barraco. Aquele terreno baldio gigantesco, um terrenão, tinha 270.000 m², chegou a polícia, mas ficou uma situação meio assim todo mundo meio sem entender nada. Ficou o fim de semana inteiro chegando gente, chegando mais gente, fazendo barraco. Foi uma ocupação muito grande juntou, sei lá, cinco mil famílias nesse terreno, então era muito trampo, muito trampo de organização. Essa ocupação era muito forte, era muita gente, muita imprensa, tinha um carro da Globo que ficava na porta da ocupação 24 horas, um bagulho louco. Nesse momento inicial eu ajudava em qualquer coisa, eu tinha, sei lá, uns 18 anos. Eu queria aprender. Então foi assim, eu fiquei por lá, eu não queria perder nada, ocupação é um negócio muito incrível. Só que a ocupação foi despejada”.

O despejo: “Foi um despejo muito violento, teve 36 pessoas feridas. A polícia fechou a Anchieta, era tipo uma operação de guerra. Na madrugada do dia do despejo os caras fecharam a Anchieta, desviaram o fluxo de carros, a gente ficava vendo a noite inteira passar uns caminhões de polícia com cavalaria, eles armaram uma guerra, muitas famílias com medo. Foi uma madrugada que eu nunca vou esquecer, muito tensa, choveu. O despejo estava marcado para acontecer no outro dia às cinco horas da manhã,  muita gente realmente saiu e dá para entender, o povo com criança tudo. O trabalhador não quer o conflito, vai para o conflito porque muitas vezes não tem opção, mas com medo, né? Aquele tanto de polícia, tinha um monte de atirador de elite em cima do prédio da Volks do outro lado da rua, então no outro dia já tava um clima assim tenso, pesado, sabe? E eles chegaram com um monte de caminhão trator, a polícia entrando por todos os buracos, um helicóptero baixou dentro da ocupação. Eram as lonas dos barracos levantando, tipo uma guerra contra o pobre, aí a gente saiu e a gente não tinha pra onde ir. Então a gente foi para a praça da matriz, a igreja da matriz de São Bernardo”.

Fotografia por Ivan Ordoñes, fotógrafo venezuelano,nascido em Maracaibo e falecido em Caracas, onde fez militância e carreira.

Qual foi a relação do governo Lula, tanto o primeiro quanto o segundo, o governo petista de modo geral com o movimento do MTST e do Sem Terra?

Helena: O MTST ainda era um movimento pequeno que existia em alguns poucos estados, mas esses estados não tinham um espaço de articulação e comunicação próprios. Eles mais ou menos se articulavam por meio da sua participação nos espaços de coordenação dos Sem Terra. O Movimento Sem Terra sim tinha uma relação mais consolidada e pública com o PT, a gente sabe, isso é público. Eu não era de partido nenhum, algumas outras pessoas também não eram, não eram tipo contra o PT, mas também não era do PT nem apoiava o PT. Teve uma discussão da esquerda quando teve a eleição do Lula (2002) que era os dois anos de trégua, inclusive teve uma carta dos movimentos sociais fazendo esse acordo de não fazer grandes lutas e grandes enfrentamentos nos dois primeiros anos de governo. A análise que eles tinham é que era um governo em disputa, ou seja, tinha muita influência de esquerda e muita influência de direita, então a gente precisava fazer a influência da esquerda ficar maior que a da direita. A gente (MTST) já não concordava muito com isso, então quando acontece a ocupação, em 2003, o Movimento Sem Terra fica puto com o MTST, porque o Movimento Sem Terra tava nesse processo de não fazer luta nesses dois primeiros anos, segundo eles com a motivação de não dar força para a direita, e a gente não achava isso, a gente (MTST) achava que tinha que fazer luta, se o governo era bom melhor ainda que aí o povo vai ter conquista ‘se tem um governo ruim você não pode fazer luta porque ele vai te matar, se tem uma governo bom você não pode fazer luta porque você vai atrapalhar, ou seja, então você não pode fazer luta nunca?’ e não era luta contra o PT, era luta pelas coisas do povo, era pela moradia, não é uma coisa assim nada revolucionária, simplesmente ter um lugar para morar. Teve esse atrito, esse atrito fez com que o MTST se desligasse do Movimento Sem Terra em 2004. Então essa relação (entre PT e os Movimentos do MTST e do Sem Terra) era diferente com os diferentes movimentos e também diferente no tempo, porque hoje o MTST tem uma relação com o PT que não tinha em 2003 e 2004.

