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06 nov 2021

Entrevista com Bruno Santos, ex-carcereiro e pedagogo.

Bruno Santos é professor na educação básica e pesquisador em pedagogia social. Antes disso, enquanto cursava a faculdade, ele trabalhou como agente penitenciário e vivenciou o dia-a-dia das prisões como trabalhador sempre com o olhar crítico da educação. Essa entrevista foi realizada por Heloisa Yoshioka em 31 de janeiro de 2021.

Você pode começar se apresentando?

Bruno: Meu nome é Bruno Santos, eu sou pedagogo, atuo na educação básica, no ensino público. Também sou estudante de pós-graduação, estou fazendo mestrado e pesquiso a temática da educação não escolar, pedagogia social, ambientes institucionais não-escolares e práticas educativas, partindo dos referenciais de Paulo Freire

O que te motivou a estudar pedagogia?

Bruno: Durante a minha trajetória escolar eu sempre fui um aluno esforçado, não era aquele aluno prodígio, mas eu tive experiências muito boas. Eu sempre tive uma admiração muito grande pelas professoras e pelos professores que passaram pela minha trajetória, queria ser igual a eles, e queria atuar na escola pública, já que eu estudei na escola pública (e depois no ensino superior também). Durante a formação acadêmica surgiu o desejo de me comprometer com uma educação que fosse para as camadas populares, para a classe trabalhadora, pública, laica e gratuita, uma educação que supere o fatalismo meritocrático e que promova a criticidade e a conscientização.

No começo eu queria fazer história ou filosofia, mas alguns colegas que já atuavam como professores me sugeriram que, além de fazer uma dessas licenciaturas, eu fizesse também a licenciatura em pedagogia porque poderia abrir mais oportunidades – podendo atuar como diretor de escola e coordenador. Além disso, o ensino fundamental 1 e a educação infantil são oferecidos pelas prefeituras, sempre há concursos com bastantes vagas, em alguns casos as condições de trabalho, plano de carreira e salário são um pouco melhores se comparados aos professores do Estado. Então eu coloquei na cabeça que eu deveria fazer uma licenciatura e também a licenciatura em pedagogia porque eu teria mais possibilidade – veja esse nosso imperativo de sempre ter um plano B né? Se tudo der errado, eu tenho um plano B. Até o último momento eu fiquei em dúvida, mas optei pela pedagogia.

Eu acho que fiz a melhor escolha porque a pedagogia é uma ciência social que se debruça sobre o fenômeno educativo, então dentro da pedagogia  eu fui discutir outras questões relacionadas à educação, além das questões relacionadas à escola e a educação formal. Me identifico bastante com a vertente da Pedagogia Crítica e me interesso também pela pedagogia social, campo esse que discute as práticas educativas que ocorrem em diversos contextos, sobretudo em ambientes não escolares. No campo da Pedagogia Social, as instituições de privação de liberdade são entendidas como espaço experiências educativas, isso é um tanto contraditório já que não acredito que a prisão seja capaz de ressocializar – mas é uma premissa legal para que a população privada de liberdade tenha acesso à educação. Nós enquanto educadores temos que ocupar esse espaço e oferecer a garantia desse direito, porque o fato de uma pessoa estar privada de liberdade não significa que ela está privada de seus direitos à cultura e à educação. No curso de pedagogia encontrei mais elementos para embasar essa reflexão, sem no entanto sustentar uma ilusão de que a educação por si só é um elemento de transformação, pois a educação pode ser reacionária e conservadora. Ela pode apenas reproduzir a ideologia dominante e conformar as massas para a desigualdade. Por isso a importância da Pedagogia Crítica e das ideias de Paulo Freire, é preciso defender uma educação problematizadora que apresente elementos que permitam que o indivíduo leia o mundo, partindo de sua realidade concreta de forma que compreenda as desigualdades e opressões, e tomando consciência dessa sociedade estruturalmente desigual se organize para a transformação radical da realidade onde vive. A educação é um campo de disputa ideológica e com o atual governo ultraneoliberal com características fascistas há um movimento de enviesamento para o setor privado. A atual política educacional da BNCC, Base Nacional Comum Curricular, foi gestada pelos empresários da educação privada e pelo mercado editorial. Não há nela nenhum elemento crítico nessa proposta, só o velho fatalismo neoliberal que reduz a educação a ler, escrever e contar e tenta emplacar também o discurso de educação profissionalizante – quando vivemos num país desindustrializado que não comporta o excedente da classe trabalhadora. Além disso, há as iniciativas que se espalham pelo país de militarização de escolas públicas, ou seja, o fascismo escolar é parte da agenda educativa do atual governo. Temos ainda o enveredamento para o discurso religioso moralista e fundamentalista, temos um ministro da educação que além de ser representante do setor educacional privado é pastor. Ao longo da minha formação fui reunindo elementos para compreender as nuances políticas da educação e entendê-la como um campo complexo, que extrapola os limites da escola.

