
Essa entrevista faz parte do livro Fala Carolinas! Mulheres na luta por vida e dignidade, uma poderosa reunião de entrevistas, ensaios e poemas de mulheres negras, indígenas e periféricas que protagonizam e narram a luta de movimentos por moradia, transporte, cultura, LGBTQI+, contra o cárcere, curandeiras, parteiras, educadoras, e na resistência das comunidades indígenas no Chile.
Cala Calota é uma das moradoras do Centro Ecopedagógico (Aucca) que fica na região metropolitana do Chile. Aucca busca promover o intercâmbio de conhecimentos que permita a autogestão da comunidade em harmonia com o meio ambiente. São pessoas queridas que compartilham trocas de conhecimento para a cultura de resistência do capitalismo através da economia solidária e outras técnicas que nos permitem aprender a sustentar a vida. Cala também é do coletivo Vaginas Silvestres, é o nome do time de futebol feminista que se autodenomina e se organiza há 6 anos para construir espaços amorosos e para jogar um futebol feminista antipatriarcal, livre de comportamentos violentos padronizados nesta sociedade. Esta entrevista foi realizada pela Nathália Ract e traduzida pelo João Vitor Santos Oliveira, em março de 2019.

Qual é o seu nome?
Cala: Eu gosto que me chamem de Cala, tenho 32 anos e vivo em AUCCA, Centro
Para você qual é a importância da Primeira Linha na luta que tem se desenvolvido aqui no Chile?
Cala: A primeira linha é na verdade super importante porque está resguardando os direitos de outras pessoas que estão no protesto. Porque há pessoas que estão dispostas a revidar com seu corpo o enfrentamento, para que aconteçam outras coisas dentro do que é parte do protesto, portanto é como a margem do protesto que permite que em outros espaços possam ocorrer outras manifestações culturais e de contrapropaganda. Há pessoas como avôs, avós, crianças, que querem se manifestar de toda maneira sem ter enfrentamento direto com a polícia. Então, a primeira linha tem um papel dentro do protesto.

Qual é a importância da mulher na luta? Mas também na primeira linha?
Cala: Acredito que nós sempre fomos primeira linha na história, então temos muito corpo para colocar contra o sistema e no movimento em que estamos vivendo, sempre o fizemos, enfrentando com nosso corpo. Nós, como mulheres, e também corpos dissidentes da heteronormatividade, por muito tempo estamos existindo em estado de crise e emergência. Desde sempre tivemos que saber um pouco como nos defender. Dentro da primeira linha é gerado um vínculo super necessário, que é de apoio e proteção mútua nos protestos. Da mesma forma, as mulheres são culturalmente caracterizadas pelo maternal, o cuidado, a proteção; acredito que, de alguma forma, as duas coisas estão combinadas. É uma característica da primeira linha ser um limite, ela não deixa a polícia passar, cuida da sua gente, e isso é um pouco do que somos nós, as mulheres, o que sempre fomos, enfrentando o sistema e cuidando de nós.

Como tem caminhado a luta das mulheres nos últimos anos aqui no Chile? O que aconteceu e quando começou essa força atual que as mulheres de todas as idades principalmente as jovens têm com toda a revolta social?
Cala: Eu acho que é algo que vem trabalhando há muuuito tempo. É importante reconhecer o que aconteceu anos atrás, que houve diferentes ondas e expressões do feminismo e/ou da luta das mulheres e dos corpos dissidentes que permearam o sistema capitalista patriarcal. Várias lutas têm permitido que ela se desagregue e se questione, e isso tem acontecido a partir de cenários diferentes, de coletivos autoconvocados, da academia, das mesmas práticas, e talvez não existam práticas indígenas do feminismo, porém, existem práticas que no contexto urbano e rural combinam formas de defesa do território, defendendo-se também com o corpo, que é o nosso primeiro território de luta, e para nos defendermos dos muitos tipos de violência que existem, que vão além da violência explícita que se vê.
Violência simbólica
Há uma violência simbólica que é respirada, mas que não é bem compreendida até que você se abra para olhar. Acredito que o desenvolvimento das lutas antipatriarcais foi amadurecendo aos poucos, e por sua vez, passou por diferentes fases. Faz alguns anos, as mulheres não estavam tão unidas e convencidas de que podíamos realmente levantar o movimento feminista, transfeminista, incluindo as dissidências, não só as mulheres, se não também outras corporalidades que se viram sempre enfrentando o sistema. Hoje existe a coragem de querer fazer a diferença e estar menos sujeito à moralidade social. “O Chile despertou” e mulheres e dissidentes também despertaram contra todos os tipos de violência que devemos começar a nomear para perceber que existem. Enquanto existem e não se nomeia parece que não existem, então nomear tipos de violência como ginecológica, obstétrica, violência doméstica, violência sexual, violência simbólica, e o assédio na rua e etc., para nos livrarmos dessas dores históricas.
Outra forma de luta tem sido “as funas” conhecido como os escrachos, acho que estamos em um momento de feminismo em que queremos nos sentir seguras, saber que somos rebanhos, somos muitas, cada vez mais. E isso faz com que o outro lado dos homens que são muito machistas se defendam mais. Então está acontecendo uma polarização em que ou você é feminista ou é machista, como então ressoa muito na (in)consciência dos homens, que não querem sair do patriarcado, há então um ato de se defender e escrever um novo machismo… Isso está acontecendo. Há um feminismo bem forte, mas também há um machismo que está se posicionando e não quer que as mulheres se libertem desta cadeia opressora, que veio sistematicamente através de toda a história e segue arrastando. Acredito que é um momento super bonito, porque estamos olhando as mulheres e estamos nos encontrando, e as dissidências também, e vendo que temos uma história em comum sobre a qual temos que fazer frente todos os dias e em todos os momentos, de como se veste para sair na rua, como se apresenta em um espaço público, tudo o que estava escondido e olhando para todos os tipos de violência. Isso acredito que é algo do momento atual.