A greve de fome de 2005 foi motivada exatamente pelo quê?

Helena: Porque a gente foi despejado da Volks em 2003. Nós ficamos lascados, foi muita violência, muita repressão, logo em seguida eles despejaram outra ocupação que o MTST tinha em Osasco que era uma ocupação chamada Carlos Lamarca, também foi um despejo extremamente violento. Esse, inclusive, foi ilegal porque não tinha a ordem judicial. A gente teve que reconstruir praticamente todo o movimento.

A reconfiguração do movimento: “Quando houve a ruptura com o Movimento Sem Terra, vários militantes que eram do MTST, mas que tinham vindo do Sem Terra, voltaram para o Movimento Sem Terra e os militantes que ficaram eram muito poucos, eram tipo meia dúzia de pessoas mesmo. A gente conversando, discutindo o que fazer diante de uma situação dessa, que a gente tava praticamente sendo liquidado. Nessa época, a gente escreveu o primeiro programa político do MTST que pensava as ocupações não apenas como uma ferramenta de luta por moradia, mas como uma forma de luta que, assim como as greves, poderia ser pensada para lutar por várias coisas legítimas e que pensava também a nossa situação como povo. A gente começava a pensar “a gente não tem como parar produção, mas organizados territorialmente como sem teto a gente tem como paralisar a circulação de mercadorias” e aí o travamento das ruas, das avenidas foi incorporado também por nóis nesse programa como instrumento de luta. Então começou toda essa configuração da gente pela primeira vez, elaborando o que era organizar um povo que não era nem camponês, nem operário, mas era maioria na cidade, que é o povo favelado precarizado, trabalhador informal. Depois desse processo de pensar um programa próprio nosso de atuação, depois de toda essa elaboração, a gente tinha que testar isso na realidade e o teste foi uma nova ocupação, que a gente fez em 2005 chamada Chico Mendes, na cidade de Taboão da Serra”.

A ocupação Chico Mendes: “Essa ocupação contou com muitas famílias. Inicialmente teve mais de mil famílias, depois sempre diminui um pouco, tem gente que não aguenta. O povo acha que é vagabundo quem faz ocupação, mas ocupação é um trampo, é você viver debaixo da lona, faça chuva ou faça sol, no barro, banheiro coletivo, cozinha coletiva, sem energia elétrica, lutando com todas essas coisas para sobreviver minimamente. O Chico Mende foi ameaçado de despejo muito rápido, a primeira ocupação que a gente tava fazendo depois de um processo onde a gente foi quase liquidado como movimento, depois de a gente ter parado e repensado quem nós somos, o que nós queremos e como a gente vai fazer, então a gente não pode perder essa ocupação porque ela é a primeira semente dessa nova safra de luta que a gente tá plantando, dessa nova organização que a gente tá estruturando. A gente foi recorrendo a todos os tipos possíveis de luta para tentar impedir o despejo, tentar negociar algum tipo de saída com as famílias e no limite, quando não tinha mais saída, a gente falou ‘bom então nóis vai para frente da casa do Lula’”.