Como você foi trabalhar como agente penitenciário?

Bruno: Não foi uma escolha, exatamente… Eu tinha 22, 23 anos e na época era muito urgente ter um emprego mais estável, dada a precarização das experiências profissionais que eu tive, trabalhando como vendedor, motoboy, office-boy… Eu tinha ingressado na graduação de pedagogia na Unifesp e veio a necessidade de ter um emprego que pudesse me dar uma renda mais estável para que eu pudesse contribuir com a dinâmica da minha família. Então eu passei a prestar concursos para várias áreas que pediam o ensino médio, sem ter uma formação específica. Confesso que tudo aconteceu muito rápido e, até o assumir o cargo, eu não sabia exatamente o que era. Só quando eu iniciei o curso de formação que é oferecido pela secretaria que eu fui entender que o trabalho era de carcereiro no interior das unidades prisionais. Aí foi um grande choque de realidade porque eu já tinha ingressado, já tinha assumido o cargo. Mas a remuneração, a estabilidade e oferecimento de convênio médico, tendo em vista outras remunerações, foi bastante importante para eu me manter neste período.

E como foi você, estudante de pedagogia, indo trabalhar na prisão?

Bruno: Foi um grande choque porque desde mais jovem eu tinha vontade de ser professor… Trabalhar em escola era o que eu queria, né? Então eu sabia que em algum momento eu ía atuar na escola, que o período que eu estivesse trabalhando lá seria um período necessário para eu conseguir me formar.

Eu mergulhei num processo de muito questionamento, porque a prisão é o oposto da escola – apesar de as duas na sua dinâmica de funcionamento contarem com dispositivos de controle que as aproximam muito, né? A questão do tempo, a questão da disciplina física… Então se a gente fizer uma análise muito crua, muito superficial, ambas são instituições de disciplina, de controle, mas a escola tem um propósito humanista mais enraizado… E até no ideário das camadas mais populares a escola é um lugar positivo, sabemos da importância da escolarização para a obtenção de trabalho, e temos a noção de que a escola é um lugar de emancipação do sujeito, é onde você vai construir a sua autonomia, né? E a prisão é o oposto disso, o lugar do castigo, da privação e reclusão

Foi nessa contradição que surgiu o meu interesse por começar a entender as políticas educativas que são destinadas à população privada de liberdade. Porque no ideário jurídico a educação é entendida como elemento de ressocialização das pessoas que estão privadas de liberdade, porém, na prática, não ocorre um trabalho educativo muito efetivo com a população adulta. Se você pegar, por exemplo, os jovens que estão privados de liberdade na Fundação Casa aqui no Estado de São Paulo, ainda há um esforço institucional de viabilizar o acesso à escola. Então veja, numa instituição que responde ao viés punitivista da Justiça, o elemento educação está presente, então há uma crença que a educação tem essa essa potência, né? Essa crença por si só é problemática porque você tem uma série de outras questões… Se você for analisar a trajetória de vida dos sujeitos que chegam a prisão ou no sistema socioeducativo, às vezes o direito à educação não estava consolidado quando ele estava em liberdade. Então não é razoável apostar que se você tiver em uma sala de aula dentro da prisão vai resolver magicamente um estigma que acompanha o indivíduo ao longo de sua trajetória de vida.

