II. Uma problema de gênese, estrutura e tendência
Na primeira parte desse texto, afirmamos que há uma não-dito pressuposto na teorização e criação de formas de organização centradas em torno da classe trabalhadora ou do proletariado como o Protagonista Universal da História, cuja essência é sua posição no interior do processo de produção como força de trabalho despossuída dos seus meios de produção. Dissemos que tais teorias e formas de organização política, em nome da unidade e de uma emancipação universal, ao invés de ser o negativo da identidade, visa constituir (subjetivamente e objetivamente) o máximo de integração identitária para a construção de uma consciência política universal. E ainda insistimos que essa identidade e consciência universal, indiferente ao conteúdo, na verdade sempre se concretiza num conteúdo, sempre tem sua figura concreta (trabalhador, homem, branco, habitante da cidade, falante da língua oficial etc). Isso porque o vazio do sujeito universal tem menos a pretensão de impor uma prescrição do que criar diferenciações ou figuras da dissemelhança em relação a um padrão ou norma objetivamente social. A problema é, assim, triplo: do ponto de vista da constituição histórica do proletariado, da sua reprodução estrutural e do seu desenvolvimento histórico. E o comum entre essas três dimensões do problema é pressupor que as categorias estruturantes das relações sociais na modernidade capitalista não são internamente racializadas e determinadas pelas relações de gênero. Gênero e raça são, nesse sentido, não-ditos estruturantes das categorias aparentemente universais do capitalismo: Estado, Lei, Trabalho, Dinheiro, Mercadoria etc.
a) Genealogia
Um primeiro aspecto do problema é aquele em relação ao próprio processo histórico de constituição do proletariado. É preciso aqui considerar duas coisas: 1) a universalidade do trabalho é histórica e singular, ou seja, sua universalidade não é reside no fato de ser essência da humanidade, mas resultado de uma prática social historicamente específica que estruturou a sociedade em torno da proletarização; 2) que enquanto prática social específica, a proletarização implica sempre a produção do avesso da universalidade do trabalho, aquilo que estaria fora da “humanidade em geral” do trabalho.
a.1. – A Singularidade Histórica do Trabalho
No que diz respeito ao primeiro ponto, é preciso dizer, então, que o proletariado, como sujeito que não tem nada além de sua própria força de trabalho, puro corpo biológico “sem mundo e sem terra”, não é um dado trans-histórico. E é preciso ir às últimas consequências dessa afirmação: o trabalho como realização de uma pura força fisiológica em potencial, indiferente aos seus modos de realização concreta (produzir pão, roupa ou armas militares), não é uma condição humana universal. Quer dizer, é a ontologização do trabalho que está na base, ao nosso ver, da ideia de que haveria um sujeito histórico universal e que sua universalidade seria garantida materialmente pela condição essencial e distintiva do ser humano em relação aos demais seres da natureza, que é o fato do ser humano ser um animal que trabalha porque racional e vice-versa. É por isso que a própria história e sua relação com a emancipação é entendida como realização de um sujeito universal, um reencontro do sujeito consigo mesmo, impedido de se realizar enquanto tal – ao menos na sua versão “materialista” – pela alienação do trabalho e pela apropriação de seu produto pela propriedade privada. A alienação e exploração aparecem, assim, como condições externas ao trabalho e não como constitutiva dele enquanto forma singular de dominação e relação social.
O que essa visão esconde é o fato de ser apenas na modernidade e com a colonização que se passou a poder falar historicamente de trabalho em geral bem como de riqueza em geral encarnada no dinheiro. E que essa abstração da diversidade concreta, reduzindo-a a algo em comum, longe de ser um empreendimento da consciência rumo à verdade do mundo, é uma prática social que reduz efetivamente atividades muito distintas como os rituais, a coleta, o cultivo, a caça, as relações de aliança e de filiação, convertendo tais atividades e as relações sociais às quais elas pertencem em relações abstratas do tipo econômico, na qual tudo que importa é a natureza reduzida à puro meio de produção como objeto do trabalho a ser incrementado com mais trabalho.