O que é o coletivo Vaginas Silvestres e quem o compõe?
Cala: Somos um grupo de “mulheres” anti patriarcais, potenciais dissidentes da heteronorma, lésbicas, todas amigas, que em 2015, no contexto de um campeonato de futebol infantil em solidariedade com um parceiro então preso pelo Estado chileno, hoje libertado. Tudo começou com jogo de futebol para diversão, sem competir mais do que o próprio jogo. Continuamos a nos reunir para jogar todas as semanas, convidando “mulheres” por meio das nossas redes e, à medida que jogávamos, aos poucos aprendemos a mexer, a colocar o corpo, a desenvolver técnicas, a conhecer-nos e sobretudo a partilhar sem competir. Jogar sem querer se machucar, tentando tornar visível a violência que cada um carrega dentro de si para transformá-la em energia coletiva. Em um ritmo muito orgânico, também aprendemos a nos organizar em torno de temas de afinidade de grupo. Passamos a participar de mais espaços, palestras, encontros de “pichangueros” de jogadores e assim conseguimos realizar um campeonato de futebol feminista com o qual financiamos nossas primeiras camisetas. Participamos, há quase um ano, do quarto festival latino-americano, multinacional e transfeminista de futebol, em Rosário, na Argentina. Onde pudemos encontrar outras pessoas que estão vivendo quase as mesmas experiências, dúvidas e lutas. Desde a convulsão social e a pandemia, nossos momentos têm sido muito irregulares, mas logo nos encontramos, jogamos e nos organizamos de novo!
Você pode falar sua opinião sobre a ginecologia natural ?
Cala: Sobre a ginecologia natural, e muito pela minha experiência, posso dizer que as pesquisas e publicações de Pabla Pérez San Martín têm sido uma grande contribuição para a recuperação de nossa saúde sexual como mulheres. Em seu manual introdutório à ginecologia natural, que teve várias publicações, ela progressivamente mostrou diferentes saberes e práticas que as mulheres praticavam há muito tempo para sua autonomia e cuidado. Depois disso, nos anos de 2010-2011, fomos desenvolvendo uma belíssima cena do corpo feminino aprendendo umas com as outras, compartilhando métodos de contracepção natural, oficinas de auto-exame com espéculo, oficinas práticas de confecção de absorventes higiênicos de pano, palestras sobre amor livre, sobre violência nos relacionamentos, etc. Nos últimos anos, tem havido um aumento significativo do número de mulheres que se organizam em torno de suas liberdades ginecológicas, e também uma amplitude de reflexões às quais nós convocamos muito por querer construir mundos diferentes, onde se encaixam as liberdades de todos nós que fomos tornados invisíveis e oprimidos pela indústria da droga e pela moral patriarcal e capitalista da saúde.