Então eu me deparava com esses questionamentos… Em algum momento eu até tentei me aproximar do trabalho educativo dentro das prisões, mas como meu cargo era de agente e eu trabalhei em muitos Centros de Detenção Provisórios (CDP), eu não tive essa oportunidade. No Estado de São Paulo não é comum ter a escola vinculadora nos CDPs, apesar da gente saber que no Brasil muitas pessoas cumprem parte significativa da pena no estabelecimento provisório. Então veja a contradição: em tese, até o indivíduo preso de forma provisória deveria ter acesso ao direito à educação e ao trabalho. Porém, devido a morosidade do judiciário isso acaba não ocorrendo, então a pessoa fica, além de privada de liberdade, privada de outros direitos, como a educação. Isso é parte da estratégia punitiva, não é uma omissão por ineficiência do aparato estatal. Privar da escolarização, da possibilidade de exercício da criticidade e do acesso aos bens culturais está no cerne da gestão neoliberal para as camadas pobres da sociedade. Esse ócio punitivo concorre para todas as outras questões muito mais problemáticas, que estão relacionadas à violência que a instituição exerce sobre esses indivíduos e que os indivíduos que ali estão reproduzem sobre os outros, a violência é a linguagem da prisão, permeia desde a arquitetura até as relações.

Como era o ambiente da prisão?

Bruno: Eu conheci diferentes modalidades de regime, trabalhei no provisório (CDP), penitenciária de regime fechado, ala de progressão do semiaberto. O ambiente da prisão é um ambiente problemático por si só e há toda uma invisibilidade sobre o que acontece nesse espaço, existe um tabu que está relacionado até a um certo moralismo da sociedade de não querer entender essa questão, de não querer discutir o punitivismo que existe, né?

A prisão é um ambiente marcado pela coerção, pela violência, pela negligência, pelo controle, e sobretudo um ambiente marcado pelo racismo estrutural e institucional que fomenta a marginalização do povo preto e indígena. A marginalização é o elemento que coloca o indivíduo lá e quando essa instituição devolve o indivíduo para a sociedade, a marginalização só se intensifica. O cárcere é um espaço de desumanização. Existe na lei de execução penal (LEP) a caracterização de que a função da prisão é o cumprimento da pena e a ressocialização, essa assertiva do direito cai por terra por que o que se promove no cárcere é um processo de degradação mesmo, de ruptura com os laços familiares, de ruptura do convívio, e várias outras questões. Se você pegar o texto legal, o que se entende por tortura é o emprego de violência ou grave ameaça causando sofrimento físico e mental, então esse imperativo da tortura está posto o tempo inteiro se você for analisar a dinâmica na qual essa instituição opera. O cárcere não funciona sem tortura. Ela existe para o tempo todo constranger e ameaçar o indivíduo, empregar certa violência que pode ser física ou simbólica. A arquitetura prisional é toda voltada para vigilância e controle. Quando o indivíduo chega ele tem sua cabeça raspada, ele é chamado por um número de matrícula, recebe um uniforme, ele tem que aprender posturas, tem que andar nos corredores da prisão com as mãos para trás e a cabeça baixa. Existe toda uma liturgia do controle que intensifica esse processo de desumanização. Essas são estratégias universais da prisão no sentido de disciplinar e tentar exercer o controle e a vigilância, que é uma questão central porque no Brasil a superlotação das prisões é endêmica. Quase todas as unidades do Estado de São Paulo estão com a capacidade excedida e o efetivo de trabalhadores para atender essa população é muito inferior ao descrito no regimento da Secretaria de Estado, ou seja, é sempre um número desproporcional de servidores. Então todos esses mecanismos tiram a identidade da pessoa, destituem o “eu”. Ele deixa de ser uma pessoa e passa a ser um preso, e com ele vem a família do preso, o filho do preso, a mãe do preso, a esposa do preso. E o que significa isso para ressocialização? Essa dinâmica por si só inviabiliza qualquer processo terapêutico, reabilitador, ou seja qual for o termo. É uma grande falácia dizer que a prisão pode ressocializar.

Você falou sobre a desumanização do preso, e como é o processo de desumanização dos trabalhadores da prisão?

