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21 abr 2021

Tocando no tabu: machismo e lutas

O debate sobre o machismo, as masculinidades e a violência de gênero é um dos principais tabus masculinos nos diferentes espaços de militância e organização política pelos quais passei no Brasil na última década. A tentativa de desviar o assunto dos conflitos concretos pelos quais as organizações passaram devido a situações de violência de gênero provocam infinitos debates escolásticos sobre temas como feminismo, identitarismo, pós-modernidade e até mesmo filosofia francesa contemporânea. 

Essa situação tabu incômoda geralmente emerge a partir da violência de gênero ocorrida seja dentro da relação cotidiana entre militantes ou entre as pessoas próximas dessa militância que acabam eventualmente os forçando a tomar uma posição diante do ocorrido. Essas situações de violência de genero marcam a história recente tanto dos maiores movimentos sociais e sindicais brasileiros da atualidade quanto de uma miríade de pequenos coletivos e é inequivocamente um dos principais fatores que causou tanto a burocratização, virada à direita, ou mesmo enfraquecimento e até total desintegração de numerosos espaços de luta nas últimas décadas. 

Após o desenrolar dessas situações tabus (de violência de gênero machista)  algumas consequências que decorrem são os expurgos dos membros mais radicais da organização que criticam as consequências da forma como o tema foi tratado, rachas, ou  mesmo a desintegração de espaços devido a perda da relação de confiança entre os seus membros ou entre eles e as pessoas com quem atuavam. Em torno da situação tabu costuma se dar rupturas também nas vidas das mulheres e homens envolvidos, términos de casamentos ou namoros, adoecimento físico ou mental, perda de empregos e diversas outras formas de degradação da vida das pessoas envolvidas se repetem nessas situações.

A quantidade em geral minoritária de mulheres na maioria das organizações políticas da esquerda, e em especial nos seus espaços de direção e formulação, também são um dos evidentes reflexos dessa recusa dos militantes homens em debater, combater ou sequer não praticar as variadas modalidades de violência machista.

Essa situação faz com que o debate sobre o machismo entre nós (nós, no caso, os homens militantes) seja uma espécie de tabu psicanalítico. São acontecimentos ou práticas sobre os quais o debate é proibido mas que geram situações traumáticas compulsivamente reencenadas, de forma que o debate sobre o machismo acaba se polarizando em grupos de cumplicidade e só se desencadeando de forma minimamente politizada em situações de conflito, num círculo infeliz que reforça o tabu sobre as situações traumáticas causadas pelo machismo. 

Outro reflexo desse tabu é o fato de haver entre os homens hoje na esquerda brasileira amplos debates críticos ao feminismo e ao chamado identitarismo, termo usado no Brasil genericamente para criticar o feminismo e o movimento negro sem comprar a treta que é chamar os criticados pelos seus próprios nomes. Ainda assim, é raro ver homens escrevendo sobre as situações concretas causadas pelo machismo, ou sobre como lidar melhor com os conflitos gerados pelo seu próprio machismo, ou sobre o envolvimento com as lutas contra a violência machista, ou feminicida ou mesmo sequer contra a desigualdade de gênero. Em verdade o debate masculino tem antes se caracterizado por uma ignorância ostensiva e uma recusa em sequer encarar de forma sincera ou respeitosa o tema de crítica, nesse sentido é possível ler numerosos artigos, centenas de páginas de homens de esquerda criticando o feminismo contemporâneo sem a menção do nome de sequer uma única organização feminista atual, ou sequer uma autora influente nesse meio. Uma análise mais aprofundada de obras então, isso quase inexiste. Já o debate em torno das situações concretas que provocaram rachas, expurgos, mudanças de política da organização, etc, permanecem quase completamente no campo do tabu apesar de na minha experiência pessoal já ter presenciado algumas dezenas dessas situações.