Há dois aspectos do trabalho que indicam seu caráter social específico: 1) o fato de o trabalho se opor às esferas do não trabalho: tempo “livre”, ritos, família, desemprego etc. Essa oposição entre esfera do trabalho e do não trabalho só faz sentido na modernidade e é só por essa oposição ou separação que o trabalho se impõem como produção social de riqueza universal. 2) o fato de o trabalho ser medido por um tempo abstrato, o do ponteiro do relógio, que é um tempo social. O tempo social coage as pessoas e conduz a sociedade a uma compulsão de desenvolvimento tecnológicos para aumento da produtividade social. O trabalho que vale socialmente é só aquele que cumpre com as exigências de produtividade: se o tempo socialmente necessário para se produzir x pães são 4 horas, mas o padeiro gasta 6 horas para produzir as mesmas x quantidades de pães, o que vai valer é o tempo de 4 horas. É como se as 2 horas realizadas não existissem para determinar o valor dos pães como mercadorias, o quanto de trabalho foi realizado. Ou seja, não é qualquer dispêndio fisiológico de nervo, músculo e cérebro que vale como trabalho. Se assim fosse, o próprio fato de respirarmos seria considerado trabalho. Ou dito de outra maneira: não é o dispêndio fisiológico que põe ou realiza o trabalho, mas é o trabalho, enquanto forma de atividade capitalista, que faz com que o puro fisiológico tenha validade social enquanto trabalho.
Portanto, se a sociedade é reduzida a um mundo do trabalho e se tudo que se produz tem em comum ser produto do trabalho, o que permite inclusive o intercâmbio entre as mercadorias, isso não decorre do fato de o trabalho ser uma condição humana. Ao contrário, trata-se de um modo de vida historicamente específico, fundado num processo prático de redução da humanidade à pura condição fisiológica. A condição dessa redução é o desenraizamento dos povos e de conversão da terra e de tudo que existe nela em puro “meio de produção” enquanto “trabalho ojetivado”, coisa de “valor” e que pode ser trocada por dinheiro. Em resumo: a transformação do mundo em mercadoria. Pensemos aqui, como contraponto, nas sociedades ameríndias em que o manejo de sementes, do cultivo da terra, da caça, da coleta etc. não se distinguem, na qualidade de “base material/econômica” ou “infra estrutura”, de relações sociais que são do tipo de aliança-filiação, que envolve uma outra cosmovisão e uma outra natureza. Além disso, não há distinção entre produção-reprodução, trabalho e não-trabalho. Não faria sentido algum falar para um Yanomami – e não porque os povos Yanomami desconhecem o fetiche da mercadoria, pelo contrário[1] – que a natureza (a terra, os minérios, as árvores, os rios, os animais etc.) povoada pelos espíritos xapiris é puro meio de produção, input do seu processo de trabalho como forma de se relacionar com a natureza; que tudo que eles produzem é “produto do trabalho” e que, portanto, as diversas atividades equivalem entre si, assim como aquilo que elas produzem; sendo, por fim, o trabalho que fundaria sua vida coletiva. Tudo muda, é a própria maneira de se fazer sociedade que, dada sua singularidade, não pode ser explicada a partir das formas de composição entre, de um lado, força de trabalho humana em geral e, de outro, meios de produção, a não ser retrospectivamente sob as lentes do capitalismo.

a.2. O avesso da humanidade em geral do trabalho: proletarização e produção racial e sexual dos corpos
Se a universalidade do trabalho não é dada, mas fruto de uma prática social de abstração com um dinamismo espaço-temporal delimitado, essa prática produz sempre um resto. Assim, a Humanidade em Geral do trabalho tem sempre seu excedente, sua humanidade sobrante: a própria definição lógico-identitária da Humanidade ou a busca por determinar um critério para a identidade humana admite o não humano do humano. Ora, a produção desse excedente da humanidade é indissociável da raça e do gênero como leis sociais. Ou seja, a produção do proletariado como pura força de trabalho é indissociável da produção racial e sexual do corpo, que ao mesmo tempo funda a humanidade do trabalho, suas figuras da dissemelhança e as condições de sua reprodução. Se a força de trabalho se transforma na essência do indivíduo ou da humanidade, é só com a realização dessa força de trabalho que, por conseguinte, a humanidade se realiza. Sendo o trabalho o princípio da humanidade, a sua não realização implica sempre uma “humanidade em suspenso”.
