Essa entrevista faz parte do livro Fala Carolinas! Mulheres na luta por vida e dignidade, uma poderosa reunião de entrevistas, ensaios e poemas de mulheres negras, indígenas e periféricas que protagonizam e narram a luta de movimentos por moradia, transporte, cultura, LGBTQI+, contra o cárcere, curandeiras, parteiras, educadoras, e na resistência das comunidades indígenas no Chile.
Marli de Fátima Aguiar é filha de Luzia Augusta de Jesus e de José Aguiar Filho, nascida no município brasileiro no interior de Minas Gerais em Ibiraci, depois veio para o estado de São Paulo em Franca. Viveu sua infância no meio rural com seus pais, irmãs e irmãos entre plantações de cana-de-açúcar e de café. É militante, negra e feminista participante do Coletivo Carolinas e Firminas que fomenta a escrita de mulheres negras, e do Coletivo Flores de Baobá – Escritoras Negras na Cidade de São Paulo. Integrante da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo e da Marcha Mundial das Mulheres:
“Marchamos pela vida das mulheres negras, indígenas, africanas imigrantes e emigrantes. Marchamos contra o genocídio do povo preto e periférico e dos povos indígenas. Marchamos contra o racismo, o machismo, e a violência contra as mulheres, marchamos por todas nós e pelo Bem Viver.”
Atualmente a Marli trabalha com Cooperativas de catadoras e catadores de materiais recicláveis da cidade de São Paulo como gestora ambiental e também deu início ao projeto pessoal de organizar a história das mulheres e homens catadoras e catadores de materiais recicláveis através de oficinas de escrita e entrevistas de história oral.
Desde muito cedo conheceu a militância. Participou da Juventude Operária Católica (JOC) e da CEBs e traz consigo as referências de lutas e organizações de base dentro dos bairros periféricos. Aos 42 anos, veio ingressar na Universidade Pública para fazer a primeira graduação, foi nossa companheira de sala de aula e, hoje, formada no curso de Letras na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), em Guarulhos, no bairro dos Pimentas. É escritora participante da Literatura Negra Feminina. Em 2016, publicou seu primeiro livro: Tecendo Memórias e Histórias artesanal e independente, o livro resgata a história e a memória dos seus ancestrais. “Contam as histórias de infância, de criancice, de mãe, de pai, de avós, de terras…” São contos escolhidos para presentear seus irmãos e irmãs e amigo(as) da sua grande caminhada. Publicou poemas no Cadernos Negros, volume 41, 2018 e, em 2019, volume 42, Contos, pela Quilombhoje. Em 2019, publicou na coletânea: Inovação Ancestral de Mulheres Negras, Táticas do Cotidiano, Ed.Oralituras, organizadora Bianca Santana. Participa com seus escritos em diversas antologias. A Marli realiza oficinas de escrita destinadas a mulheres negras e periféricas, tendo Carolina Maria de Jesus e Maria Firmina dos Reis — como referências e trazendo Tula Pilar, Conceição Evaristo e outras tantas escritoras negras.
E foi assim que nós a conhecemos…
A produção do livro é uma proposta do coletivo Fala Carolina! com o objetivo de dar voz às mulheres da periferia, bem como, incentivar a criação literária. Aqui temos algumas contribuições de companheiras à oficina de escrita realizada na ocupação Casa Cultural Hip Hop Jaçanã em fevereiro de 2020.
Para aprendermos quem somos nós, não basta somente olhar a nossa imagem refletida no espelho. A prática da escrita para mulheres faz parte de um processo de recontar, reescrever suas histórias, falar de si, de seu corpo, de seus sonhos e desejos. A escrita também é ação, cura, afeto, afago, amor por si mesmas, a cura pelas palavras transformadas em versos, poesia, prosa, resgatando as diversas mulheres e meninas que muitas vezes estão silenciadas dentro de nós.
Olhar para o espelho,
escrever quem somos.
Olhar para o espelho. Pensa o desafio desta proposta. O movimento, apesar de simples, pode revelar muitas coisas.
Imaginar que somos água,
escrever sobre o nosso corpo.
Nos transformamos em um curso de águas doces que fluem em direção a um oceano de palavras.
Um rio onde poucos se banham
Pois é pequeno e de curvas minuciosas
Por onde passa leva tudo
E por algumas vezes sua fluidez é pesada
É calma e quente
Na tempestade pode virar até mar
Um mar furioso, mas tênue
Com compasso, som e textura.
Gabriela
Sou como corredeira brava, transpondo pedras pelas curvas do meu corpo, em essência a água que se molda às margens férteis, corre para desaguar, corre para adoçar o mar.
Deborah
Sempre lutei com o que via diante de mim, a imagem refletida não era tão parecida com o que tratavam como bonito e me perdi buscando uma falsa perfeição. Até entender que meu corpo era mais que aparência, mais que um objeto à venda na vitrine, buscando aceitação de quem passava. Olhei para dentro e entendi que meu corpo é minha casa, e que não preciso me encaixar em nada além do que já sou. Entendi que a natureza me fez exatamente como devo ser, e por mais difícil que seja, a cada dia descubro mais de mim.
Lolly
Descobri há pouco tempo o valor e o significado de me proteger. Isso me ocorreu porque sofri, chorei, aconteceu o pior, fui violentada no meu coração. Onde é abrigada a minha mente e diante do caos e da tristeza juntei minhas forças e busquei o perdão, quase impossível, mas fortaleci minha carne e transformei meu espírito. Minhas curvas mudaram e hoje são a minha morada em paz.
Ana Carolina Elizio
Um passo à frente e já estamos em outro lugar
O rio em mim tem pontos com muitas marcas
Ele não me deixa voltar
Segue, segue com a força da vida
Como rio, às vezes meu corpo é cheio de líquidos
e as vezes de tudo se esvazia.
Ivete Lourenço
Como é difícil me ver
Mesmo diante do espelho
Como é difícil não me criticar
Ao invés de refletir
Teimo em julgar
Olheiras e espinhas
Me distraem de mim
Quanto mais distraída
Mais ponto para as
olheiras e espinhas
Ou seja, mais pontos
Para o cansaço e a ira
Calma, Júlia!
Basta refletir
E verá.
Júlia Aguiar
Repudiei as cicatrizes que carregam o tamanho do meu corpo
Silenciei a voz que gritava para me soltar e dançar
Até que, finalmente, olhei para dentro e calei o mundo
Catarina
Fiquei imaginando como seria bom em um rio me transformar.
Correriam minhas águas sem nenhuma preocupação
Faria uma linda viagem e até os obstáculos aprenderia a contornar.
Minhas margens seriam lindas e com flores a enfeitar.
Mas de repente um vento forte me fez acordar.
Entre sonhos e realidades desse momento sempre vou lembrar,
como seria bom em um rio me transformar.
Sueli Leme
As nossas ações correm, como rios, da zona sul à zona norte, e nossas ideias estão se transformando em grandes correntes de resistência que ultrapassam as fronteiras.
Nara
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