A greve de fome: “E nóis foi para porta da casa do Lula, era tipo 21 de dezembro e Lula passa o natal todo ano no apartamento dele em São Bernardo. Então, aí a gente falou ‘bom, vai passar o natal com nóis passando fome lá embaixo, porque nóis não vai sair sem algum tipo de solução pra essa ocupação’ que era a ocupação Chico Mendes. E nós ficamos lá, tinha companheiro desmaiando depois de dois dias sem comer, a gente bem desesperado e o governo também, tudo muito ruim. O ministro da habitação na época era indicação do Severino Cavalcanti, do PP. Não tinha negociação com o cara, o cara não sabia nem qual era o principal programa de moradia do governo, na reunião que nóis foi, nóis falava do 460, porque antes de ter o Minha Casa Minha Vida, tinha um programa do governo que era o 460, ele tinha esse nome porque era tipo uma lei, o decreto 460, que destinava um valor para construção de moradia popular, e a gente falava ‘dá para resolver o problema através desse programa 460’, aí o ministro falou assim ‘mas o que é o 460?’. O ministro não sabia o que era a principal política de habitação do governo! No fim das contas a gente conseguiu uma negociação que oferecia bolsa aluguel para as famílias de maneira imediata, um auxílio aluguel que eles iam repassar o valor para a prefeitura e a prefeitura ia distribuir para as famílias alugarem uma casa, enquanto as moradias definitivas não ficassem prontas, com o compromisso de atender prioritariamente essas famílias na região. Então a gente sai da greve de fome com esse acordo, no dia 24 de dezembro, ao meio dia.”

Você considera que nos primeiros anos do movimento era um movimento muito radical, o MTST, ou é só como foi pintado, principalmente pela mídia?

Helena: Desde onde eu via, naquela época, e continuo vendo até hoje, o povo precisa ter organizações independentes, porque se o movimento não for independente quem vai pressionar o governo? Ou seja, ‘quem governa o Governo?’.  Esse povo que é eleito, era para ser servidor público, né? Servir ao público, mas a gente sabe que não serve, então tem que ter o público para cobrar, então tem que ter movimento que seja independente para poder dirigir o Governo, porque a Constituição fala que o poder emana do povo, se o poder emana do povo é o povo que tem que mandar e o presidente tem que tá a serviço do povo, não o contrário. Naquele momento o movimento funcionava com essa perspectiva, não era uma luta contra o PT, era uma luta do seguinte: ‘independente do governo, nós temos que lutar por aquilo que é necessário para que a gente viva com alguma dignidade’ e na nossa luta quem define os caminhos, as formas de fazer, os momentos e o jeito, é a gente, é o povo, não é ninguém de fora de movimento, não é nenhum partido, nenhum político, é quem faz a ocupação e mora na ocupação é esse povo que tem que decidir o rumo da ocupação. É claro que isso num país como o nosso vira uma coisa muito radical, mas se você olhar, nem era para ser tão radical assim a pessoa querer morar, era para ser uma coisa até mais simples do que isso.

Helena e Ericka Huggins, 72 anos de idade, é ativista e educadora americana ex-membro dirigente do Partido Pantera Negra.

 Anteriormente você havia falado que no início do MTST não havia relações do movimento com o PT mesmo sendo o partido mais conhecido da esquerda, que envolve as lutas sociais. Hoje já existem muitas relações entre eles  (MTST e PT) você percebe a diferença de atuação do movimento após essa relação ficar mais estreita?

Helena: Eu sai do MTST em setembro de 2010, então desde esse período eu não acompanho mais o que é o movimento por dentro, eu acompanho o movimento como uma pessoa que faz luta, que milita também, que é ativista, sabe das notícias, se encontra muitas vezes com o povo nos protestos, nas datas unificadas, e também pela mídia, pela mídia alternativa e tal, então a minha visão – eu quero postular aqui – tem esse limite.  Mas um dos princípios do MTST era de que a gente não faria campanha para ninguém e não teria candidatos, essa era uma discussão que a gente fez de maneira permanente com o povo para dizer ‘olha a gente tá cansado das nossas lutas e as nossas necessidades serem utilizadas para alimentar interesses que não necessariamente são os nossos e que não necessariamente vão resolver nossos problemas’, então cada um vota em quem quiser, mas o movimento – na medida em que ele junta tanta gente tão diferente – não pode escolher um partido, não pode ter um candidato, então essa ideia de que o movimento tinha que ser independente, por exemplo, é uma coisa que eu vejo com bastante mudança de onde estou (de fora do movimento), mas não de dentro como antes porque já não acompanho mais dessa forma.  