Bruno: Se você analisar o perfil socioeconômico dos trabalhadores, em relação aos indivíduos privados de liberdade você vai ver muitas semelhanças. A gente até dizia que o que separa o agente do preso é a cor da calça, porque o agente usa calça preta e o preso, bege, os Racionais inclusive chama a prisão de “país das calças bege”. E de fato era isso porque em inúmeras ocasiões eu me deparei com pessoas de ambientes que eu frequentei, colegas de escola, vizinhos… Pessoas que partem dos mesmos lugares sociais, dos mesmos lugares territoriais e dos mesmos lugares simbólicos.

O trabalhador opera como uma figura ativa desse processo de desumanização, ele exerce o controle visível do Estado, ele é o braço operacional do Estado e muitas vezes o trabalhador assume essa identidade e passa a incorporar esse discurso como algo em que de fato ele acredita e aquilo se torna uma missão para ele, né? Também há estudos sobre o adoecimento de trabalhadores no cárcere, é muito comum o alcoolismo e consumo de drogas… O estresse dessa experiência laborativa intensifica tudo isso porque é extremamente insalubre, se para os presos é, para o trabalhador também. E nessa dinâmica ocorrem várias coisas que podem colaborar para a perversão do sujeito.

Então veja, se a desumanização é uma estratégia de controle do preso, ela passa, num segundo momento, a ser uma estratégia de controle do trabalhador porque ao ser um operador dessa dinâmica ele se desumaniza também. Porque da mesma forma que o preso recebe um determinado número, uma roupa, um corte de cabelo, tem uma série de coisas que o servidor tem que incorporar também. Alí dentro ele passa a ser chamado de senhor, ele passa a cobrar essas posturas, passa a exercer esse controle em alguma medida, né? Evidentemente que a gente sabe que há muito mais nuances quando eu falo de controle, a gente precisa considerar que, por exemplo, o Estado por si só não dá conta de gerir as unidades prisionais e ele precisa dialogar com grupos organizados do crime para que exista um convívio minimamente harmônico, porque como eu falei, já trabalhei em unidades prisionais com uma população de mais de 2 mil presos e um corpo funcional de 10 agentes, então como você exerce controle? Não exerce, né? Se não tiver aí outras normas, outros acordos, que não as normas e acordos legais. Então, só abrindo esse parênteses para também a gente não acreditar que a prisão é o braço forte do Estado, né? Existe uma perspectiva de estudo crítico sobre a prisão que vai caracterizar a prisão como a prisão pós-disciplinar. Se em algum momento da história o Estado exerceu o controle total no suplício e na aplicação do castigo punitivo, hoje ele é dividido com os grupos e as redes do crime organizado. E uma outra coisa, o agente penitenciário integra a classe trabalhadora, ele mora na periferia. Quando está no seu dia de folga, se encontra com pessoas que saíram da prisão, então ele não está excluído dessa dinâmica. E outra questão que é colocada é sobre a integridade desse sujeito, porque se a gente for observar o noticiário, vira e mexe a gente vê execuções desses trabalhadores acontecendo, né? Então, além de absorver esses contravalores, produz violência em algum grau contra a população carcerária e muitas vezes é vitimado por essa mesma violência. O indivíduo é personificado como o agente punitivo do Estado e isso o desumaniza colocando a sua integridade física em risco. Tem uma outra questão que é sobre o alto indíce de suicídio desses profissinais, que está relacionado ao acesso a armas de fogo, é um problema que acomete outros agente da segurança pública. Então, veja só, é um ambiente extremamente problemático para todos os envolvidos, não importa o grau. No meu caso particular eu venho de um histórico onde me aproximei da militância política antes dessa inserção profissional, isso me ajudou a não me perverter e ter noção clara da minha condição de trabalhador.

Só de curiosidade, você ganhava adicional de insalubridade?

Bruno: Sim, não é com esse nome, tem uma outra sigla, RETP, mas não é um valor razoável não, não é um valor que você fala “vale a pena”. Porém, se você for pegar o valor do salário mínimo, que é o que a classe trabalhadora em sua maioria recebe, para um trabalhador que tem ensino médio, ganhar, sei lá, uns três salários mínimos – que não é também grande coisa, né? Mas passa a ser um salário atrativo tendo em vista o cenário do país nos últimos anos e que o serviço público tem essa suposta estabilidade. Não é uma estabilidade porque se você pegar a questão da saúde laboral, do risco ocupacional, não é, mas do ponto de vista jurídico do contrato que está amparado por uma ideia de carreira, de progressão salarial, passa a ser uma opção que tem algum benefício para determinada parcela da sociedade – da classe trabalhadora, porque um filho da burguesia não vai trabalhar nesses lugares, né? Não tem um atrativo.

