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24 abr 2021

As lutas da Brasilândia e o sarau da Brasa.

Esse artigo faz parte do livro Fala Carolinas! Mulheres na luta por vida e dignidade, uma poderosa reunião de entrevistas, ensaios e poemas de mulheres negras, indígenas e periféricas que protagonizam e narram a luta de movimentos por moradia, transporte, cultura, LGBTQI+, contra o cárcere, curandeiras, parteiras, educadoras, e na resistência das comunidades indígenas no Chile.

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Moro no Penteado, uma das 47 vilas do Distrito Brasilândia, Zona Norte de São Paulo. A Brasilândia sempre esteve em mim. Os meus laços com este bairro, começam lá atrás, nas histórias que ouvi, ainda criança, de minha bisavó, das minhas avós, de meu avô, de meu pai, que veio morar por essas bandas no ano de 1949; histórias que alimentaram minha curiosidade e minha vontade de passar adiante o que sei sobre este lugar onde nasci e plantei minhas raízes. Andando pela Brasilândia, hoje, registro seus moradores e suas ruas. Esse povo tem muitas boas histórias pra contar, histórias de suas lutas, de suas dificuldades, de suas tristezas e alegrias. São histórias coletivas, mas se diferenciam em detalhes que surgem a partir da experiência e da vivência de cada um, muitas dessas vivências foram transmitidas de geração a geração por via oral.

O Distrito Brasilândia surgiu com a expansão de um dos bairros mais antigos de São Paulo, a Freguesia do Ó, que foi fundada às margens do rio Tietê por um Bandeirante, Manuel Preto, que escravizou muitos índios da região. A Freguesia foi crescendo em direção à Serra da Cantareira, e nos anos de 1990 foi dividida em Distrito Freguesia e Distrito Brasilândia.

O primeiro registro de compra/venda de terreno na Vila Brasilândia é de janeiro de 1947. Aqui é uma região montanhosa, com muitas pedras, vales, rios. Outrora tinha lagos e muitas nascentes. Hoje os rios são esgotos a céu aberto, os lagos foram aterrados, muitas nascentes secaram.

A ocupação do território começa a partir de um projeto de revitalização do centro da Cidade, nos anos de 1940, com o alargamento das avenidas São João e Prestes Maia. Para tal, demoliram os cortiços ali existentes, que eram ocupados por negros, que foram escravizados ou filhos de escravizados dos Barões do Café. Essas pessoas foram morar na Brasilândia, e foram atraídas pelos preços baixos dos terrenos e a oferta de telhas e tijolos para a construção das casas. Tinha por lá também sítios e chácaras de imigrantes portugueses, italianos, japoneses e espanhóis, depois vieram os comerciantes libaneses e também os nordestinos para trabalhar na construção civil durante o período da ditadura militar. A maioria da população da Brasilândia é de afrodescendentes.

Como toda a periferia, a ocupação se deu de maneira irregular, terrenos foram loteados clandestinamente, surgiram as favelas e várias casas foram construídas em regime de mutirão e também em áreas de risco.

Desde a sua origem, a população da Brasilândia se organizou em associações de moradores para reivindicar melhorias para o bairro. Nos anos 70 e 80, surgiram ali diversos movimentos, contra a carestia, comissões de moradores, de loteamentos clandestinos, a maioria organizado por mulheres, pois os homens saiam cedo para trabalhar. Em especial, as mulheres dos clubes de mães com sua incansável luta por creches, postos de saúde, escolas, hospitais, pronto-socorro, linhas de ônibus, iluminação pública, asfalto de vias públicas, coleta de lixo, desobstrução das ruas para tornar possível a entrega de gás, móveis, etc.

A repressão, no período de ditadura, alcançou essa população, tão sofrida e abandonada pelos governantes. Essas pessoas que se mobilizavam eram vistas como perigosas e subversivas.

Um evento que ficou conhecido mundialmente pelo nome de Pancadaria do Ó, aconteceu durante o governo itinerante de Paulo Maluf, em 21 de junho de 1980, quando moradores da Brasilândia/Freguesia do Ó, se dirigiram à sede da Regional para reivindicar água, asfalto, linhas de ônibus, creches, postos de saúde e Pronto-socorro. Éramos mulheres, crianças e alguns homens. Um grupo de cinquenta homens à paisana saiu das imediações do prédio da regional, nos cercou e nos atacou com soco-inglês, paus e bombas de gás lacrimogêneo. Muitas pessoas ficaram feridas.

Exigimos a apuração dos fatos, conseguimos instalar na Câmara dos Vereadores uma Comissão Especial de Inquérito. Devido à repercussão, conquistamos algumas melhorias para o bairro: creche, posto de saúde, duas linhas de ônibus, asfalto em algumas ruas e o pronto-socorro, que, em homenagem à nossa luta, recebeu o nome de 21 de junho, o dia da pancadaria.

Muitos moradores passaram a atuar nas Comunidades Eclesiais de Base, da igreja católica, que teve um papel importante, a partir de 1968. Os padres cediam os salões das igrejas para reuniões, debates, lazer, eventos culturais, projetos educacionais, creches, clubes de mães, apoiando as áreas que sofriam com a ausência do Estado.

Fiz parte da diretoria de uma entidade, fundada em 1975, durante 16 anos, que atendia crianças em situaçao de vulnerabilidade social da região. Dentro do movimento por creche, unidos com outros grupos da região, fundamos creches e projetos com menores, ocupando 27 salões paroquiais da Brasilândia, por meio de convênio com a prefeitura. E só alguns anos depois, com muita luta, conseguimos as primeiras creches públicas.