O que te levou a sair do movimento (MTST)?

Helena: Na época que eu sai, em 2010, eu acumulei uma série de diferenças em relação a organização interna, a forma como se estruturava a democracia interna, ‘qual é o papel da militância? Deve existir um grupo acima do povo que decide as coisas, ou é o próprio povo que decide essas coisas? Como é que isso funciona? Quem é e quem não é militante? Quem tem o direito de dizer que alguém é ou não é militante? Se tem hierarquia, se uma estrutura de poder que está acima da ocupação, se a estrutura nacional está acima dos estados, se a estrutura estadual está acima da estrutura de ocupação.’ Então, naquele momento, a minha diferença tinha a ver com a forma de organização que o movimento estava começando a assumir e com a qual eu fui começando a desenvolver muitas divergências e aí sai por isso, eu não tinha ainda discordâncias de como se relacionava com as instituições e tal porque até aquele momento ainda não tinha as relações que tem hoje.

Então esse seria um dos motivos pelo quais você acabou criando o Luta Popular?

Helena: Eu saí do MTST no final de 2010 e aí foi muito difícil para mim, porque eu tinha ficado no movimento por sete anos, militando igual uma doida. Num determinado momento eu fui me reconfigurando e aí percebendo ‘beleza, eu não concordo mais com essa questão de como organizar, eu acho que tem que ser de um outro jeito, mas eu continuo acreditando que o povo favelado é fundamental para a luta, para mudar nossa realidade, continuo achando que organizar as pessoas no território é essencial’. Continuava achando as ocupações importantes, continuava acreditando que o povo tem que construir organizações independentes, produzir experiência de poder popular. E assim eu fui conversando com vários companheiros e companheiras que eram amigos da vida, de outras coisas, gente do movimento de cultura que se sente muito desprezado pelos outros movimentos – como se eles fossem só um enfeite da luta e não uma ferramenta potente, também conversei com muita gente de movimento de bairro que eu fui conhecendo, que não fazia ocupação, mas organizava favelado também, os favelados que tinham casa, mas não tinham ônibus, não tinham creche, tinham enchente, e que fazia essa luta para melhorar aqueles bairros. Então eu comecei a conversar com esse pessoal e foi desse jeito que foi nascendo o Luta Popular. É uma iniciativa que eu impulsionei, mas ele na verdade nem tem a minha ideologia, porque esse grupo de pessoas ajudou a desenhar um pouco do que o luta popular vem a ser. Pessoas que são diferentes de mim, que concordam comigo em várias coisas, mas discordam em outras, pessoas maravilhosas, lutadores e lutadoras porretas.

Dentro do movimento do MTST você já tinha entendido a importância de trabalhar organizando com mulheres? Em qual momento você percebeu essa importância?

Helena: “Não. Essa coisa do feminismo foi bem lenta para mim. Primeiro porque eu morava num lugar muito pobre, a primeira identidade nossa era de pobre. Daí a pensar que dentro dessa pobreza existem formas diferentes dela acontecer, quando você é mulher, quando você é negro, negra. Embora sempre tenham existido mulheres fazendo luta, algumas se dizendo feministas, outras não necessariamente se afirmando como feminista, isso não era pra mim ainda uma coisa muito evidente e perceptível. Os primeiros contatos que eu fui ter com o feminismo, já com essa palavra, com essa ideia, foi, sobretudo com mulheres que eram muito diferentes de mim, mulheres da universidade, num momento que a universidade era ainda mais elitizada do que hoje, porque segue sendo muito elitizada, né? Então mulheres de outra classe, de uma outra condição social, outra trajetória, outra cor. Então a questão do feminismo foi aparecendo, se mostrando pouco a pouco em diferentes níveis até o ponto de eu perceber que se você acolhe o feminismo, de maneira consequente e coerente você vai questionar um monte de outras coisas”.