O que é a “Ruta de la luna”?
Cala: “Ruta de la luna” é uma cooperativa natural de saúde e higiene, formada por um grupo de pessoas que buscam, desde 2014, resgatar o uso ancestral / tradicional das ervas medicinais através do plantio, cuidado e colheita de plantas medicinais, a realização de produtos, oficinas de capacitação em fito preparações e encontros culturais. A distribuição do nosso trabalho é feita de forma direta, buscando promover cadeias curtas de comercialização e comércio justo, e ao mesmo tempo ser uma contribuição para a autonomia e independência de nossos corpos contra a lógica capitalista de observação da saúde e do corpo.
Como é o custo de vida aqui no Chile?
Cala: O custo de vida no Chile é muito alto para um ganho de não sei 400 ou 500 mil pesos [1], há muita carência na habitação de ter a casa própria, ter sua casa. Pagar aluguel que às vezes é como metade do seu salário, e depois tem que pagar um valor entre 30 mil ou 50 mil pesos [2] em transporte, e assim vamos somando e tirando aquilo que fica para você. Quanto à comida, podemos encontrar feiras e mercados espontâneos, feiras livres existem em todos os bairros do Chile. Então essa cultura de comer assim não é acessível da mesma maneira em todos os bairros, porque o custo de vida é alto, não sobra para poupar e pensar em coisas como realmente comprar sua casa, seu terreno ou investir em educação. A educação não é grátis, ou tem uma bolsa ou está pagando crédito, ou seja, termina pagando 5 ou 6 vezes o valor do curso que está estudando. Há um endividamento que está sustentando esse alto custo de vida, o custo de vida não se paga com uma pessoa que ganha esse valor por meio do salário.
Há outras pessoas que vivem de outra maneira como nós, e criamos um outro tipo de economia, fazemos auto troque, produzimos, fazemos intercâmbio, e também vivemos de maneira mais escassa, não queremos pagar aluguel. Estamos construindo outras alternativas frente a esta economia que é voraz, e não te deixa viver, nós decidimos viver de maneira mais escassa, mas facilitada, mas humilde, não com tantos lucros. Ainda assim, alguns de nós que vivem assim estão da mesma maneira muito endividados com o Estado e com os bancos, não é muito rentável trabalhar para o sistema e viver para o sistema. Se você sai disso pode conseguir muitas coisas, ou seja, vai se surpreender com a criatividade de sua economia, com o que pode fazer fora das margens do sistema. O custo de vida é alto e também é alto o custo de sair do sistema, mas depois se encontra com outras caras de outras economia, de outras pessoas, e isso acredito que é como uma alternativa real para o que está acontecendo. Já não podemos sustentar este sistema assim dessa maneira que está nos matando.

Todas as pessoas no Chile têm o direito de estudar? Como funciona o exame de ingresso nas universidades?
Cala: A prova de seleção universitária é uma prova que todos os estudantes que querem ingressar na universidade pública têm que prestar. Você pode não fazer a prova e estudar uma carreira técnica, em um instituto ou em algumas universidades, ou seja, pode optar por não fazer esta prova e escolher uma carreira para estudar. Mas em poucos lugares, a maioria exige que preste a prova de seleção universitária, que aponta basicamente para conhecimentos elementares de linguagem, matemática, história e algumas ciências exatas. Então é como ter que preparar-se durante 4 anos, e como a educação não é a mesma para todos você não vai em igualdade de condições para prestar uma prova que aponta para todos da mesma maneira. Então há estudantes que para além de ter esses 4 anos de educação prévia, fazem um pré universitário, que é como um estudo específico para prestar essa prova. Então pagam à parte do que já pagavam na educação prévia do primeiro ao quarto ano médio, pagam à parte um curso pré-universitário que te prepara para essa prova, e assim obtém mais pontuação.
Então, se não pode pagar um curso pré-universitário, se faz a prova com os conhecimentos que te deram na escola, em seu colégio, e nem todas as escolas têm educação com a mesma qualidade. Então todos nós enfrentamos uma grande desigualdade ao prestar a prova. De fato, há um mapa que está circulando na internet, que mostra quais são os bairros de Santiago, da região metropolitana, que tem melhores pontuações nessa prova e são quase todos ricos, são os playboys. Assim você observa como os bairros periféricos e pobres da região metropolitana, têm um nível de pontuação muito menor do que se necessita para entrar em uma universidade para estudar. É muito injusto, e para além disso tem que pagar, não é grátis, é um negócio, está muito mal por todas as partes.
Finalmente, também não é uma prova que está medindo sua capacidade para estudar uma carreira, mas sim está pedindo os mesmos conhecimentos para todos, ou seja, não é muito específico. Se é da área das ciências sociais ou se é da área das ciências exatas, não importa, tem um foco muito cego do que é a educação no Chile. É uma educação muito de mercado e para a competência, não está medindo os valores do desenvolvimento humano, mas sim de conhecimentos que não são tão necessários para a vida. No fundo te enchem de matérias, estudando, estudando, e depois que presta a prova se esquece de tudo, porque estava fazendo muita memória de coisas que não necessita para a vida. Isso acontece com uma prova segregadora, injusta, desigual, é um negócio, simplesmente um negócio.