Assim, o processo da proletarização, isto é, da conversão dos corpos em pura substância física produtora de mercadorias e de dinheiro é, simultaneamente, um processo de minoração, que se desenvolve num nível mundial a partir de um grande processo diaspórico de desenraizamento geográfico e cultural, a partir do qual o capitalismo opera, por uma despovoamento, uma redistribuição global dos povos, produzindo territorializações diferenciadas e hierarquizadas, se servindo, inclusive, das formas de classificação oriundas da história natural.
Esse desenraizamento não se fez, entretanto, independente da efetivação de guerras civis, que são condições para que a redução das populações à pura condição biológica se efetive. Assim, a guerra de classes pela qual o trabalho produtor de mercadorias foi imposto e generalizado via expropriação violenta das terras e dos meios de produção foi, ao mesmo tempo, acompanhada da guerra das raças, da guerra contra as mulheres e da guerra de subjetividades. Guerras civis que se expressam nos cercamentos das terras, na colonização, no tráfico transatlântico, na instituição da escravidão nas plantations e na caça às bruxas. Nenhuma dessas instituições e práticas fundamentais ao processo de proletarização podem ser concebidas sem raça e gênero. Como vem mostrando Lazzarato e Alliez, a guerra é indissociável do capital, ela é a maneira pela qual as relações sociais econômicas se impõem e se reproduzem. Mas essa guerra, que o capital traz na barriga e que tende ao ilimitado tanto quanto sua acumulação monetária, deve ser entendida no plural. São guerras que se desdobram em várias frentes: de raça, gênero, subjetividade etc. A guerra civil pela qual a proletarização foi e é imposta, assim, é de partida uma guerra que se realiza produzindo cesuras ou, se quiser, “minorações” no seio do proletariado. Essas cesuras, que são constitutivas “de dentro” do proletariado, justificam as relações bélicas do tipo “amigo-inimigo” pelas quais o capital e o Estado reordenam violentamente os territórios existenciais, reduz os povos à pura condição biológica, classificando as populações e as distribuindo, na forma de um processo migratório global, na superfície do mundo. É a partir dessas fissuras produzidas por uma guerra plural, que também se realiza a separação entre esfera de produção e reprodução. Além disso, essas guerras não poderiam ser efetivadas sem produzir suas subjetivações. Como argumentam ainda Lazaratto e Alliez, as guerras de subjetividade não são um mero suplemento do capital, mas “a especificidade a mais objetiva das guerras” do capital: contra as mulheres, contra os loucos, contra as pessoas dissidentes de gênero, trabalhadores, populações de cor etc (Lazaratto e Alliez, Guerras e Capital). Assim, entre as bases sociais e históricas da ciência moderna está a guerra, a partir da qual se torna possível ver o nexo das ciências com a colonização, isto é, do fato da ciência se formar historicamente na condição de ciência colonial: história natural, economia-política, antropologia etc. Mesmo a religião com sua inquisição desempenhou aí um papel ativo no estabelecimento do terreno no qual a ciência poderia emergir: Thomas Hobbes, em nome da razão e da ciência, não deixou de apoiar a caça às bruxas, ainda que diga não acreditar em magia.
É que as guerras do capital não se reduzem a derrotar o adversário, mas visam também uma conversão da subjetividade, das condutas, das linguagens, em resumo, um epistemicídio pelo qual o capital pode operar uma “pilotagem” da subjetividade necessária ao processo de acumulação monetária a partir do dispêndio disciplinado da força de trabalho. Quer dizer, a imposição do trabalho é um imperativo ao mesmo tempo econômico e moral. A elaboração de mecanismos de punição e o próprio surgimento das prisões estão intimamente ligados com a formação da subjetividade abstrata do trabalho, indiferente ao seu conteúdo, capaz de racionalizar sua conduta num tempo-espaço extensivo e quantificável. Angela Davis, assim, observa que a pena é sempre computada em termos de tempo, está relacionada a uma quantificação abstrata, evocando a ascensão da ciência e ao que com frequência nos referimos como a Era da Razão. (…) A computabilidade da punição estatal em termos de tempo – dias, meses, anos – ecoa o papel da hora de trabalho como base para computar o valor das commodities capitalistas” (Angela Davis, Estarão as prisões obsoletas?).