O despertar para o feminismo: “Eu fui atravessando muitas coisas, eu me divorciei do meu primeiro casamento com um militante, atravessei muito do que implicava o machismo nessa relação, do quanto eu calei sobre as coisas, por dizer ‘ah, mas se falar sobre isso vai enfraquecer o movimento’, que é um erro, um erro grave, mas era como eu pensava na época. Incrível, né? Porque o machismo é que enfraquece o movimento e também não falar sobre ele. A preocupação que eu tinha de não enfraquecer o movimento e por isso me calar, essa preocupação, nem passava pela cabeça do companheiro que era machista, que não se colocava nem por um segundo que ser machista enfraquecia o movimento. Então eu fui me dando conta do quanto uma série de coisas, preocupações, responsabilidades, pesos, recaem em cima das mulheres, e só das mulheres, e aí comecei a pensar sobre isso, pensar sobre mim mesma, sobre minha própria história, revisitar coisas que eu vivi e passei a perceber o machismo que na época que eu vivi mas não via, comecei a perceber o significado de várias coisas que aconteceram comigo, que tinham uma relação muito grande com o machismo e que, na época, não tinha ficado nítido para mim, e assim eu comecei pouco a pouco a pensar sobre esse assunto, pensar sobre mim mesma, pensar sobre minha história e também, a partir disso, olhar para a história das outras mulheres de uma forma diferente, perceber também nas outras mulheres uma série de pontos comuns com a minha própria trajetória, com o machismo que eu atravessei”.

Um movimento com base feminista: “As pessoas que têm um papel importante precisam ser feministas, porque faz com que, no movimento, se tenha abertura para isso. No Luta (popular) isso se desenvolveu com mais força, com espaços próprios de discussão para as mulheres que foram me mostrando o quanto isso era necessário para que para as mulheres se sentissem mais fortalecidas e com menos insegurança de participar dos espaços gerais, isso fez com que mais mulheres estivessem nas coordenações dos grupos da ocupação e que mais mulheres falassem nas assembleias e batessem o pé para dar opinião sobre as coisas e essas mulheres das ocupações são grandes feministas, elas não falam essa palavra, mas foram sim. São mulheres que na verdade mantêm e sustentam quase tudo não só sem a ajuda dos homens, mas, muitas vezes, contra a opressão dos homens”.

Ilustração: Rafaela Vasconcelos. Da equipe de comunicação da Revista Amazonas para o aniversário de Helena em 2020, durante a pandemia.