Como era o dia-a-dia no trabalho?

Bruno: A dinâmica no trabalho é marcada pela questão da vigilância e da manutenção da segurança do estabelecimento, então havia uma série de procedimentos que eram realizados. Todo dia quando você assume o plantão você tem que contar quantos presos tem dentro de cada cela e dentro do pavilhão, os servidores contam a unidade inteira, e fazem uma vistoria dos internos para ter o controle com relação a fuga, óbitos, se alguém sofreu alguma agressão. Tinha procedimentos de vistoria predial mesmo, passar batendo nas grades para ver se tinha alguma serrada, fazer vistoria no piso para ver se não tinha buraco, fazer vistoria no telhado, próximo às muralhas, para verificar  algum objeto arremessado, checagem das caixas de esgoto pois é muito comum que os internos  ocultem objetos como celulares e facas… E para além disso tem a questão das relações, porque o carcereiro é quem comunica as demandas dessa população para a direção do estabelecimento e para o setor de saúde e assistência social. A população carcerária sempre se organiza em torno das lideranças do crime, então todo pavilhão sempre vai ter o piloto, o jet, o faxina, que é quem faz essa interlocução em nome do grupo. Em algumas unidades, o resto da população não pode falar com o agente, só os indivíduos que exercem liderança e ocupam a chamada cela da faxina. Então uma das outras características do trabalho é fazer essa mediação dessas lideranças com a diretoria do presídio. E além disso também tudo que envolve a movimentação do preso, se precisa ir no hospital, quando tem apresentação judicial, fórum, qualquer saída autorizada pelo juiz, o agente vai junto fazendo a escolta.

Como trabalhar na prisão impactava a sua vida fora do trabalho?

Bruno: Antes de eu sair desse trabalho eu achava que lidava de uma forma muito tranquila com a questão do sentir-se seguro, né? Eu cheguei a ter eventos em que eu fui identificado fora do ambiente e fui afrontado, ameaçado e tal, mas no geral eu achava que lidava de forma tranquila. Eu fui perceber a diferença quando eu exonerei do cargo, porque aí fui me deparar com uma série de posturas, cacoetes, que eu assumia… Uma determinada sensação de sempre estar em alerta, quando eu já não precisava mais disso, ainda era identificado em mim por pessoas mais próximas, é o que eu falei de você incorporar essa lógica do exercício do controle, né?

Além disso, várias questões relacionadas à saúde mental, fadiga, estresse, adoecimento, depressão… Que eu acho que é uma marca mesmo dos trabalhadores da prisão, bem como tabagismo e alcoolismo, que também me acometeu por um período no qual eu trabalhei. Eu acho que o adoecimento psíquico é um dos efeitos colaterais das pessoas que estão privadas de liberdade e das pessoas que ali trabalham. Acho que é uma marca da arquitetura do controle, não só da arquitetura física, mas justamente desse jogo de relações e códigos que gerem a prisão.

Qual você diria que é o papel das prisões na sociedade hoje em dia?

Bruno: A prisão, ao mesmo tempo que tem uma certa invisibilidade, nessa invisibilidade que a função dela está posta, que é de conter a o que seria a “população excedente”, as pessoas que estão à margem. Então ela é um uma instituição que só reforça essa lógica da desigualdade e da marginalização.

A prisão é feita para um determinado público, um determinado tipo de pessoa. Se você pegar os dados do Infopen, que é uma espécie de Censo Penitenciário, você verá que mais de 60% das pessoas que estão presas se identificam como pretas ou pardas no Brasil, então é uma instituição racista. Se você for ver crimes pelos quais as pessoas são presas, tem a questão da Lei Antidrogas, que considera o comércio varejista de drogas como “o grande mal da sociedade”. Você tem um número muito grande de jovens de 18 a 35 anos que são presos pelo varejo de drogas mesmo. E de onde esses jovens vêm? São jovens das periferias que se você for analisar muitos quando chegam no cárcere nunca tiveram um trabalho CLT, muitas vezes entram no tráfico como forma de subsistência, de trabalho. Então a Lei Antidrogas é fundamental para entender porque o Brasil prende tanto. O Brasil tem uma massa de 17 milhões de desempregados, então se você pegar o quase um milhão de presos, é uma porcentagem significativa que está presa, então o sistema prisional cumpre com uma função de contenção dessa população excedente.