É por isso, aliás, que os processos insurrecionais ou de contestação do capitalismo, a criação de grupos políticos também são acompanhados por novos processos de subjetivação, de criação de saberes, de enunciações, tendo esse processo sua própria “objetivação”, na medida em que decorre de formas pragmáticas de criação de composição coletiva, com seus ritmos, suas dinâmicas de movimentos próprias e suas práticas discursivas. Dimensão criativa que é geralmente apagada ao reduzir a subjetividade política ao mero reflexo de condições objetivas e dos interesses que decorreriam delas, visando dar lastro a uma falsa universalidade da tomada de consciência.
Com efeito, as guerras civis no capitalismo são verdadeiras guerras de subjetividade, e não é por metáfora A extrema-direita, nesse sentido, soube captar isso melhor que parte da esquerda, quer dizer, num contexto de exceção permanente, de guerra civil, a verdade se encontra em suspenso junto com a lei, o consenso democrático em torno dos fatos se desfaz junto com as crises de suas próprias instituições. É que a verdade e o consenso em torno de seus fatos reencontram sua origem estrutural: a guerra social. E é o desafio da criação de novas formas de comunidade e territórios existenciais que se põe na ordem do dia.
Na medida em que a guerra civil empreendida pelo capital em seu surgimento e reproduzida constantemente em sua história é plural, é preciso pensarmos, então, que o próprio fato do trabalho – considerado como uma condição “comum”, “neutra”, que permitiria a unificação fazendo abstração das diferenças – é, internamente determinado de maneira sexuada e racializada. Ou seja, é preciso começarmos a nos indagar sobre a brancura e a masculinidade como “não-ditos” da universalidade do trabalho, bem como das demais categorias da modernidade capitalistas e seus nexos internos estabelecidos pelo trabalho como “substância social”. E ao mesmo tempo pensar as práticas políticas radicais como fugas dessas formas de sociabilidade.
Nesse sentido, lembremos que africanos em diáspora, indígenas e mulheres passaram, no seio da alucinação histórica que é o surgimento do capitalismo, a encarnar atributos opostos ao trabalho como atividade especificamente humana e racional. Seja pela luxúria, pela preguiça ou pela animalização, a expropriação de terras e dos meios de produção, convertendo-os em mercadorias, a proletarização de africanos e indígenas “incivilizados”, bem como a domesticação da mulher animalizada e destinada à reprodução, se encontravam assim justificados na prosa colonial do capitalismo. Ora, quando a Europa acreditou, pelo exercício da razão, ter apreendido a si mesma do ponto de vista da universalidade, como coisa pensante que pensa a si mesma e capaz de autodeterminação, logo se seguiu a demarcação do não-humano dessa humanidade universal.
Segundo a prosa colonial, indígenas habitantes do Novo Mundo, bem como negros habitantes da África e em diáspora, seriam povos sem história, sem razão, vivendo na infância da humanidade ou no estado de natureza: não tinham fé, não conheciam lei, a propriedade privada e o trabalho. John Locke, no Segundo Tratado Sobre o Governo Civil, descrevia, assim, a América como composta de territórios vazios, improdutivos e sem mestres; o que justificaria, portanto, a tomada desses territórios sem que isso configurasse crime, já que se tratava de espaços juridicamente e politicamente vazios, em relação ao espaço jurídico-político da Europa. Essa prosa da razão colonial, batizada sob o signo do capital, era animada por dentro pelo delírio da raça. Era a raça que no fundo regia “sua linguagem, seus esquemas de percepção e também suas práticas” pelos quais se objetivava incorporar populações heterogêneas num único ordenamento social, ao mesmo tempo que estabelecia distinções e hierarquias.