Revista Amazonas: “O feminismo foi sendo um caminho pouco a pouco trilhado por mim, tanto em prática quanto em reflexão até o momento em que eu senti uma grande vontade de me dedicar a uma experiência de organização só com mulheres. E foi com essa ideia que me passou na cabeça a possibilidade de um projeto que era a revista amazonas, que foi a primeira vez que eu me envolvi, estimulei e pensei em uma luta só com mulheres. Eu tive um privilégio de aprender espanhol, eu pensava muito no fato de que essa porta de falar outra língua me permitiu muitas experiências de conhecer histórias de luta de outras mulheres que me ajudaram a pensar os desafios das coisas aqui e que outras companheiras não podiam conhecer porque não sabem falar o idioma, então eu conversei com uma amiga minha e eu falei com a Naza, Nazaré: ‘Nazaré o que você acha se a gente fizer uma revista virtual com textos de mulheres falando de suas lutas em vários lugares diferentes e a gente traduz, do espanhol para o português, do português para o espanhol para permitir que essa experiência seja trocada entre mulheres de lugares diferentes e que as nossas companheiras daqui, que não sabem falar, não fiquem limitadas?’ E aí ela gostou muito da ideia. No início era uma coisa bem simples, só que aí a gente foi conversando com outras mulheres e isso provocou que essa ideia fosse assumida por um grupo de gente de vários países diferentes. A gente começou uma construção de como seria isso, se seria só uma revista ou se seria um movimento, o que a gente faria, quais eram os nossos princípios, um longo processo de pensar juntas o que fazer – o que também foi me aprofundando na reflexão sobre o feminismo e, sobretudo de um feminismo que eu acredito, que não é um feminismo hegemônico feito por mulheres brancas de classe média com acesso a estudo universitário, no caso do Brasil, sobretudo a universidade pública, mas o feminismo pensado desde a maioria das mulheres, a maioria são negras ou indígenas, afro-indígenas, faveladas ou pobres, sem tempo, sem grana, sem condição nenhuma e atravessadas por todo tipo de violência, sobretudo machista, racista e de classe. A revista foi me abrindo mundos diferentes, cada texto que chegava para a gente traduzir, com a experiência de lutas de outras mulheres de outros lugares, me dava coisas para pensar, figuras para ler e aí eu fui estudando, continuei nesse processo. A revista existe, uma revista online que se chama Amazonas, vai fazer dois anos, é um processo muito rico para nós. O reconhecimento que a gente tem é de as coisas existirem e funcionarem, das coisas serem capazes de ajudar umas às outras. A gente só publica mulheres”.

Escola feminista Abya Yala: “Inicialmente era um espaço de estudo, eu também pensava isso: ‘se o movimento das mulheres tem me dado tantas coisas para estudar, aprender, entender sobre o feminismo, isso também não é meu, isso é de todas essas muié que faz isso ser possível. De alguma forma eu tenho de achar como dividir isso, compartilhar e colocar esse privilégio que eu tenho de ler e de estudar a serviço desse grupo de mulheres’. A escola começou como esse espaço de troca, de estudo e de cuidado. Então é um espaço que além do estudo de textos para aprender sobre mulheres que escreveram coisas, de fazer juntas reflexões que têm a ver com dramas que a gente vive, também é lugar de pensar nosso próprio corpo, padrão de estética, desconstruir questões da nossa sexualidade, das travas, de curar um monte de feridas entre nós, da que apanha, da que sempre foi considerada feia, da que sempre foi tratada com racismo, da que sempre foi desprezada. A gente desdobrou a escola também numa assembleia feminista que todo mês se junta para discutir as coisa que têm acontecido no território. A gente faz tudo isso na zona sul, não queremos fazer no centro, sabemos que no centro seria mais fácil pra outras pessoas, mas nóis quer fazer na quebrada, porque quem é da quebrada sempre sofreu com a dificuldade de ter que ir até o centro para fazer alguma coisa. A gente vem fazendo uma série de coisas, intervindo, agora as escolas chama nóis quando tem dificuldade com problema de machismo entre os alunos, chama a gente quando tem dificuldade com casos entre professores, a gente ajuda a fazer formação de professores na nossa região, a gente tem também feito um debate sobre o machismo nos movimentos porque isso tem afastado as mulheres dos espaços coletivos e a discussão que a gente vem fazendo, tem ajudado as mulheres a não desistir de militar”.

 Sendo a Amazonas uma revista que é articulada por mulheres de diversos lugares da América Latina, houve alguma mudança de perspectiva com as atuais revoltas principalmente agora em 2019? Mudou alguma coisa na perspectiva da revista ou não tem nenhuma ligação política?

