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22 out 2021

MANIFESTO: ESTUDANTES AUTONOMISTAS ANTI-APAGÃO

Desde ao menos 2014, há um processo crescente de cortes na educação de maneira geral e na produção científica em particular. O recente corte de 600 milhões do orçamento da CNPq é mais um capítulo desse processo. E tais cortes não significam apenas um ataque à ciência e à pesquisa. É inegável que esses cortes irão afetar um conjunto de atividades técnico-científicas fundamentais para a reprodução de certas atividades da nossa sociedade, dentre elas o desenvolvimento de ações de combate à atual crise sanitária. Mas esses cortes crescentes significam também o aumento do desemprego e da miséria: as bolsas são nossas remunerações, muitas vezes a única, seja de quem pesquisa durante a graduação, seja de quem pesquisa na pós-graduação, em institutos etc. 

As bolsas são fundamentais não só para manter a ciência e a inovação tecnológica funcional ao mercado, mas para garantir nossa sobrevivência. Com elas compramos bens fundamentais como nossos alimentos, com elas pagamos nossas contas, aluguéis, garantimos o cuidado de nossas crianças e familiares. Assim, o que o governo esconde atrás dos “cortes” da “ciência” é seu trabalho ativo em jogar uma parcela crescente no desemprego e na miséria,  desvalorizando ainda mais nossas vidas. Os efeitos não se reduzem à perda de “jovens talentos” e fuga de cérebro[1], mas envolve o risco de passar fome. A crise da ciência está revelando, cada vez mais, o seu “chão de fábrica” constituído sobretudo por bolsistas: trata-se de dinâmicas de trabalho precárias, sem as quais, entretanto, o regime de verdade produzido pela ciência não se sustenta. Os cortes revelam que a ciência depende de um conjunto tecno-vivo inscrito na divisão social do trabalho para ser produzida: pessoas, matérias-primas, dinheiro, mercadorias. E, mais do que isso, revela que boa parte da produção científica é sustentada não só por cientistas de laboratórios cada vez mais sucateados[2], mas por bolsistas que desempenham múltiplas funções.

Para melhor precarizar nosso trabalho e existência, os governos, as mídias, as empresas e outras instituições construíram o mito de que as bolsas são “benefícios”, espécies de “incentivos” que são fornecidos para quem trabalha com pesquisa. Com isso, se construiu um segundo mito: que quem pesquisa vive numa espécie de “mamata”, tratando-se de gente “privilegiada”, capaz de se sustentar sem “trabalhar”. Bolsista é, então, o nome de uma figura miserável e detestável socialmente: ela é totalmente desvalorizada, seja moralmente, eticamente, economicamente, politicamente, psicologicamente. Mas é também o nome de uma condição precária de trabalho: uma espécie de faz-tudo, desenvolvendo habilidades não só de pesquisa, mas de design, social media, organização de eventos, docência e outras funções.

Mesmo as entidades representativas estudantis e científicas (ANPG, SBPC, UNE etc.) não escapam desse círculo vicioso que consiste, por um lado, em dar provas da importância da ciência para a acumulação de dinheiro e garantia anacrônica de soberania nacional, num contexto em que o capital se encontra amplamente globalizado. A política, assim, é reduzida à promessa do “pleno emprego” e do desenvolvimento da economia nacional. Esse esforço político significa legitimar os critérios de uma forma de seleção social (a economia) sobre nossas vidas, que reforça nossa própria descartabilidade em decorrência da crise dessa sociedade mercantil: qual a utilidade para o mercado e o crescimento econômico de cursos e pesquisas como a filosofia? Por outro, se foca numa realidade de fuga de cérebros que só é parcialmente verdadeira: apenas uma pequena parcela encontrará solvência “lá fora”, boa parte nem mesmo conseguirá sair do país, tendo ou que se submeter ainda mais a uma superexploração por via de subempregos múltiplos para se manter na Universidade e pesquisando, ou simplesmente terá essa possibilidade completamente obstruída. 

A realidade, precisamos reforçar, é que quem trabalha com pesquisa trabalha em condições cada vez mais precárias e adoecedoras: sem direitos trabalhistas, como décimo terceiro, férias, auxílio alimentação e transporte, além da ausência de reajuste salarial desde 2013. Ao mesmo tempo, impõe-se a exigência de cada vez mais produção e formação, impulsionada pela concorrência por bolsas cada vez mais escassas: aumento de escrita e publicações de artigos, participação em congressos, colóquios etc.  sem, contudo, ganharmos mais. Nossas remunerações (de bolsistas) são, em sua maioria, quantias que se equiparam às condições de outros tantos trabalhos precários da nossa sociedade: Iniciação Científica – 400 reais;  Mestrado – 1500 reais;  Doutorado – 2200 reais. Além disso, quando se recebe bolsa é proibido ter qualquer outro trabalho, mostrando mais uma vez que a remuneração é considerada como um mero “acréscimo” ao trabalho que se realiza para as instituições de pesquisa.