Se a gente olhar a história dos Estados Unidos, Inglaterra, lá nos anos 70, com a queda no estado de bem-estar social, a gente vê, dentro dessa perspectiva liberal, o endurecimento dos mecanismos de controle. O que se fez foi tirar a verba dos programas de alimentação e moradia, assistência social, e destinar para o judiciário, as polícias e o sistema penitenciário. Houve a decisão política de tratar a questão da desigualdade social com o aparato punitivo. Então o cárcere é um mecanismo de controle das massas pobres, de gestão da miséria. E você tem também uma cultura militarista na polícia brasileira que tem raízes na escravidão, a polícia brasileira é patrimonialista, ela sempre cumpriu essa função de controle das massas, de lei de ordem, desde a revolta de Canudos, a figura do capitão do mato, do jagunço, você já tinha um aparato militar contendo as massas. A Polícia Militar brasileira, desde a forma como ela aborda as populações pobres, ela já tem esse imperativo do racismo que depois é reforçado pelo sistema judiciário e naturalizado dentro do cárcere. A seletividade racista da justiça brasileira começa na abordagem da PM.

O que poderia ser alternativa à prisão?

Bruno: Como eu falei, a ressocialização da pessoa privada de liberdade por meio da educação e do trabalho cai por terra porque existe uma grande defasagem escolar nessa população e também existe o desemprego endêmico no Brasil. As pessoas não têm emprego quando estão em liberdade, presas é ainda mais difícil. Há uma massa de jovens  acometida por essa condição antes do cárcere. A questão do desemprego extrapola a discussão do cárcere, e com esse quadro político ultraneoliberal dificilmente o país voltará a criar postos de trabalho para as massas. Hoje se fala em empreendedorismo como estratégia ideológica para responsabilizar o indivíduo pelo seu “fracasso financeiro”, há uma tentativa de tornar individual o que é social. Mas temos que ser realistas e pragmáticos para que as juventudes não continuem sendo interrompidas, aqui não cabe fatalismo, precisamos pensar e propor ações concretas. Então, como educador e pedagogo eu acredito muito na ideia da socioeducação, não entendida como como tratamento que se dá para um adolescente infrator, mas entendendo a socioeducação  partindo da ideia da educabilidade humana, no sentido da educação popular e da educação em ambientes não-escolares. Se nós tivéssemos políticas sociais de estado efetivas e robustas nas nossas periferias de acesso à cultura, lazer, programas de renda básica e um cenário favorável para a inserção no mundo do trabalho, eu acredito que isso expressaria ao longo do tempo uma forte de diminuição, porque 30% das pessoas presas no Brasil são por crimes relacionados à Lei Antidrogas. Como eu falei, essa pessoa que é presa estava exercendo uma atividade comercial que muitas vezes é o que promove a subsistência então se a gente for analisar isso sem nenhum moralismo esse indivíduo que tá ali está trabalhando. Então eu acho que o tratamento que deveria dar, antes desse tratamento punitivo é o tratamento preventivo. Em algumas comunidades, a única presença do Estado que chega é a ponta do fuzil, né? Não chega assistência social, a criança para ir para escola tem que descer o morro, para ir para o PS, tem que descer o morro, né? O fato de a pessoa não ter acesso ao estado significa não ter acesso aos direitos. Então eu acredito que uma das frentes é humanizar esses territórios.