Além disso, dado que o capitalismo se constitui a partir da redução de atividades antes qualitativamente distintas à pura abstração fisiológica, a diferenciação racial e sexual se tornam, nesse processo de imposição do trabalho, peças fundamentais pelas quais o capitalismo, desde o início, lida com os problemas específicos à vida biológica e sua reprodução. A biologização do social que caracteriza a modernidade encontra aí sua gênese histórica: a animalização de africanos, indígenas e mulheres como pressuposto da proletarização. O que faz da economia capitalista desde o início, como argumenta Achille Mbembe, uma bioeconomia. Na medida em que o capitalismo só se impõe lá onde ele não existe, onde as categorias pressupostas para a produção de mercadorias (trabalho, dinheiro, mercadoria) não estão postas, sua imposição só é possível, portanto, a partir do uso da violência justificada pela animalização e fratura da humanidade. Raça e gênero como mediações sociais se tornam, assim, fundamentais para esse processo de “exclusão-inclusiva” que caracteriza a proletarização: uma prática social de integração de populações heterogêneas a um sistema de dominação social a partir da exclusão dessas mesmas populações, reduzindo tais populações à pura condição biológica “pré-social”, que é, na verdade, uma condição social de abandono. Portanto, é paradoxalmente pela exclusão de parcela da humanidade da relação capital-trabalho que essa é integrada. A raça, nesse sentido, é um elemento que orienta a distinção “entre impulso animal e a ratio do homem” (MBEMBE, Crítica da Razão Negra). Na consciência ocidental sobre a raça, o negro, assim como o indígena, são vistos como “exterioridade selvagem” que é preciso controlar inserindo sua animalidade num “cálculo”, que é aquele imanente ao trabalho e ao capital. Encarnando aquilo que é oposto à razão e ao trabalho, próximo à animalidade, o negro aparece como uma figura pré-humana, incapaz de construir um mundo, de adentrar na história, e que deve, a partir de uma violência mascarada de humanitarismo, ser integrado pelo processo civilizatório.
Por mais que na história de formação do capitalismo as condições de exploração da população proletária, seja homens, mulheres, negras ou indígenas, fossem próximas tanto nas colônias, quanto na Europa, desde o início se verifica diferenciações raciais e sexuais que são internamente constitutivas do proletariado, seja pela institucionalização da escravidão pela lei da raça (perda do direito de recorrer aos tribunais, a escravidão como condição hereditária, a proibição de casamento inter-raciais etc) sobretudo a partir do século XVII, seja pela caças às bruxas, elaboração de técnicas de violência sexualmente diferenciadas e exclusão das mulheres do trabalho assalariado, conduzindo-as à prostituição (SILVIA FEDERICI, O Calibã e a Bruxa). A partir da criação dessas tecnologias sociais animadas pelo sexo e pela raça, vai se constituindo um modelo de subjetividade ou de “humanidade” majoritário (homem-branco-adulto-trabalhador) transversal a toda vida social. A constituição da identidade dessa humanidade majoritária atravessa, assim, a divisão do trabalho, determina a hierarquia das modalidades de trabalho (escravidão, servidão por dívida, trabalho assalariado etc.), as diferenças salariais, o estado de emprego e desemprego, e a separação entre esfera de produção de riqueza e esfera de reprodução humana constituída como feminina etc. Os trabalhadores brancos assalariados e mesmo servis, assim, começaram já no período da colonização a buscar subjetivamente se diferenciar o máximo possível dos negros, indígenas e das mulheres, acompanhando a diferenciação do campo social, com suas instituições, regulamentos, saberes e técnicas de produção corporal. O processo de constituição do capitalismo, portanto, não se reduz à espoliação econômica dos meios de produção, ou a um empreendimento econômico-militar. Ao contrário, trata-se de uma guerra civil imposta sob o signo do dinheiro ou do capital que passa também pela raça, pelo sexo e pela produção da subjetividade, que passa pela destruição de laços de parentesco, de formas tradicionais de saberes, de cosmologias e da própria linguagem, ainda que esse processo de fazer tábula rasa do mundo fracasse, desde o início, constantemente.