Os relatos de quem faz de tudo um pouco, que faz “bico”, “freela”, que trabalha informalmente para se virar e complementar a renda na pesquisa são inúmeros: pessoas trabalhando revendendo Avon, Natura, produzindo comida, entregando em aplicativos como Uber, Ifood, Rappi, fazendo dupla, tripla ou até quádrupla jornada.[3] Nos últimos tempos, as Universidades deixaram de ser apenas para a elite e para formação de elites dirigentes. As Universidades e Instituições de pesquisa não só foram massificadas, entrando cada vez mais pessoas de baixa renda, vindas das periferias, negras e indígenas, mas o trabalho que se faz nas instituições de pesquisa foi também perversamente precarizado, destruindo nossas possibilidades de permanecer na Universidade e nos lançando, cada vez mais, no mar volumoso do desemprego e da descartabilidade social. Para termos uma ideia, o número de pessoas na pós-graduação dobrou nos últimos dez anos, passando de 162 mil para 320 mil, mas os cortes dos últimos 6 anos reduziram o orçamento em mais da metade, retomando patamares de 2000. [4]

Assim, a nossa precariedade se conecta com a de tantas outras parcelas da população, com suas dificuldades, incertezas, inseguranças e medos. Nessa situação, mais do que a questão da legitimidade da ciência frente às provas seletivas do crescimento econômico, são as nossas vidas que estão em jogo, é a própria vida que procura dar provas de si mesma diante de uma ordem que a descarta. Mas nossa revolta também se conecta com as múltiplas revoltas contra as situações de miséria e de fome crescentes, também sabemos responder, inventar estratégias, táticas e formas de nos organizarmos.  É preciso que recuperemos nossa capacidade de agir politicamente por nós mesmos, indo para além da forma representativa e parlamentar da ação política, que se mostraram incapazes de construir uma articulação que nos faça capaz de fazer frente ao Estado e ao mercado. 

Se somos capazes de passar horas do dia numa mesma posição e desempenhando uma mesma tarefa, se suportamos longas jornadas de trabalho, se somos capazes de desempenhar múltiplos trabalhos, num mesmo dia e às vezes ao mesmo tempo, se somos capazes de criar realidades, expropriadas pelo mercado, que até então pareciam impossíveis de existir, então também somos capazes de realizar ações políticas frente ao que achamos ser impossível de suportarmos, criar possíveis que ainda não estão dados, traçando linhas de fugas para um outro mundo possível. Nosso corpo individual e coletivo pode muito, e mesmo relativamente em poucas pessoas podemos fazer muita coisa: travar ruas, atos, paralisações, greves, revoltas que duram dias, criar curto-circuitos no funcionamento automático da máquina social de moer gente, que está nos descartando e transformando toda ocupação em subocupação.

 Assim, é preciso que os corpos de quem pesquisa e estuda se tornem corpos de revolta, que a ciência se acople com a imaginação e atos radicais de transformação social: pelas nossas vidas e sobrevivência. Nossa situação não é uma situação que poderá ser resolvida com diálogo e institucionalidade: essa está em crise. Nossa situação é aquela em que estamos nos tornando supérfluos para o mercado, em que o risco de passar fome é real e é crescente, ainda que talvez não tenha chegado em você e ainda que talvez, para evitá-lo, os limites de seu corpo estejam sendo testados cotidianamente, na exploração brutal pelo trabalho.

Fazemos, assim, um chamado para a auto-organização, nós por nós, contra os cortes, para que criemos formas não só de contra-ataque, mas de avançar na conquista de nossos direitos. Só com uma ofensiva contra este governo conseguiremos de fato barrar não só os cortes, mas também, minimamente, conquistar condições melhores de vida.

Notas:

[1] Essa abordagem redutora, por exemplo, é presente na nota da ANPG: http://www.anpg.org.br/wp-content/uploads/2021/10/Nota-ANPG-Paralisa%C3%A7%C3%A3o-nacional-dos-p%C3%B3s-graduandos-brasileiros.pdf
[2] Universidades federais perdem em 10 anos 73% porcento da verba para construir laboratórios, fazer obras e trocar computadores – https://g1.globo.com/educacao/noticia/2020/08/23/universidades-federais-perdem-em-10-anos-73percent-da-verba-para-construir-laboratorios-fazer-obras-e-trocar-computadores.ghtml
[3] https://revistapegn.globo.com/Economia/noticia/2021/07/reducao-de-bolsas-e-crise-levam-pos-graduandos-trabalhar-como-uber-e-buscar-auxilio-emergencial.html
[4] https://g1.globo.com/educacao/noticia/2020/08/23/universidades-federais-perdem-em-10-anos-73percent-da-verba-para-construir-laboratorios-fazer-obras-e-trocar-computadores.ghtml

0 Comentário

  • Pê Braga disse:

    NÃO AOS CORTES!

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