A radicalização do machismo e a centralidade política da crise da masculinidade hoje

A ascensão de Jair Bolsonaro marca um claro processo de radicalização do machismo em nossa sociedade, simbolizado na própria militância conservadora e patriarcal do presidente, cuja ascensão impactou no aumento dos feminicídios e no desmonte das poucas políticas públicas que existiam voltadas a acolher as mulheres violentadas – resultado das lutas feministas nas últimas décadas no Brasil. A crise econômica e a pandemia afetam mais as mulheres, o desemprego entre as mulheres vive hoje o maior aumento nos últimos trinta anos, se somando a sobrecarga do trabalho doméstico e afetivo, assim como o crescimento da violência doméstica contra mulheres. 

Ao invés de fortalecer as mulheres trabalhadoras nesse momento dificil em que elas sofrem cada vez mais fortes ataques, parte da esquerda responsabiliza o movimento feminista pelo ascenso da política patriarcal de Bolsonaro. Assim, o fortalecimento do machismo é atribuído às próprias mulheres que sofrem com o machismo. Outros dizem que o problema central é a classe, e que portanto, não é a hora de tratar da questão feminina, ignorando que uma das principais formas concretas com que a classe tem sido esmagada tem sido a degradação das mulheres trabalhadoras com todas as suas especificidades e que a recusa em tratar da questão tem sido uma das principais causas de enfraquecimento das nossas organizações.

Por outro lado, é notório que a identidade masculina em crise é o afeto central mobilizado por Bolsonaro na sociedade, de modo que se faz necessário uma crítica à masculinidade heterocispatriarcal ou dominante no Brasil para melhor compreendermos o fenômeno do bolsonarismo.

As mulheres na vanguarda da luta pela vida e a necessidade do debate entre homens sobre feminismo e masculinidade

Nos últimos anos, ao me aproximar de espaços da luta anti carcerária e contra a violência policial racista me deparei com uma desconcertante realidade de gênero. Apesar dos homens serem a grande maioria das pessoas presas e das pessoas executadas pela polícia, nessas lutas a imensa maioria das pessoas presentes, seja como militantes, familiares de vítimas ou apoiadoras são mulheres. Normalmente, a luta é puxada pela mãe da vítima, mas também vemos esposas, tias, irmãs e até avós. Quase invariavelmente mulheres estão à frente do processo.

Em 2019 participei de um encontro da Agenda Nacional pelo Desencarceramento em Fortaleza que, sem exageros, mais de 95% das pessoas presentes eram mulheres, apesar de haver uma distorção pelo fato de boa parte dos homens presentes serem figuras de autoridade (padres, advogados, diretores de ONGs ou representantes de movimentos sociais). Nesse encontro cheguei a participar de várias rodas de conversa onde eu era o único homem na sala. A mesma realidade já ocorreu em reuniões da Rede de Proteção e Resistencia Contra o Genocídio de São Paulo. 

Algumas questões que emergem dessa realidade: o que ocorre com a masculinidade em nossa sociedade para que nos movimentos políticos as principais pessoas a se engajarem na solidariedade aos mortos e presos injustamente sejam as mulheres? Por que os homens se mobilizam tão pouco pela preservação de suas próprias vidas e liberdade? Pois repito, a imensa maioria dos presos ou executados são homens. Não tenho dúvidas que é necessário conseguirmos avançar nesses debates também entre homens para avançar nessa luta.

Outra movimentação que se destaca nesse contexto da pandemia tem sido as redes de solidariedade que se formaram para a obtenção de alimentos nas comunidades, mais um vez vejo uma maioria gritante de mulheres articulando e operacionalizando essas redes, redes por vezes poderosas mas à margem das grandes organizações de esquerda. 

O movimento feminista e das mulheres tem sido um aliado inescapável na luta pela vida, ganhando centralidade nesse momento de avanço da violencia de Estado e da fome.  Assim, precisamos conseguir avançar também entre nós, homens, no debate sobre o nosso próprio machismo e sobre o machismo entre os nossos camaradas. Precisamos debater com seriedade sobre o feminismo e masculinidades, sobre o cuidado com a vida e as estratégias de longo prazo, se quisermos construir práticas que permitam nossa sobrevivência duradoura e para criar uma possibilidade de resistência que permita realmente superarmos a atual situação. 

Por Gabriel Silva – Militante do Quilombo Invisível.

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