Helena: A revista é muito política, ao discutir fome, território, agronegócio. Quem tá na linha de frente das lutas são as mulheres, as mulheres pobres, que nem se dizem feministas, as mulheres indígenas, as mulheres negras, as mulheres faveladas, as trabalhadoras precarizadas, terceirizadas, as trabalhadoras domésticas. Cada uma vive num país, então a gente tem mulheres no Equador, na Colômbia, na Bolívia, no Brasil, na Argentina, a gente tem mulheres na Espanha, agora a gente tá abrindo um grupo de mulheres na Itália. Em cada país, a seu modo, procurar entender a situação das mulheres de maneira honesta, levou a que a gente tivesse uma posição muito crítica em relação aos governos, aos governos de direita, fascistas e liberais, sem dúvidas, até o fim, desde o começo e por princípio. E aos governos progressistas também, de outra forma, claro, mas enxergando o quanto eles também foram governos que reproduziram a estrutura de massacre da nossa classe, onde as mulheres são as mais lascadas entre os lascados. Com os levantes isso, na verdade, se potencializou. Então essa perspectiva de ter organizações independentes enraizadas em bases horizontais, sem essa hierarquia da gramática masculina, construída como um projeto independente, que, inclusive, nega essa ideia de desenvolvimento que tem vendido nossos povos e nosso território, seja para os Estados Unidos ou seja para a China, isso é essencial. Talvez a gente já tivesse essas ideias, mas com esses levantes isso se tornou muito forte, muito evidente, para a gente, hoje, é o elemento central, para pensar também como a gente se organiza e se constrói com essa perspectiva.    

Você acha que o capitalismo, de alguma forma, está usando o discurso e a militância dessas mulheres, inclusive se você tiver alguma experiência pessoal pode falar, para comercializar o feminismo?

Helena: A luta das mulheres é muito anterior à palavra feminismo. Então as mulheres já faziam luta, Dandara, Luísa Mahin, Teresa de Benguela, a gente pode falar de tantas mulheres que fizeram lutas sem o nome feminismo estar aí, porque elas entendiam que a luta do seu povo era a sua luta. Pouco a pouco as mulheres foram e vem avançando num movimento de contestar e questionar sua condição de sub-seres humanos no mundo. Inclusive toda essa onda conservadora não conseguiu fazer isso retroceder, é um conflito permanente, assim como a questão racial, tem avançado de maneira considerável e nem esse fascismo tem conseguido fazer eles retrocederem. O movimento avança e como o movimento avança e ele não recua, se ele (capitalismo) não consegue destruir ele vai tentar cooptar e a cooptação acontece, tem muitas mulheres que a partir do feminismo reproduz um discurso racista, por exemplo, mulheres que se dizendo feminista vão tecer elaborações que na realidade tão destruindo a luta do povo negro, do povo indígena, essa é uma forma de cooptação do feminismo. O capitalismo projetou a mulher de sucesso que é a executiva de gravata pisando na goela de um homem deitado no chão, não é o feminismo que queremos, nós não queremos ser a empresária que despreza os homens, porque isso é trocar de lugar com os homens, não queremos trocar de lugar com os homens, nós queremos que ninguém ocupe esse lugar, esse lugar de oprimir alguém, esse lugar de ter sucesso à custa de lascar alguém, esse lugar de ter abundância à custa da miséria de milhões. Nós não queremos cargos de chefia nas grandes empresas, não queremos empresas, não queremos patrão, empregado, mesmo que o patrão seja uma mulher, vestida de rosa, com o nome feminista escrito na testa, é patrão. Feminismo é um projeto de sociedade livre de exploração e de opressão, não apenas para as mulheres, queremos uma sociedade em que ninguém seja oprimido e ninguém seja o opressor, e que ninguém seja explorado e ninguém seja explorador, homem ou mulher, ou não binárie, transgênero, enfim, que toda vida, inclusive a natureza esteja liberta. Isso só tem um jeito de acontecer, é se o feminismo tiver um significado radical que não reproduza por nenhum viés qualquer tipo de estrutura de dominação.

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