E também uma outra questão, o Brasil precisa lidar melhor com essa questão da descriminalização das drogas porque isso também operaria uma mudança bastante importante nesses indicadores. Então a gente tem que fazer essa discussão despida de moralismo, né? Seja moralismo de classe, religioso,ou de qualquer ordem. E uma outra questão também, para os crimes contra o patrimônio, por exemplo, crime de furto, que não tem grave ameaça contra vida, você tem mecanismos talvez mais sutis para se diminuir esse conflito, né? Se um crime contra o patrimônio é passivo de restituição, porque não restituir sem encarcerar? E promove um monitoramento socioeducativo desse indivíduo, que não precisa ser dentro de uma prisão.

Pegando essa máxima da ressocialização, o Estado poderia promover atividades de ressocialização sem a imposição do cárcere que deteriora vínculos e desumaniza. Mas enfim é uma questão muito complicada, não tem fórmula, mas eu acredito que a prisão não é solução para nada, para crime, para socialização, para recuperação, para reabilitação… Não, isso já caiu por terra.

Como é que foi para você parar de trabalhar na prisão e começar a trabalhar na escola?

Bruno: O ingresso na docência foi algo que eu desejei por bastante tempo, eu me preparei para isso. Ser professor sempre esteve relacionado ao meu projeto de vida mesmo, então para mim foi uma experiência planejada, digamos assim, mas que, como todo processo de mudança, foi marcado por receio e preocupações. Foi um processo sensível.

Foi um processo de ressocialização?

Bruno: Também, porque eu assumi por muito tempo a figura de alguém que exercia o controle e a disciplina. Evidentemente que como professor você exerce controle e disciplina, né? Mas a escola é entendida como um lugar de transformação, de emancipação. Eu não tenho essa ilusão de que a educação sozinha transforma porque a educação tá submetida a uma determinada configuração de Estado. Evidentemente que ela é essencial, sem ela não se faz mais nada, mas é preciso pensar, por exemplo, o atual momento da pandemia, onde muitas pessoas descobriram que a escola não é só lugar de aprendizado de conteúdos. Para algumas populações ela é o que garante a segurança nutricional e até a integridade física da criança. A escola pública brasileira, para a infância, é o espaço por excelência de efetivação de direitos.  A criança não é matriculada na escola se ela não tiver a carteira de vacinação em dia, o Bolsa Família só é recebido  se a criança tiver frequência na escola, muitas vezes o único lugar em que a criança tem acesso a um psicólogo – se a rede tiver – é na escola, muitas redes municipais contam com acompanhamento odontológico preventivo e educativo, se a criança tem uma demanda relacionada a alguma necessidade educacional , o professor pode ajudar a identificar e encaminhar, a escola é peça chave na rede de proteção dos direitos da infância E também na adolescência Se você pegar, por exemplo a educação sexual, mesmo que com viés da biologia, por exemplo, a escola consegue discutir em alguma medida esses tabus.

Eu entendo que ocupei papéis disciplinares em diferentes medidas e se em algum momento o imperativo era da vigilância e do controle, hoje eu tento ser um agente da efetivação dos direitos da infância. Longe desse ideário liberal de meritocracia que vai dizer “ó, estuda que você vai ser juiz, estuda que você vai ser médico”, dessa visão determinista de que se você tem uma boa educação você é alguém bom. Haja vista a que a elite brasileira,  é extremamente escolarizada mas é burra, é fascista, é criminosa. Então o fato de alguém estudar no colégio Bandeirantes ou no Rio Branco com um currículo impecável do ponto de vista de conteúdo não faz com que essa pessoa seja alguém que contribui com o outro, que vai desenvolver empatia, né?

Eu não tenho essa visão romântica, mas você pode sim ter uma educação que não é alienante, uma educação libertadora, que é uma educação que promove esse movimento de leitura do mundo que Paulo Freire falava, né? Eu acredito que se a educação puder dotar um indivíduo de uma leitura crítica da realidade, que entende as nuances dessa engenharia perversa que vai dizer que você tem que ocupar determinados lugares, que você está fadado a isso ou aquilo, se você tiver educação que faz você romper com esses paradigmas, acho que você vai caminhar no sentido de uma transformação social.

0 Comentário

  • Caiá Couto disse:

    Acredito que no fundo do túnel existe muitos professores Brunos, Semeando essa semente da Educação Libertária, será a Revolução Sem Partido.Avante a Rebelião Anarquista Operária e Popular 🔥🔥🔥 na Babilônia.

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