Já se observou também que tem algo de metafísico na constituição de uma sociedade que se caracteriza por um grande acúmulo de mercadorias como forma elementar da riqueza social e pela mediação das relações entre as pessoas por relações entre as coisas (dinheiro e mercadoria). Ora, a raça e o sexo não diferem tanto no que diz respeito ao seus estatuto metafísico-físico ou fantasmagórico, na medida em que são fantasmagorias reais que determinam as relações entre as pessoas e o modo de habitar e produzir o mundo. A raça e o gênero, aliás, fazem com que as relações sociais se constituam enquanto propriedades objetivas do mundo, a maneira de leis naturais ligadas ao sexo e a raça: os comportamentos, as formas de pensar, imaginar, de habitar, falar, se relacionar com o mundo, toda essa multiplicidade aparece como efeitos do sexo e da raça como Idealidades Objetivas, essências ocultas da matéria. Como observa Mbembe, se ocultou frequentemente que a razão colonial tem dimensões “ontológica, metafísica, teológica e mitológica”, que fez da colonização inseparável de um processo de fabulação social. Essa fabulação não só moldou a figuração ocidental do horizonte terrestre, que passa a ser povoado de raças, de sexo e movido pelo consumo empresarial da força de trabalho, por meio do qual também se efetivou um projeto de dominação dos ambientes, substituindo os ecossistemas locais pelo agro-sistema das plantations, mas também a estruturação de um novo tempo do mundo, que faz da superfície do globo o cenário onde se desenrola a história universal ritmada pela produção de mercadorias. São fabulações que criaram formas de enunciação coletiva pela qual a colonização se auto-designava e designava os outros, moldaram as condutas, os costumes, a imaginação e secretou um conjunto de mecanismos de micro-determinações pelo qual se fazia “a gestão de medos grandes e pequenos” em torno dos quais giravam as relações conflituosas entre dominantes e sujeitados, senhores e escravos (MBEMBE, Crítica da Razão Negra). No interior desse empreendimento de fabulação, a raça e o gênero, juntamente com o dinheiro, a mercadoria e o trabalho, perfazem uma só e mesma metafísica social subjacente ao modo de produção capitalista: raça e gênero determinada todo o sistema de produção, distribuição e consumo social. Assim, a relação colonial “não foi simples nem unilateral”, mas tinha algo de complexo inconsciente, produzindo delírios, seduções, desejos pelos quais o capitalismo, o racismo e o patriarcado foram impostos e preenchidos por uma pulsão interna destrutiva, deixando “traços indeléveis na imaginação dos colonizados”, produzindo subjetividades pelas quais ‘muitos colonizados, por razões mais ou menos válidas”, aceitaram “tornar-se cúmplices conscientes de uma fábula que os seduziu em múltiplos aspectos” (IBIDEM).
Com efeito, a acumulação primitiva como momento de surgimento da modernidade é um processo constitutivo simultaneamente de três categorias fundamentais do capitalismo: trabalho, raça e gênero. Raça e gênero, assim, não podem ser pensadas apenas como ideologias ou superestruturas do capital, pois são formas de práticas sociais indissociáveis de um mesmo processo de abstração social pelo qual se realiza a dominação social.
Agnes de Oliveira Costa – Mestranda em Filosofia, Travesti terrorista de gênero em tempo integral e militante
[1] Veja por exemplo o capítulo “Paixão da Mercadoria” do livro A Queda do Céu, escrito pelo Davi Kopenawa Yanomami: “Por quererem possuir todas as mercadorias, foram tomados de um desejo desmedido. Seu pensamento se esfumaçou e foi invadido pela noite. Fechou-se para todas as outras coisas. Foi com essas palavras da mercadoria que os brancos se puseram a cortar todas as árvores, a maltratar a terra e a sujar os rios. Começaram onde moravam seus antepassados. Hoje já não resta quase nada de floresta em sua terra doente e não podem mais beber a água de seus rios. Agora querem fazer a mesma coisa na nossa terra”; “E assim as palavras das mercadorias e do dinheiro se espalharam por toda terra de seus anscestrais” (A Queda do Céu, p. 407-408).
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