Quais são suas perspectivas para a luta e você pode deixar uma mensagem para o povo e as mulheres que estão se organizando no Brasil?
Cala: Hoje, acredito que a perspectiva é não perder de foco, a origem de tudo isso da sociedade patriarcal em que vivemos. A origem é o mal, maligno, é a origem de todas as formas que estamos pensando, vivendo e projetando no mundo. Então queremos ter uma sociedade em que não seja importante de onde vem, qual é o seu gênero, qual é sua raça, queremos viver em uma sociedade onde tenhamos as mesmas oportunidades, todas as pessoas. É isso, não perder o foco de que sua luta é a luta de todos os seus companheiros e companheiras que estão com você sofrendo alguma desigualdade. Acredito que o ponto é sair desta margem de desigualdade, e assim nos empoderarmos a tomar territórios com organização, e nos olharmos. Acredito que é super importante o contato físico, humano, afetivo, recuperar o carinho entre as pessoas e saber que somos iguais, apesar das nossas diferenças. Conjugar neste momento todas as possibilidades que temos de projetar organização.
Acredito que é muito importante valorizar o que somos cada um, porque já observamos este movimento. Há gente que é muito profissional, tem gente que é ilustradora, tem gente que sabe medicina, tem gente que é da área da pedagogia, tem gente que é de muitas áreas que já estão profissionalizadas, ou gente que está se reconhecendo em um ofício e uma técnica. Então diversos saberes e uma sabedoria que se porta como uma pessoa individual, e juntá-la com as demais e fazer comunidade, desde o que você pode dar, de o que posso dar, e assim gerar algo amoroso em que todos possamos nos sentir iguais em liberdade. Enquanto haja dominação, enquanto haja opressão para as mulheres, acredito que nenhuma sociedade será justa.
Acredito que as mulheres e as dissidências também necessitamos dizer que despertamos, que não queremos mais violência, e que a violência do sistema patriarcal é uma violência generalizada, econômica, é política, é moral, é física, é religiosa, ou seja, o sistema patriarcal é portador de todos os grandes mal-estares da nossa cultura e do nosso sentir. É também uma doença, e estamos nos adoecendo porque o sistema nos está adoecendo, não é natural, nós estamos morrendo, hoje em dia. O sistema nos chupa a vida e você está se entregando e no final, fica com as sobras do que não serve ao sistema, o que também está acontecendo um pouco com o sistema de pensão. Como retribuímos os idosos? Que morram! Então há uma política de morte do capital, que te usa quando você serve e depois de novo te despeja.
Não se pode perder o foco disso, de que estamos vivendo na mostra máxima de o que é o sistema patriarcal, econômico e político. É aí aonde temos que ir, porque estamos adoecendo, ou seja, não está se ocultando, o sistema patriarcal está se mostrando por completo. Cada vez que ele se mostra e nós sabemos aonde temos que ir, buscar um lugar de luta e resistência e organização.

6 Comentários
Me pareció muy interesante muy bueno. Felicitaciones Cala Calota
Cala fue la primera amiga que me hice de aucca,fue ahí donde la conocí, una mujer que no descrimina, empática y abierta ayudar al que lo necesite,la admiro y quiero por su entrega y lucha , por su resistencia y sabiduría , por su calor y compasión. Solo puedo avalar a esta mujer guerrera un ejemplo a seguir.
Aucca a sido mi primera inspiración para tomar fuerza y empoderamiento hacia una vida sustentable y sostenida. No es fácil salir del sistema, sin embargo es un proceso totalmente posible. Estamos desaprendiendo lo aprendido y con mucha más consciencia haciendo una mejor vida para mí, mis niñes y la comunidad.
Muy linda entrevista 🖤
Fuerza a las mujeres en resistencia de toda Latinoamérica. Un abrazo fraterno desde Chile. Cala es un tremendo referente para muchxs
Que buena entrevista, que siga proliferando esa fuerza de vida,que Cala Calota tan bien expone en su que hacer.Felicitaciones!!
Eres Grande, Bella mujer!!’
Felicitaciones y abrazos
Muy buena entrevista, dialogo.
Gracias por tremenda inspiracion