Em 1978, recolhemos 1,5 milhão de assinaturas contra a excludente política econômica do governo. Essa organização dos moradores, foi fundamental para a conquista de direitos básicos da população. As mulheres estiveram na frente de todas essas lutas, elas se organizavam nos bairros e os homens nas fábricas. Esses e outros movimentos, como os de moradia, dos negros e dos homossexuais, foram considerados ameaçadores à segurança nacional e foram alvos de repressão e vigilância. Amigos sindicalistas e bancários que participavam de greves, entraram nas listas sujas e não conseguiram mais emprego.

Apoiamos outras lutas, como a Anistia, a volta dos exilados, o fim da tortura, o fim da Ditadura, etc. Estivemos na praça da Sé, em 1975, no Culto ecumênico que reuniu uma multidão em homenagem ao Vladimir Herzog, celebrado na catedral da Sé por Dom Paulo Evaristo, o rabino Henry Sobel e pelo pastor presbiteriano, Jaime Wright. Em 1979, velamos o corpo do operário Santo Dias, morto durante uma manifestação. Em 1980, na PUC, participamos de um encontro da Teologia da Libertação, onde representantes de toda a América Latina denunciaram abusos, repressão, torturas, assassinatos, cometidos por governos militares em seus países. Em 1980, fizemos um protesto pela defesa da Amazônia, na Sé, e contra um projeto do Maluf de mudar a capital de São Paulo para o interior. Em 1981, em frente à catedral, fizemos um ato pelo Dia Nacional Contra a Carestia. Em 1983, estive na celebração litúrgica que recebeu as cinzas de Frei Tito e os restos mortais de Alexandre Vannuchi Leme, encontrado na vala do cemitério Dom Bosco, em Perus. Em 1990, as mulheres da Vila Penteado conseguiram o primeiro hospital público da região, o Hospital Geral Vila Penteado. Em 2015, apoiamos a ocupação dos alunos da escola Martin Egídio Damy, na Brasilândia, participando da programação organizada pelos alunos.

Enfim, a luta continua. Costumo dizer: enfrentamos a fome, as drogas, os desmoronamentos, os alagamentos. Na Brasilândia, como eu disse no início, a maioria da população é de afrodescendentes, hoje nossos problemas aumentaram, além de todos já citados, temos os incêndios nas favelas, as reintegrações de posse por conta da especulação imobiliária. Sofremos com as chacinas, o extermínio dos jovens negros e a violência policial, além do tráfico de drogas.

Resistimos. Hoje, temos um importante trabalho cultural, por meio dos Saraus que atuam nas periferias. Sou do Sarau da Brasa, frequentado por moradores, alunos e professores da região. É um espaço aberto para a manifestação de todo tipo de arte, música, poesia, teatro, exposição fotográfica, grafite, dança, nossos olhos precisam contemplar o belo. Assim, resgatamos nossa identidade e celebramos e compartilhamos a nossa arte.

O QUE SOMOS
Pés que caminham árdua estrada,
carregam cansaço, dor, medo,
e, sem rumo certo, resistem.
Braços que partilham, semeiam
pão, vinho, sonhos e esperanças.
Mãos, asas feridas, arando a terra
despontando o broto,
frutos de um novo tempo.
Vozes, dom da vida, festejam,
cantam campo, cidades
florestas, rios e mares.
Face, curtida
de tantos invernos,
misterioso riso.
Vida que, solidária,
bate às portas como vento,
despertando o amanhecer.
Olhos que brilham de ternura
antes do rolar das lágrimas
e, na escuridão
de tempos sombrios,
somos olhos
que compartilham a luz.

Por Sonia Bischain – Sou escritora e fotógrafa, autora do livro de poemas Rua de trás; dos romances Nem tudo é Silêncio; Vale dos Atalhos; Viandante, labirintos entressonhos; do livro de contos Olhares que devoram sonhos, e coautora do livro de fotografias Cultura daqui, olhares da Brasa. Me preocupo com a preservação da memória das lutas desse povo periférico, lutas que presenciei e participei. Meus livros contam e retratam essas histórias.

4 Comentários

  • José Soares disse:

    Compas, morei na Brasilândia e na V. Penteado nos idos de 1970-90, era metalúrgico e participei, com outros companheiros, de parte dessas lutas. Muito bonita, essa história de vocês. À luta, sempre! Saudações revolucionárias. Viva a luta de vocês, Viva à Vida! Prof. José Soares

  • Marli Pitarello disse:

    Sonia, que texto forte e lindo que bem retrata esse canto da cidade. Estivemos juntas em muitas lutas!Você reviveu minha memória e me fez lembrar de companheiros, afetos e trocas que marcaram e marcam a minha vida. Muito orgulho de você e toda força. Vou divulgar com muito empenho e carinho esse texto. Cortes e carinhoso abraço!

  • Roberto lajolo disse:

    Belo trabalho, belo texto. Revive uma história da qual participei intensamente, com fatos emoções, humanidade.
    Amainada a pandemia espero poder voltar a participar dela, agora como fotografo

  • Catherine O’Sullivan disse:

    I wish I understood the Portuguese language in order to be fully understand Sonia’s writings as they appear so powerful from the little I do understand

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